Esther Solano: por que os fiéis vão às igrejas na pandemia?
Se quisermos as igrejas fechadas, temos de exigir um Estado aberto a todos
Publicado 20/04/2021 14:26 | Editado 20/04/2021 15:18
Quando pensamos em igreja, deveria vir à mente esperança e fé, como se fosse um fio composto de uma combinação estranha de metais, às vezes frágil demais, às vezes forte demais, que conecta as dores do conhecido mundo daqui com o futuro de um certo lá. Acontece que hoje, no Brasil, igrejas e templos são locais de morte, de cadáver, doença, contágio. O inferno que a Bíblia descreve e que tantos padres e pastores se empenharam durante séculos em combater resume-se atualmente nos templos abertos, com aglomerações. Fiéis a orar, cantar, louvar, se contaminar, morrer.
Leio neste momento um livro excepcional do mexicano Guillermo Arriaga. Chama-se Salvar el Fuego. O personagem principal, um parricida que se diz “ateu militante”, descreve Deus como “a literatura de ficção mais bem narrada da história”. Gostei da definição, mas, mesmo que Deus seja de fato um herói ou um vilão meramente ficcional, estaria puto da vida com essas igrejas abertas, a congregar e matar. O show deve continuar, amigos, o dízimo também, mas…
A vida nunca está desenhada com cores perfeitamente definidas. Sempre há variações, tons, uma infinidade de possibilidades cromáticas que variam segundo o ângulo da luz ou o ângulo das sombras. Há cultos que abrem e lotam, pois o pastor chama (do outro lado do prisma a luz muda de cores) e porque os fiéis assistem. Seguidores frequentam missas nas quais as distâncias de segurança interpessoal não podem ser mantidas, mesmo sabendo que isso significa risco de contágio.
Acho que todos me conhecem para saber que detesto, abomino, aquela imagem simplória que coloca todo fiel, sobretudo o pentecostal e o neopentecostal, como um analfabeto que acredita em feijão milagroso para curar o coronavírus e está perpetuamente submetido ao pastor, como um autômato, como um sujeito sem desejos, sem biografia, sem nome. O fato é que não poucos saem das suas casas e vão às igrejas, mesmo sabendo que o risco de contágio é muito menor se permanecerem em casa. Por quê?
Essa para mim é a pergunta. Eu sei bem o motivo de o ministro Kassio Nunes Marques permitir a abertura das igrejas, eu sei bem a razão de Edir Macedo querer congregar fiéis em meio a um surto de morte, ao mesmo tempo que ele e a esposa são vacinados em Miami. A gente sabe disso, mas essas não são as perguntas relevantes, nem as difíceis nem as desafiadoras.
Ao longo da nossa pesquisa de campo com classes C e D nesses últimos meses, eu e meus colegas escutamos gente que se acostumou a assistir a cultos online e permanecem em casa por segurança sanitária. Bíblia online, oração online, pastor online. Também entrevistamos cristãos que assistem aos cultos conscientes dos riscos de serem contaminadas ou contaminar alguém. As reflexões são sempre muito parecidas: “Eu preciso do conforto da igreja”, “ninguém cuida da gente aqui na periferia, mas a igreja está sempre aí, repartindo comida, dando uma força”. Essas são as respostas desafiadoras.
No momento em que os brasileiros carecem de cuidados, que estão entregues à morte, no momento em que os pobres morrem em decorrência da Covid-19 mais do que os ricos (porque, falei aqui muitas vezes, doença nenhuma é democrática), no momento em que a pandemia devora vidas e as periferias se sentem abandonadas, jogadas à própria sorte, o pastor está lá, o irmão e a irmã da igreja estão lá, onde a prefeitura não está, onde o governo não está, onde o partido de esquerda não está. É isso.
Essa é uma das tonalidades que aparecem quando mudamos o ângulo da percepção da vida, o ângulo da pergunta, uma das cores que aparecem se enxergamos com cuidado por trás das perguntas óbvias. Com tanta frequência, a igreja está lá e os outros não. A pandemia é questão de saúde física, mas também de saúde mental, de cuidado com as emoções, com os medos, com os terrores, com a solidão, com a falta de perspectivas, com o cansaço, com o desemprego, a falta de comida da mesa, a conta não paga.
Nesse contexto de horror, cuidar do corpo e cuidar da mente, da alma, do coração (chame cada um como quiser) é igualmente importante. E quem cuida da mente, do coração e da alma daqueles que estão abandonados? Da mãe da periferia esgotada por cuidar dos filhos? Do marido e da mulher desempregados? Quem garante conforto, alívio, acolhimento, paz, quando os que deveriam cuidar preferem maltratar?
Tonalidades que aparecem quando fazemos perguntas que não são óbvias. Se quisermos as igrejas fechadas, temos de exigir um Estado aberto a todos. Muitas vezes, infelizmente, Deus é o único que fica quando todos os outros vão embora e apagam a luz.
Publicado originalmente na CartaCapital