PEC de Bolsonaro compromete serviços públicos e a vida
PEC 186 institui mais um pacote de arrocho fiscal em troca de auxílio emergencial insuficiente
Publicado 30/03/2021 22:34 | Editado 30/03/2021 22:35
Promulgada no dia 15 de março, a Emenda Constitucional (EC) 109/2021 institui mais um pacote de restrições orçamentárias aos serviços públicos. Apesar de decorrer da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186, de 2019, a PEC foi colocada em pauta em 2021, quando o governo amarrou ao seu texto a proposta de auxílio emergencial, num valor sete vezes menor que os recursos investidos no benefício em 2020. Por condicionar a aprovação do auxílio a restrições orçamentárias para os serviços públicos, a medida é vista por especialistas como a “PEC da chantagem”, no caso de José Moroni (Instituto de Estudos Socioeconômicos), ou como a “PEC do arrocho”, como intitula o economista Guilherme Mello (Unicamp). Ambos alertam que, com o aumento do desemprego, da miséria e da fome no país, a medida deve alimentar ainda mais as desigualdades, aprofundadas durante a pandemia. Sem renda mínima e com serviços públicos deteriorados, o que restará à população?
Formulada como “um teto dentro do teto”, como define o economista e professor da Unicamp Guilherme Mello (confira abaixo a edição do Direto na Fonte sobre a PEC 186), a medida institui gatilhos que permitem mais um congelamento de salários a servidores públicos, o que poderá se estender, em alguns casos, até 2036. Além disso, a proibição de novas contratações em instituições públicas e a utilização de saldos de fundos, como o da ciência tecnologia, para pagamento da dívida pública, estão no horizonte.
Colocada como condição para a aprovação do auxílio emergencial, a Emenda Constitucional 109 ainda instituiu um teto para o auxílio emergencial, cujo aporte, segundo o texto, não poderá passar de R$44 bilhões neste ano. Pelo menos 20 milhões de pessoas deixarão de ser contempladas. E as que forem, receberão um benefício menor, que fica entre R$150 e R$375. Para um dos articuladores da campanha Renda Básica que Queremos, José Moroni, diante da necessidade de isolamento social e do parco auxílio, o valor do benefício previsto pela PEC representa uma “afronta à dignidade humana”.
Como funcionará a medida?
A PEC 186, criada pelo governo federal e aprovada pelo Congresso Nacional, altera diversos artigos da Constituição Federal brasileira para instituir novas regras fiscais e colocar um teto no auxílio emergencial. Um dos dispositivos criados é a possibilidade de acionar gatilhos, tanto para o governo federal como para governos estaduais e municipais, no caso de as despesas correntes superarem 95% das receitas correntes. Entre os gatilhos, estão a proibição de concursos públicos e o congelamento de salários de servidores.
Para os estados e municípios, a adoção dos gatilhos será facultativa. No entanto, caso não acolham as restrições, ficam proibidos de contratar novos empréstimos. Para o professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, Guilherme Mello, inicialmente as unidades federativas e os municípios tendem a ser os primeiros atingidos pela medida, pois em muitos casos já se enquadram nas regras. Estima-se que 14 estados já poderiam aderir aos gatilhos. Confira a edição do Direto na Fonte com o professor:
“A PEC não promove um ajuste fiscal imediato. Será para alguns estados e municípios que já estarão automaticamente enquadrados nessa nova regra fiscal. Com isso, não poderão contratar mais funcionários, como professores, médicos, enfermeiros. Não poderão dar aumento salarial, não poderão criar novos gastos obrigatórios. Por exemplo, não poderão ter novos gastos em saúde e inaugurar novos hospitais”. No caso da União, a estimativa é que o teto de 95% da relação entre despesas obrigatórias e correntes será alcançado em 2025.
Com a deterioração dos serviços públicos, o professor aponta o que está no horizonte do governo. “Se a carreira pública não tem perspectiva, se o salário vai caindo a cada ano, se não vai haver novas contratações e novos investimentos, a qualidade do serviço público tende a deteriorar e a deterioração vai levar a uma pressão por privatização. Esse é o grande objetivo da PEC. Quando se impede o Estado de cumprir sua função, abre-se espaço para que empresas privadas ganhem fornecendo aquele serviço para os que podem pagar. O problema é que no Brasil cada vez menos pessoas podem pagar por serviços de educação, saúde, acesso à cultura, segurança”.
Na avaliação do economista, além de acelerar a destruição do Estado, a PEC está mal escrita e permite uma série de distorções, ao inserir no seu texto o conceito de despesa obrigatória, definição que não existe no ordenamento legal. A emenda, indica Guilherme, buscou corrigir problemas do Teto de Gastos de 2016, que dificultava a adoção dos gatilhos de ajuste fiscal por um problema na formulação. No entanto, ela cria novos problemas.
“Se criou a PEC 186, que é uma ideia de que se aciona o gatilho quando os gastos obrigatórios atingirem 95% dos gastos totais. Qual o problema disso? Não existe uma definição legal do que é considerado gasto obrigatório. Alguns órgãos estão acima de 95% porque consideram gastos obrigatórios uma série de gastos que outros órgãos não consideram. Então se cria um espaço para manipulação e pedaladas fiscais gigantescas. Mais uma vez, é uma lei mal elaborada”, indica.
Além dos problemas de elaboração, o economista avalia que há um problema de conteúdo, na medida em que engloba mais um pacote direcionado à destruição do Estado. “E num país com nível de desigualdade do Brasil, a gente sabe que significa tirar o Estado da mediação social: significa jogar milhões na pobreza e na miséria e significa perpetuar a situação de desigualdade”, observa.
O professor diz que há consenso entre economistas do mundo inteiro, incluindo os mais liberais, de que esse não é o momento para medidas de austeridade. “Todos defendem que esse não é o momento de fazer ajuste fiscal, que isso só vai gerar nova recessão. Todos defendem que é um momento de garantir renda para as pessoas e crédito para as empresas, pois se não [fizer isso] vai gerar uma quebradeira com consequências de longo prazo. Todos defendem que é momento de discutir investimento público”, aponta.
Ele cita como exemplo os Estados Unidos, que recentemente lançou um pacote de U$1,9 trilhão para investimentos públicos e linhas de crédito a pequenas empresas. Além disso, ressalta que há uma contraposição falsa evocada pelo governo Bolsonaro, que recorrentemente contrapõe a edição de benefícios sociais à recuperação da economia. “Quando o gasto é bem feito ele se multiplica na economia, gera renda, gera consumo, gera emprego e, portanto, gera arrecadação tributária”.
Em estudo realizado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB), que caiu 4,1% em 2020, poderia ter caído até 15% sem o auxílio. “Sem o auxílio emergencial, a queda do PIB teria sido muito maior do que foi e a relação dívida pública teria sido maior. A relação dívida pública é uma relação da dívida sobre o PIB. Se o denominador cai muito, a dívida cresce, então o auxílio contribuiu para a dívida pública não ficar tão ruim quanto poderia ter sido. Ou seja, o gasto público ajudou na gestão da dívida pública”, indica o economista.
“A estratégia fracassou”
No caso do Brasil, as medidas de ajuste fiscal se aprofundam especialmente após 2016, com a aprovação do Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016), que congelou os investimentos públicos, como aqueles destinados à saúde e à educação, por 20 anos. Aprovação da Reforma Trabalhista, Reforma Previdenciária se somam às medidas de austeridade. A situação de desemprego em massa e de aumento da miséria, que já vinham explodindo antes da pandemia, segundo Guilherme, já alertavam para os perigos dessa política econômica.
Hoje, cerca de 40 milhões de brasileiros vivem em situação de extrema pobreza e 10 milhões em situação de fome, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que também aponta. Os índices de desemprego bateram recordes no país, atingindo 13,4 milhões de pessoas. A informalidade, ainda, atinge cerca de 40% dos trabalhadores.
“Desde de 2016 o Brasil tem apostado na austeridade fiscal, na destruição do Estado a médio e longo prazo, na venda das empresas públicas, na redução do papel dos bancos públicos, na redução dos direitos sociais, na redução dos direitos trabalhistas e previdenciários. Tudo isso nos trouxe à situação atual: maior taxa de desemprego da história, volta da pobreza e da miséria, queda na renda. Claro que a pandemia tem um papel nisso, mas mesmo antes o Brasil vinha muito mal, em uma depressão econômica. No primeiro trimestre de 2020 já havia queda no PIB. Ou seja: a estratégia fracassou”.
Com o governo federal no comando de Jair Bolsonaro e tendo Paulo Guedes orientando a economia, a avaliação do professor é a de que há uma combinação de um patrimonialismo corporativista com um neoliberalismo arcaico. “Essa visão do Guedes é a visão de um neoliberalismo da década de 1970, da Margareth Tatcher e Ronald Reagan, que ninguém mais defende”. Patrimonialismo, explica, é a mistura dos interesses públicos e privados, que marcaram a carreira parlamentar de Jair Bolsonaro e que se expressa, por exemplo, no esquema de rachadinhas que vem sendo investigado na família Bolsonaro. No âmbito do corporativismo, a prática se ilustra na defesa de alguns setores, como as igrejas neopentecostais e os militares, cujo aumento salarial tramita no Congresso apesar do congelamento imposto a outras categorias do funcionalismo público.
A anistia a impostos devidos por igrejas, avalia Guilherme, conflita, ainda, com o discurso de que o Estado está quebrado e que, por isso, é preciso cortar benefícios sociais e restringir o orçamento dos serviços públicos. “Se está quebrado, por que vamos abrir mão de arrecadar imposto? ”, questiona. Deixar de pagar a população mais vulnerável com o argumento de quebrar o Estado, diz o professor, é um “discurso terrorista”.
Fundos públicos na mira
A transferência de saldos de fundos públicos para o pagamento da dívida pública é também um dos mecanismos previstos pela PEC 186. Os fundos atendem a áreas como saúde, educação, assistência social, ciência e tecnologia. Com a aprovação da PEC, os seus saldos podem ser utilizados para outro fim: o pagamento da dívida pública. Cabe destacar que a restrição orçamentária de fundos já foi alvo do governo Bolsonaro. O Fundo Nacional pelo Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT), que financia a Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I), por exemplo, teve recursos bloqueados por vetos do governo Bolsonaro às leis que impediam a sua restrição orçamentária.
Devido à pressão de sociedades científicas no Brasil, os vetos foram derrubados no dia 17 de março. No entanto, o subfinanciamento para a área de pesquisa, ciência e tecnologia são apontados como preocupantes por Guilherme Mello, que também é coordenador da pós-graduação em Economia da Unicamp e presencia com preocupação o corte de bolsas nos últimos anos. “Sem pesquisa não há desenvolvimento, sem ciência não há desenvolvimento. Os outros países vão avançando, vão criando e dominando novas tecnologias, e nós não temos como competir com eles se nós não desenvolvermos as nossas tecnologias, o nosso conhecimento e as nossas inovações”, avalia.
Cortes no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CnPQ) e na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), além dos mais de R$4 bilhões suprimidos da Educação em 2021, são apenas alguns dos pontos que desafiam cientistas a manterem suas pesquisas. A isso, se somam também as interferências do governo federal nas gestões das instituições de ensino superior e o constante cerco negacionista em relação à ciência, que ameaça também a saúde da população na mais grave crise sanitária do século.
A utilização do saldo dos fundos para pagamento da dívida se soma ao conjunto de restrições. E, como aponta Guilherme, foi colocada no texto da PEC por uma artimanha legislativa. O professor indica que é necessário, mais do que barrar a utilização dos saldos dos fundos, rever as regras fiscais que impedem os recursos dos fundos sejam efetivamente gastos nas áreas para as quais foram criados. Os saldos, diz, só são criados porque não puderam utilizar os seus recursos para as áreas as áreas às quais eram destinados. “Não puderam ser gastos devido às regras fiscais brasileiras, que são ensandecidas e que não permitem que esses gastos aconteçam. Então você vai acumulando os recursos não gastos nesses fundos. É fundamental que nós mudemos as regras fiscais para permitir a utilização dos recursos nessas áreas que são cruciais para o desenvolvimento brasileiro”.
“Afronta à dignidade humana”
O auxílio emergencial, com o teto de R$44 bilhões colocado pela PEC 186, irá beneficiar aproximadamente 45 milhões de pessoas, cerca de 20 milhões de pessoas a menos do que em 2020. O valor, para cada beneficiário, terá uma média de R$250 reais. No ano passado, ele contemplou parcelas de R$600 e parcelas de R$300. Na avaliação de José Moroni, membro do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma das organizações que lidera campanha pela renda mínima, esse valor é uma “afronta à dignidade humana”.
Hoje, ele frisa que o valor é suficiente para comprar duas caixas de leite; dois quilos de arroz, dois pães de sanduíche; dois quilos de café; dois litros de óleo; três quilos de feijão; três quilos de farinha; três quilos de açúcar; um pote de margarina e dois quilos de carne moída de segunda. “É isso que se compra com R$250 reais. Uma família de, em média, quatro a cinco pessoas, como vive com 250 reais por mês? Quando se fala de auxílio emergencial, estamos falando basicamente de as pessoas poderem comprar comida e poderem ficar em casa durante a pandemia. O auxílio é para isso, então tem que ser de um valor para que as pessoas tenham no mínimo. Isso que não estamos falando de outros gastos, como luz, água, internet, que são fundamentais”, observa.
Durante 2020, o auxílio emergencial, segundo pesquisa do Data Favela, foi utilizado por 95% dos beneficiários para itens de alimentação. Dentre eles, 70% ajudaram familiares e amigos a comprar alimentos, evidenciando a volta do problema da fome no país. Ainda, segundo o Datafolha, 44% dos que receberam o auxílio não tinham outra fonte de renda.
Para 2021, o auxílio, que só deve ser pago a partir de abril, além do valor menor, poderá ser recebido apenas um membro por família. Devido à limitação orçamentária e o agravamento da pandemia, cujas medidas de controle necessárias apontam para o direito de se proteger, ficando em casa, José Moroni indica que o Inesc e outras entidades estão entrando judicialmente com recursos para barrar o teto de R$44 bilhões. Nesta quinta-feira (25), governadores também assinaram documento solicitando que o governo suba o benefício para R$600.
“Uma pauta dúbia”
A amarração do auxílio emergencial a um novo pacote de restrição orçamentária para os serviços públicos, na avaliação do professor de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão, conformou uma “pauta dúbia” que dificultou o entendimento da proposta. As novas presidências da Câmara de Deputados e do Senado Federal, mais alinhadas ao governo Bolsonaro, avalia, também contribuíram para que a PEC 186 fosse aprovada rapidamente. Soma-se a isso o caráter de urgência, que fez com que a proposta fosse apreciada e aprovada em poucos dias.
Além disso, o teto de R$44 bilhões para o auxílio foi inserido já no fim dos prazos para as modificações da PEC. “Era uma pauta dúbia, por um lado positiva por conter o auxílio e por outro vinha a pancada do ajuste fiscal sem precedentes. A partir disso, houve dificuldade de estabelecer uma pauta concreta na oposição e a dificuldade de mobilização. Realmente essa PEC trouxe muitas dificuldades também para as pessoas compreenderem o tamanho do problema”, observa.
O quórum alto da votação (no Senado, 62 senadores votaram a favor e 11 contra e na Câmara, 341 deputados a favor e 121 contra) é explicado pelo professor também como uma decorrência da composição do Congresso, que é apontado como o mais conservador da história do país. “Tivemos a eleição de um Congresso muito conservador e pautado por uma visão privatista – no sentido da venda do Estado brasileiro e do Poder Público e no sentido de conceder benefícios a certos grupos do país”.
A avaliação dos servidores públicos como inimigos, indica Wagner, é prejudicial não só para o funcionalismo, mas para a população em geral, na medida em que coloca em xeque a própria continuidade do serviço público. “O governo está operando uma guerra contra o serviço público, com uma visão de Estado mínimo como nunca vimos no país. Estamos chegando numa situação em que o atual governo não tem sensibilidade para o sofrimento da população. Essa PEC tem tudo a ver com aquela metáfora que Guedes utilizou de colocar a granada no bolso do servidor. Mas coloca não só para os servidores, e sim para a população em geral”.
Tentar colocar na agenda de discussão outras medidas fiscais que não sacrifiquem direitos e que efetivamente ajudam na gestão da pandemia, sinaliza Wagner, é uma das perspectivas que podem ser tomadas. A atual linha política e econômica do governo, conforme o professor, se mostram insuficientes, já que não contemplaram nem a estabilidade econômica, nem a contenção da pandemia. “Não houve um tratamento, pelo governo, da crise econômica à altura de poder rebatê-la e reorientar o país para um rumo melhor. A população brasileira precisa estar alerta e acredito que é possível construir uma alternativa a essa visão, pois estamos falando de coisas muito concretas, de 3 mil pessoas morrendo por dia, de pessoas desempregadas, de empresas fechando, de uma absoluta inoperância desse governo de lidar com a situação de crise na pandemia, mas não só na pandemia, pois isso já vinha se arrastando”, sinaliza.
Do Jornal da Unicamp