CFM alega não aprovar tratamento precoce no Senado, mas é criticado
Senadores criticaram o Conselho de Medicina por autorizar o uso de medicamentos, gerando desinformação e contribuindo para o caos de mortes. Especialistas também lamentaram a decisão.
Publicado 19/04/2021 19:40 | Editado 19/04/2021 19:48
Durante audiência pública da Comissão Temporária da Covid-19 do Senado na manhã de hoje (19), o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Donizette Giamberardino Filho, esclareceu que “o Conselho Federal de Medicina não recomenda e não aprova tratamento precoce e não aprova também nenhum tratamento do tipo protocolos populacionais [contra a covid-19]”.
Ano passado, o conselho aprovou parecer que facultou aos médicos a prescrição da cloroquina e da hidroxicloroquina para pacientes com sintomas leves, moderados e críticos de covid-19.
Segundo o médico, o que o CFM fez foi uma autorização fora da bula [off label] em situações individuais e com autonomia das duas partes, “firmando consentimento esclarecido [médico] e informado [paciente]”. Em nenhum momento ele [o CFM] autorizou qualquer procedimento experimental fora do sistema CRM/CFM.
“Esse parecer não é habeas corpus para ninguém. O médico que, tendo evidências de previsibilidade, prescrever medicamentos off label e isso vier a trazer malefícios porque essa prescrição foi inadequada, seja em dose ou em tempo de uso, pode responder por isso”, avaliou Donizette.
CFM na berlinda
Perguntado por senadores sobre uma revisão de posicionamento do CFM diante de evidências científicas de ineficiência dessa prescrição, o médico disse que a entidade está frequentemente reavaliando condutas, mas que nesse caso, especificamente, só uma decisão de plenário poderia reverter a orientação dada em abril do ano passado.
“O Conselho Federal estuda a todo momento. Esse parecer pode ser revisto? Pode, mas é uma decisão de plenária, eu não posso fazer isso por minha opinião. O que eu repito é que a autonomia é limitada ao benefício. Quem ousa passar disso, responde por isso”, garantiu.
Zenaide Maia (Pros-RN), que é médica, questionou se o órgão permanece com a mesma posição “mesmo depois de um ano de pandemia e vários estudos científicos terem comprovado a ineficácia dos medicamentos”, como a ivermectina e o hidroxicloroquina. Já Kátia Abreu (PP-TO) considerou a posição do conselho semelhante à do governador romano da Judeia, Pôncio Pilatos, que lavou as mãos, condenando Jesus Cristo à morte.
“Vocês [do CFM] lavaram as mãos. Poderiam ter dado uma grande contribuição ao país, e não deram. Preferiram obedecer a burocracia. Enquanto isso, morrem quase 400 mil pessoas no Brasil”, protestou.
Na opinião de Zenaide, mais grave que efeitos colaterais comprovados cientificamente, como a insuficiência hepática pelo uso dos medicamentos, é a falsa impressão de segurança que a liberação dada pelo CFM promoveu junto aos cidadãos.
“Isso levou as pessoas a irem às ruas e deixarem de usar máscaras. Eu sou médica, mas não posso achar que um medicamento é bom e prescrevê-lo aos meus pacientes. Medicina não é achismo”, observou.
Desinformação
A ciência aliada à medicina, à vacinação em massa e a uma comunicação adequada do governo foi o ponto comum do debate. Kátia pediu que a comissão realize um estudo que ajude o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a orientar o governo federal a realizar uma campanha de massa que conscientize a população sobre as medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia.
— Não é possível termos campanhas maravilhosas do Tribunal Superior Eleitoral instigando as pessoas a fazerem o voto correto nas eleições e não termos uma propaganda urgente e maciça que oriente as pessoas sobre o uso de máscaras e vacinação e diga que o uso desses medicamentos não tem evidencia científica.
O relator da comissão, senador Wellington Fagundes (PL-MT), considerou a desinformação o maior problema do Brasil na atualidade e disse que o governo federal erra na forma de se comunicar com a população. O parlamentar ressaltou que a política de saúde brasileira é elaborada pelo Poder Executivo, mas observou que a execução das ações de combate ao coronavírus cabe aos estados e, principalmente, aos municípios. Wellington disse ainda que medidas de isolamento impostas pelos estados para conter o vírus são necessárias, mas devem ser feitas com critério e bom senso.
“É preciso melhorar a comunicação com a população para esclarecer o que é uma pandemia, ou seja, um problema alastrado no mundo inteiro. Infelizmente nossos meios de comunicação estão sendo usados erroneamente. Até agora, estamos perdendo vidas, justamente por não termos uma informação correta e adequada”, declarou.
Politização
Já a microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (ICQ), da Universidade de São Paulo (USP), ressaltou que existem vários tipos de estudos científicos que têm sido reportados para tentar validar o uso do chamado kit covid ou tratamento precoce, que causaram controvérsia no Brasil. Segundo ela, os melhores estudos nessa área mostram que vários componentes desse kit já foram desmentidos.
“Não é que não existem evidências ainda; é que já existem evidências de que esses medicamentos não funcionam. Para cloroquina e hidroxicloroquina, nós temos mais de 30 trabalhos feitos no padrão ouro que mostram que esses medicamentos não servem para covid-19. Para ivermectina, nós temos trabalhos também que demonstram que não serve e uma série de trabalhos que são muito malfeitos e muito inconclusivos. Infelizmente, muitos médicos acabam se fiando nisso”, criticou.
“Anticoagulantes não são indicados para o tratamento. Inclusive, alguns são perigosos para a saúde. Antibióticos não devem ser receitados para infecções virais, e esse kit está sendo prescrito indiscriminadamente no Brasil. Há perigos em receitar esses medicamentos, principalmente num momento frágil, onde as pessoas estão desesperadas e com medo e os médicos precisam de respaldo claro do Ministério da Saúde para ter tranquilidade.”
A pesquisadora defendeu que a ciência vem para ficar de mãos dadas com a Medicina e com a saúde pública, e não para antagonizá-la. “A ciência serve para embasar a medicina, para que médicos tenham a tranquilidade de receitar medicamentos que eles sabem que passaram por esses testes e que, por isso, por haver uma base científica, podem receitar”, acrescentou.
Para a especialista o Brasil não precisa de posturas públicas que confundam orientações sanitárias; “Nós não precisamos de que a tragédia da pandemia seja utilizada como mecanismo de busca de poder, ou seja, politizada; nós não precisamos de que empresas patrocinem a publicidade do kit covid; não precisamos de posturas públicas alarmistas. Precisamos, sim, de transparência. Precisamos de informação”, defendeu.
Natália Pasternak apontou a municipalização das condutas para evitar a disseminação do vírus como um erro. Para a especialista, o ideal seria que as medidas de distanciamento social atingissem micro e macrorregiões onde haja a circulação das pessoas. Ainda segundo ela, não há sentido, numa região metropolitana, determinado prefeito não fazer o distanciamento, pois essa conduta pode atrapalhar muito a eficácia da medida. Então, nós temos que ter ações mais conjuntas. A municipalização é um direito, mas a descentralização tem limites para sua eficiência”, ponderou.
Outros medicamentos
Os senadores ouviram ainda as considerações da doutora Margareth Dalcomo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz ( Fiocruz). A especialista condenou a utilização de alguns fármacos, que considerou estarem sendo usados de forma “arbitrária” no tratamento do novo coronavírus. Segundo ela, essas drogas não passam de “saquinhos da ilusão”.
“São antibióticos que não têm a menor indicação para uma doença que é viral – antibiótico é remédio usado em doença causada por bactéria –, misturando com vitaminas, com zinco, com corticosteroides, que é um medicamento que só tem indicação em casos específicos de covid-19, com critério médico abalizado naturalmente, e isso mais com anticoagulante, o que piora mais ainda a situação. Anticoagulante também tem indicação na covid-19, porém deve ser usado criteriosamente a partir da avaliação de determinados marcadores clínicos da covid, com os quais nós estamos muito acostumados a lidar”, avaliou.
Médica pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo defendeu o cumprimento de protocolos em todos os níveis para “uma doença tão polimorfa e complexa quanto a covid-19”. Ela disse que o Brasil sofre uma “confusão agravada pelo uso desordenado de esquemas terapêuticos de muito pouca validação”. E considerou perda de energia e de dinheiro o Brasil comprar medicamentos que, segundo afirmou, “não serviram para nada”.
“Os medicamentos desses kits precoces não servem para nada, nós já sabemos disso. Vimos no Brasil uma utilização de tratamento sem base alguma e que resultou, seguramente, não como causa definitiva mas como causa adjuvante, de que o Brasil seja hoje esse país com essa mortalidade que nos constrange enormemente e com uma letalidade que igualmente também nos constrange muito, como médicos. E aí eu estou falando como médica que assiste paciente, que interna paciente, que trata paciente grave em unidade de terapia intensiva.”
Com informações da Agência Senado