Pandemia leva rede privada a pedir ajuda ao SUS, a ‘Geni’ da saúde

Quem analisa as condições de trabalho do Sistema Único de Saúde e avalia seus resultados, se impressiona. Mesmo diante das diversas sabotagens – institucional, política e econômica – ele continua salvando vidas.

O momento é este, o SUS precisa ser defendido, é mais do que necessário listar todos os maldizeres, mentiras e, principalmente, a verdade sobre o sistema. O sensacionalismo barato, mas muito bem pago pelos endinheirados do suposto ser etéreo “mercado”, sempre explorou as fragilidades do sistema sem mostrar as verdadeiras causas das suas limitações. A classe dominante[1], patrocinadora permanente da sabotagem contra o sistema público, usa seu poder econômico para difamar o SUS, por um lado, e vender uma miragem privatista da saúde à população, por outro.

Por meio de propagandas fantasiosas afirma-se que os serviços privados em saúde são “ótimos” por essência e que todos podem ter acesso a tais tratamentos. O que não se diz é que esse modelo nunca se efetivou em lugar nenhum do planeta de forma eficiente e efetiva. Por isso, ao longo dos anos, o SUS vem sendo a Geni da classe dominante do Brasil, mas com a chegada do Zepelim, os falsos mitos foram desnudados (“Joga pedra na Geni/Joga bosta na Geni/Ela é feita pra apanhar/Ela é boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni” – versos de “Geni e o Zepelim”, de 1978, do Chico Buarque).

O SUS que cuida de toda a população indistintamente, independentemente da cor, do sexo, da opção sexual e política, da renda e das condições sociais, mostrou a que veio diante da maior pandemia dos últimos 100 anos. E os vendilhões da eficiência privada tiveram que ceder à dura realidade da sua incapacidade diante do desafio e pedir ajuda a quem de fato atende em primeira e última instância toda a sociedade.

Com a pandemia, o número de hospitais privados pedindo leitos de internação ao SUS foi considerável. Somente em São Paulo, a famosa cidade do “mercado”, hospitais privados solicitaram diversas vezes leitos de UTI ao SUS, por meio da prefeitura. De acordo com o noticiário, a “Prefeitura de São Paulo encontrou 10 vagas de UTI na rede pública para hospitais particulares que solicitaram leitos. Em quatro dias, foram requeridas 30 vagas por hospitais particulares” .

Em outros casos, o deus “mercado”, vulgo as famílias mais ricas, elevou os preços dos “kits intubação” em cinco vezes, aproveitando a oportunidade sórdida de lucrar com o momento, inviabilizando diversas compras pelos próprios hospitais privados. Em função disso, o SUS por meio das Secretarias da Saúde de diversos estados deu suporte de última instância aos hospitais privados para que vidas fossem salvas. A Secretaria de Saúde do Espírito Santo (SESA) emprestou cerca de 14.525 medicamentos do “kit intubação” a seis hospitais , sendo uma realidade também seguida por outros estados, como Ceará e Santa Catarina, por exemplo.

Detalhe, o termo da ação usado a todos estes estados foi “emprestar”, algo que dificilmente caberia numa lógica de mercado. Em outras palavras, eu empresto e você devolve, quando puder, sem qualquer ação mercantil nesta relação (“É a rainha dos detentos/Das loucas, dos lazarentos/ Dos moleques do internato/E também vai amiúde/Com os velhinhos sem saúde/E as viúvas sem porvir/Ela é um poço de bondade/E é por isso que a cidade/Vive sempre a repetir”)

O SUS é a Geni de uma sociedade que não entendeu as raízes dos seus problemas e se pauta, ainda, por falsos simbolismos mercadológicos. Talvez, diante do Zepelim aterrador da COVID-19, a população consiga enxergar o que de fato importa. Qualquer um que analise, minimamente, as condições de trabalho do Sistema Único de Saúde e avalie os seus resultados sempre se impressiona. Não é de hoje que o SUS mostra suas marcas. Mesmo diante das diversas sabotagens – institucional, política e econômica -, o SUS, heroicamente, salva vidas.

1.Sabotagem institucional: aplicação de leis não condizentes com a realidade do setor, tal como, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Aplica-se um rigor desmedido a um setor intensivo em mão de obra, ao exigir que o gasto com pessoal não ultrapasse 50%, sendo que o setor de saúde atua com 70% dos gastos com pessoal na média mundial. O que abriga, por sua vez, os gestores a contratarem serviços de terceiros (setor privado) em desarmonia com a gestão laboral não isonômica dos profissionais, gerando ineficiências dentro do processo dos cuidados em saúde.

2. Sabotagem política: novas leis que congelam e inibem os investimentos no sistema público enquanto abrem espaço para gastos públicos no setor privado. A lei do Teto dos Gastos, Emenda Constitucional nº 95 é o exemplo máximo recente. O Congresso, através de forte lobby privado dos meios de comunicação, introduziu constitucionalmente uma política neoliberal de austeridade aos gastos sociais, congelando por 20 anos os investimentos, dentre outras áreas, em Educação e Saúde, algo jamais visto no mundo. Isto porque, nenhum país se desenvolve sem investir em Educação e Saúde.

3. Sabotagem econômica: aplicação de restrições aos gastos públicos direto em saúde e facilitação simultânea ao uso dos recursos públicos de forma indireta pelo setor privado. A ausência de limites e classificação para restituição do Imposto de Renda para grandes gastos com saúde, especialmente aqueles não reconhecidos e enquadrados na política universal do SUS, são um dos mais importantes vazamentos de recursos do sistema público. Sabota em dupla perspectiva, primeiro, no descasamento da política pública concreta de saúde e, segundo, garantindo demanda aos novos procedimentos ainda não validados pelo setor privado hospitalar que retira recursos diretos da fonte dos usuários do SUS. Soma-se a isto o não pagamento dos ressarcimentos pelo setor privado, uma vez que vários beneficiários dos planos de saúde usam o sistema público diante do não atendimento pela rede privada contratada.

Se considerarmos que o Brasil é um país continental, com cerca de 8,5 milhões Km², os seus resultados alcançam dimensões extraordinárias. Diferentemente de um país pequeno em termos territoriais, onde os custos logísticos são inferiores, o SUS conseguiu praticamente universalizar a Atenção Básica, ampliando oferta de estabelecimentos em municípios antes descobertos.

A Figura1 mostra que 70% dos municípios (em sua grande maioria cidades de até 20 mil habitantes) possuem, em média, seis estabelecimentos básicos públicos. Os municípios com até 50 mil habitantes possuem, em média, 14 unidades, revelando maior homogeneização da capacidade instalada própria pública da saúde.

A capilaridade das unidades básicas de saúde públicas é fundamental para garantir a efetividade de políticas de saúde básica, especialmente em momentos como este, de pandemia, com profissionais treinados e estrutura própria para a vacinação em massa da população.

Figura 1 – Estabelecimentos Atenção Básica Público (verde) e Privado (roxo) – 2015/ Fonte: Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil-CNES; Agência Nacional de Saúde Suplementar-ANS. Elaboração: Própria.

Entretanto, para o setor privado, o objetivo é outro. A busca incessante por lucro fechou mais de 25 mil estabelecimentos de Atenção Básica, entre os anos 2008-2015, e passou a se concentrar nos grandes centros urbanos em Média e Alta Complexidade. Numa lógica estritamente empresarial para elevar as margens de lucro e descasado de qualquer meta sanitária mais universal, o setor privado promove uma verdadeira descobertura dos serviços na área de saúde em quase todos lugares do país (ver tese de doutorado: Política de saúde, questão regional, efetividade e equidade de gasto: subsídios contra ajustes injustos no SUS).

Contudo, assim como toda má fase passa, a pandemia também irá passar. O SUS sabotado terá salvo milhares de vidas com seus parcos recursos no sistema público e, principalmente, no setor privado. O alívio virá com a superação da crise global sanitária.

“Num suspiro aliviado/Ela se virou de lado/E tentou até sorrir/Mas logo raiou o dia/E a cidade em cantoria/Não deixou ela dormir”. Mas, será que vão continuar jogando pedra e bosta na Geni?

[1] O termo “elite” não se aplica ao restrito grupo de bilionários do Brasil, visto que em grupo, essa gente endinheirada destrói seu próprio país por lucro e ódio de classe. Possui instintos próprios de uma classe dominante atrasada e altamente subdesenvolvida.

Fonte: Brasil Debate

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