Suspeição de Moro contra Lula: um “caso fácil” politizado
O que no Direito pode ser fácil, na política pode “complicar”. E aí se esquece que é o Direito que deve conter a política e não é a política que vale mais do que o Direito
Publicado 22/04/2021 11:19
É pacífico na área jurídica que existem casos fáceis (easy cases) e casos difíceis (hard cases). Com o tempo, foi acrescentada uma nova categoria: a dos casos trágicos (tragic cases). E o que são os tragic cases? É quando um “caso fácil” é politizado. Quando ele tem nome, sobrenome e CPF na capa. Pegue-se um caso bem simples, em que as provas estão escancaradas e ponha-se uma boa pitada de mídia narrativista, uma boa dose de uso estratégico do Direito e, pronto: teremos a tempestade perfeita para a formação de um “caso trágico”. A fórmula não falha.
Claro que o caso de Sergio Moro – e é à sua suspeição, esculpida em Carrara, que aqui nos referimos – é algo que se pode e deve corrigir pela Suprema Corte. Para tanto, basta que se siga a boa doutrina processual penal (e não a do processo civil), e que se assente que a suspeição é uma condição pessoal, intransferível. Sendo bem simples, a suspeição é como peste: onde o juiz suspeito meteu a mão ou onde respirou, contaminou. Ela é mais grave que tudo, porque mexe com o “sagrado do Direito”, a imparcialidade.
Todavia, nem sempre as coisas fáceis são assim entendidas. O que no Direito pode ser fácil, na política pode “complicar”. E aí se esquece que é o Direito que deve conter a política e não é a política que vale mais do que o Direito.
Explicaremos: desde o início, a defesa de Lula sustentou que o juízo de Curitiba era incompetente para julgar os casos que envolviam o ex-presidente. Ocorre que Moro, porque sempre foi parcial e suspeito, manipulou a competência, criando uma pancompetência. Perseguiu a jurisdição sem qualquer tipo de pudor ou constrangimento. Algo como “usou gasolina Petrobras, traz pra mim o processo” (aliás, essa brincadeira é de autoria da força-tarefa Tarefa do Ministério Público). Moro manipulou o caso do ex-deputado José Janene (isso está na página 228 do livro da juíza Fabiana Alves), caso esse, aliás, equivocadamente esgrimido pelo ministro Marco Aurélio Mello no julgamento da quinta-feira 15. Veja-se que a correta visão de fatos ajuda a entender o Direito. Se começa mal, termina mal.
O caso é tão simples que o ministro Edson Fachin decidiu pela incompetência de forma monocrática. E decisão monocrática é só para easy cases. Malgrado a afetação, fruto de juízo arbitrário, para além de discricionário, tem-se que essa escancarada incompetência alcançou o expressivo resultado de oito votos contra três.
Isto é, descontados os votos que confundiram processo civil com processo penal – especialmente o de Kassio Nunes Marques, que mais se baseou na denúncia original do Ministério Público do que no HC propriamente dito –, sobra o voto um tanto diferente do ministro Marco Aurélio, que, depois de proferir decisões garantistas durante muitos anos, agora, no crepúsculo de sua estada no STF, nega o uso de habeas corpus com fundamento de que a questão da incompetência teria sido julgada, fazendo um verdadeiro turning point nas suas posições anteriores.
Um registro importantíssimo. A afetação da suspeição havia sido proposta pelo ministro Gilmar Mendes em 2018, mas foi negada por 3 votos a 2. Fato relevantíssimo. Portanto, ao ser negada, firmou-se o juízo natural: a segunda turma. Observe-se: o ministro Fachin, que era o relator, foi contra a afetação naquele momento. Afetação que ele mesmo poderia, ao seu discricioarbítrio, ter feito, até mesmo à revelia da turma. Por que só o fez agora que o resultado foi desfavorável à sua tese?
Mais uma razão, ou a principal, de se poder dizer que a suspeição é causa finita. Resta agora estender seus efeitos. O caso do tríplex é o paciente zero da pandemia de parcialidade. Basta seguir o rastro do vírus.
Permitimo-nos repetir. O caso é tão simples que nem é necessário discutir a teoria do juiz aparente. Moro foi incompetente – e assim permaneceu durante anos – exatamente porque era suspeito. Não há como aproveitar provas produzidas sob a presidência de um juiz que reúna as duas mais graves máculas processuais num só corpo: a incompetência e a suspeição.
Também é intrigante se falar em (in)competência relativa em razão do lugar. Dizer que a incompetência, por ser nulidade relativa, teria de provar o prejuízo, é como uma ordália invertida. Qualquer condenado por juízo incompetente tem prejuízo “ontológico”. É ou não é verdadeiro que ser julgado pelo juízo natural e por um juiz imparcial são as coisas mais importantes do Direito? Como querer dizer que existe meia nulidade?
Estando, pois, a suspeição julgada no juízo natural, não tem sentido o STF ter de dizer que “sim, houve suspeição, porém ela fica ‘prejudicada’ pela incompetência do juízo”. Suspeição de juiz e incompetência de juízo são coisas diferentes. Uma pode decorrer de outra. Mas não se pode querer sustentar que a incompetência precede ou prejudica o vício da suspeição. Não se podem misturar ovos com caixa de ovos, alertava Norberto Bobbio.
Veja-se: se a suspeição foi declarada, para que ela desaparecesse teria de ser rejulgada. Acaso o STF determinasse a sua prejudicialidade, teríamos a mais arrebatada ficção jurídica já feita: um juiz suspeito que grampeou advogados do réu (para citar apenas esse ato) é declarado suspeito-parcial pelo juízo natural, mas seus atos valem porque sua suspeição foi considerada prejudicada. Ela existe, mas não existe.
No mais, esta hipótese daria ao plenário do Supremo poderes de instância recursal das decisões das turmas. Nada mais exótico, para dizer o menos.
Na verdade, o que fica para a história do Direito e será material para os arqueólogos e suas escovas é bem mais simples: pela primeira vez, por razões político-ideológicas, um juiz atuou em processos para os quais não era competente, manteve preso um réu por mais de 500 dias, afastou-o da corrida presidencial, limpando a cancha para seu adversário vencer e, ainda por cima, foi ser ministro do novo governo. E a história registrará que assim o fez porque conseguiu um feito único: ser, ao mesmo tempo, incompetente e suspeito. Não é para qualquer um.
Publicado originalmente na CartaCapital