A ditadura contra Chico Buarque: 50 anos do caso “Apesar de Você”
Em 7 de maio de 1971, veículos de comunicação receberam uma nota oficial informando sobre a proibição da música de Chico
Publicado 08/05/2021 15:24
Há 50 anos, Apesar de Você desmoralizou o nefasto regime militar (1964-1985). Aprovada sem restrições pela censura e lançada no fim de 1970, o samba de Chico Buarque era tocado nas rádios e cantado por artistas como Clara Nunes e Elizeth Cardoso. Em três meses, o compacto que trazia Apesar de Você de um lado e Desalento do outro teve mais de cem mil cópias vendidas.
Muita gente achava que a música tratava de algum relacionamento infeliz do poeta. Certamente, foi o que pensou o censor que autorizou a letra. Mas não levou muito tempo até a sociedade enxergar na canção uma crítica velada à ditadura. Com tantas indiretas de colunistas sociais e locutores de rádio, o regime militar, sentindo-se humilhado, voltou atrás e proibiu a música.
Tudo começou em 9 de janeiro de 1971, na coluna de Nina Chavs no caderno “Ela”, do jornal O Globo “A última composição de Chico Buarque, ‘Apesar de você’, tem mensagem, tem mensagem”, provocou Nina. No mês seguinte, o jornalista Sebastião Nery, da Tribuna da Imprensa, escreveu que seu filho e os colegas ouviam a música como se fosse o Hino Nacional. Desta vez, porém, o elogio “deu ruim”, e Nery foi chamado para depor.
A partir daí, surgiram rumores de que a repressão vetaria o samba. “Ninguém sabe o porquê da proibição de ‘Apesar de Você’ no show de Elizeth Cardoso no Canecão. A melodia deveria encerrar o espetáculo, sendo, entretanto, interditada”, registrou, no dia 12 de abril, o colunista Carlos Swann, do O Globo. Já em 30 de abril, o jornal carioca dizia: “Chico Buarque de Holanda, que chegou ao Recife acompanhado do MPB-4, para apresentação no Geraldão, nada sabe sobre a censura de ‘Apesar de Você’, que continua entre as mais tocadas do país”.
Uma semana depois, no dia 7 de maio, há exatos 50 anos, os veículos de comunicação receberam uma nota oficial informando sobre a proibição da faixa. “Para mim, é surpresa”, comentou o próprio compositor. “Antes de gravar a música, mandei a letra para a Censura Federal de Brasília, que a liberou. Depois, tive alguns probleminhas que foram completamente resolvidos. Agora, acho bastante estranha esta atitude, se realmente ocorreu, pois a música está superconhecida e há cinco meses em cartaz.”
Para não restar dúvida, militares invadiram a fábrica da gravadora Phillips e destruíram as cópias ainda no estoque. Além disso, exemplares do compacto à venda nas lojas foram recolhidos e destruídos. Ainda que já fosse um sucesso, a canção foi totalmente proscrita, não sendo executada por anos e nem mesmo mencionada na imprensa.
Chico Buarque já estava na mira da repressão havia anos, devido a obras consideradas “subversivas”, como a peça Roda Viva, que estreou no Rio em janeiro de 1968. Ao participar da Passeata dos Cem Mil, também no Rio, em 26 de junho daquele ano, o artista entrou de vez na mira da ditadura e da extrema-direita. Em 19 de julho, quando Roda Viva estreou no Teatro Galpão, em São Paulo, cerca de 20 fascistas do grupo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiram o local com cassetetes e socos-ingleses, agrediram o elenco e quebraram todo o cenário.
Em 13 de dezembro de 1968, o governo decretou o Ato Institucional 5 (AI-5) – um “golpe dentro do golpe” que, na prática, autorizou a prisão arbitrária, a tortura e a morte de opositores políticos. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram encarcerados e, depois, exilados. No dia 4 de janeiro de 1969, Chico partiu em viagem previamente marcada à Itália e, temendo ser preso na volta, decidiu ficar por lá mesmo.
De início, o cantor e compositor achou que poderia se manter na Europa fazendo shows em Florença, Mônaco, Saint Remo… – mas a realidade era outra. Não havia mercado para a música brasileira no Velho Continente. Os convites para shows se tornaram raros. Sem condições de recusar ofertas, ele aceitou sair em turnê pela Europa, acompanhado de Toquinho, abrindo shows para a diva do jazz Josephine Baker.
Chico viveu 14 meses na Itália. Sua primeira filha com a atriz Marieta Severo, Silvia Buarque de Holanda, nasceu no país. O casal estava “grávido” de novo quando, sem trabalho e sem grana, decidiu que não dava mais para ficar na Europa. “Depois de dois meses, eu já não tinha o que fazer por lá”, declarou o próprio Chico à imprensa em 15 de julho de 1979. Mas ele não podia retornar na surdina. Seria um prato cheio para a repressão prendê-lo sem ninguém saber, como ocorreu com Caetano.
“Eles estavam muito duros na Itália, foi um período complicado nesse sentido. No Brasil, ele teria convites para shows e tinha direitos autorais a receber”, diz a jornalista Regina Zappa, biógrafa do cantor e autora de diversos livros sobre a carreira dele. “Quando decidiram que era realmente preciso voltar, Vinicius de Moraes o aconselhou a ‘chegar fazendo barulho’. Mesmo assim, ele veio para o Brasil sabendo que não havia garantias de que ele não seria preso ao chegar”.
Chico e os amigos espalharam para todo mundo a data e o horário da chegada do voo: às 8 horas do dia 20 de março de 1970. Quando o avião baixou no Galeão, havia uma claque de famosos, como Paulinho da Viola, Nelson Motta e Betty Faria, além de um grupo de repórteres de diferentes jornais. “Volta de Chico Buarque deu festa para a noite inteira”, dizia o título da reportagem do Globo, que descreve a recepção armada no então badalado restaurante Antonio’s, no Leblon, na Zona Sul do Rio.
“O meu whisky é sem gelo, Manolo… Já esqueceu de mim?”, brincou ele com o conhecido proprietário do restaurante. No mesmo tom, Manolo disse que até deixara a barba crescer, como promessa, e só a rasparia quando o cantor retornasse ao Brasil.
Só que o Brasil nos “anos de chumbo” não era um país muito de festa. No período mais duro da repressão militar, agentes usavam as armas garantidas no AI-5 para sufocar a repressão. Foi a época dos sequestros de embaixadores, dos assassinatos em porões da ditadura. A maior parte dos desaparecidos políticos foi presa entre 1969 e 1974. Além disso, o nacionalismo extremista alimentado pela propaganda oficial estava entranhado, o que ficava claro em adesivos de carros onde se lia “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Foi nesse clima sombrio que Chico compôs Apesar de Você. Para pesquisadores da obra do autor, o “você” do verso-título pode ser tanto a própria ditadura quanto o general Emílio Médici, então presidente do País. O autor escreveu a letra e submeteu à censura achando que poderia muito bem não ser aprovada. Mas o censor encarregado de avaliar a canção comeu mosca e não viu a mensagem escondida em versos como “Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar”.
Ao se ver numa involuntária humilhação pública, a ditadura reagiu. O militar responsável pela liberação da música foi punido, mas não tanto quanto o próprio Chico, que passou a ser ainda mais tolhido. Chamado a depor, o artista carioca teve a frieza de dizer, diante da polícia política, que o “você” da letra era uma “mulher mandona, autoritária”. Mas não teve jeito.
“De cada três músicas que faço duas são censuradas. De tanto ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu mesmo estou começando a me autocensurar. E isso é péssimo”, disse o poeta antes de um show no Canecão, segundo a edição do Globo de 15 de setembro de 1971.
A partir daí, Chico teve vários trabalhos censurados, como a música Cálice, composta em parceria com Gilberto Gil. A peça Calabar – O Elogio da Traição, escrita por Chico e Ruy Guerra, foi proibida no dia da estreia, 20 de outubro de 1974, no Rio, quando a produção, a cargo de Fernando Torres, já estava toda pronta. No mesmo ano, Chico lançou o sugestivo Sinal Fechado, disco inteiro com músicas de outros autores, à exceção da faixa Acorda, Amor, assinada por Julinho da Adelaide, pseudônimo que inventara para despistar a repressão.
A perseguição só foi atenuada em 1977, quando até mesmo Apesar de Você voltou às rádios. No ano seguinte, a canção figurava como a última faixa do lado B do álbum Chico Buarque. Porém, em entrevista a Nelson Motta, o compositor disse que não ficou muito feliz ao incluir a música. Segundo o cantor, esta e outras canções pertenciam “ao passado” – e ele chegara a pensar em deixar a faixa de fora do LP.
“Apesar de Você é um desabafo que tem um tom alegre, mas sem deixar de ter um tom de revolta. E revolta não é o tom das músicas que estou fazendo agora”, afirmou Chico. “Cheguei a pensar se deveria excluir, mas achei que poderia ser uma atitude pirracenta e até infantil. A gente mais nova nunca ouviu a música, que já tem oito anos e ficou marcada por ter sido lançada e proibida. Sabendo que as pessoas gostariam de ouvi-la, não me achei no direito de não gravá-la.”
Roniere Menezes, professor de Literatura da Cefet-MG e pesquisador da obra de Chico, observa que Apesar de Você “é um samba que começa com um coro, como se fizesse referência a uma vontade popular, e depois entra a voz do poeta cantor, envolvido num momento duro do presente e sonhando com um futuro”. Segundo Roniere, há duas leituras preponderantes da canção: “Alguns especialistas criticam a ideia utópica da letra, questionando a falta de uma ação para se chegar à mudança. Outros acham que a utopia na letra deve ser vista, por si só, como uma tentativa de reconfigurar o presente. ‘Amanhã vai ser outro dia’ é uma denúncia do presente”.
Com informações do Blog do Acervo (O Globo)