Militares negam radicalização: “Alto Comando cansou-se de Bolsonaro”
Mais do que um golpe, perigo é o avanço de Bolsonaro em várias frentes de ataques à democracia
Publicado 31/03/2021 12:02
Em meio à tentativa de radicalização autoritária do governo Jair Bolsonaro, a cúpula das Forças Armadas vive sua maior crise desde a redemocratização. É o que avalia o professor titular da UFRJ Francisco Teixeira, especialista em assuntos militares há quase 30 anos.
Em sua opinião, Bolsonaro aproveitou a pressão dos partidos do Centrão pela demissão do chanceler Ernesto Araújo e fez uma alegada reforma ministerial não para diluir o constrangimento com um revés – mas para avançar peças no tabuleiro. Daí a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e trocas no Ministério da Justiça e na Advocacia-Geral da União (AGU).
Para Teixeira, o risco de Bolsonaro realizar um golpe não existe por enquanto – mas há razões para inquietação. “Agora não tem chance, mas, se houver um segundo mandato, nada o detém”, diz o professor, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos em Defesa Pandiá Calógeras, órgão de assessoramento do Ministério da Defesa. Segundo ele, o perigo é o avanço de Bolsonaro em várias frentes de ataques à democracia, como os processos baseados na Lei de Segurança Nacional e no projeto de lei sobre terrorismo, que visam silenciar a oposição.
Teixeira ressalta que Bolsonaro conseguiu o que queria, ao exonerar Azevedo e Silva e, com isso, provocar a demissão do comandante do Exército, Edson Pujol, ambos contrários ao uso das Forças Armadas para fins políticos. Em protesto, os comandantes da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antonio Carlos Moretti Bermudez, também se juntaram para entregar os cargos. Mas Bolsonaro se antecipou e demitiu os três. O que era uma insatisfação que já havia na cúpula militar se escancarou e abriu uma crise de efeitos ainda não previsíveis.
“O que ele fez foi dizer: ‘Ah, vocês querem que eu tire o Ernesto? Então vou mexer também onde eu quero’”, diz o analista. “O Centrão não ganhou nenhum cargo no Itamaraty, na Defesa, na Justiça e na AGU. As mudanças são para proteger o presidente, sua família e mobilizar suas hostes, radicalizando o tempo todo.”
Teixeira lembra que Bolsonaro forçou a mudança, “não por acaso”, às vésperas do dia 31 de março, que marca hoje os 57 anos do golpe militar de 1964, quando o presidente esperava fazer um “escarcéu” de manifestações antidemocráticas a seu favor. Nesta terça, convocações para atos em frente a quartéis foram intensificadas nas redes sociais.
O professor da UFRJ argumenta que a atuação de Bolsonaro é típica do que o historiador inglês Ian Kershaw, autor de uma biografia Adolf Hitler, classifica como “radicalização cumulativa”, própria de líderes carismáticos e autoritários que vivem de gerar e se beneficiar de crises, e que não agem pelas vias institucionais. “Bolsonaro avança de crise em crise e mira tanto opositores quanto aliados de primeira hora para se cercar de um núcleo de extrema confiança, onde não há críticos. A trajetória de Hitler também é essa, de expurgos e comunicação direta com o povo, entendido apenas como ‘meus’ seguidores, ‘meu’ Exército. O resto todo é inimigo”, diz.
A crise detonada por Bolsonaro carrega, no entanto, um custo para o presidente e vai acelerar o sentimento de intromissão nas Forças Armadas, afirma o especialista. Ex-professor na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), ele foi orientador de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas por militares.
Teixeira mantém conversas por aplicativo de mensagens com 11 ex-alunos, entre os quais seis generais, um almirante e quatro coronéis, da ativa e da reserva. O grupo, diz, anda mais calado ultimamente, mas não deixa de expor suas visões. Primeiro, a de que não há disposição nas Forças Armadas para a aplicação de um golpe, inclusive pelo ressentimento de que foram abandonados no fim da ditadura militar, por setores civis, como empresários, imprensa e religiosos. “Eles falam: ‘todos saíram na primeira oportunidade e nos deixaram sozinhos’”, relata o discurso frequente.
Segundo, o de que grupos de oficiais superiores estão cansados do Bolsonaro. Em terceiro lugar, reservam às eleições de 2022 o papel de solucionar o destino político do governo federal. Sobre a posição da dezena e meia de generais quatro estrelas que formam o Alto Comando do Exército, órgão máximo da força, Teixeira diz que o sentimento também é de decepção com o presidente.
“Eles eram bolsonaristas, mas cansaram. Cansaram com a linguagem, com os erros”, diz. “Esses generais do Alto Comando não são, de maneira alguma, bolsonaristas, muito pelo contrário. As Forças Armadas sempre se acharam o lado B do Itamaraty. Quando começaram aquelas coisas de política externa, ficaram horrorizados com Ernesto Araújo, e depois veio a pandemia. Tudo isso cria uma situação pavorosa.”
Para o professor, o Alto Comando deve criar resistências às investidas de Bolsonaro, com as quais o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, terá que lidar. “Ele chega sem o aval dos colegas, uma coisa inédita”, diz. Ainda que o comandante do Exército a ser escolhido seja mais alinhado a Bolsonaro, Teixeira não vê como a atuação do general possa ir contra o Alto Comando. “O comandante do Exército não toma decisão sozinho.”
O historiador lembra que o ex-comandante Eduardo Villas Bôas, simpatizante de Bolsonaro, confirmou em livro-depoimento que só enviou o famoso tuíte de tom ameaçador em 2018, quando o Supremo Tribunal Federal julgava habeas corpus para o ex-presidente Lula, após consultar o Alto Comando. O professor também lança dúvida sobre o tipo de relação de (des)confiança que há entre Bolsonaro e Braga Netto, ex-interventor federal da segurança pública do Rio, reduto do presidente e onde o Exército colheu informações sobre a atuação de milícias. “Quem é refém de quem?”
Com informações do Valor Econômico