A Carta dos 500 e sua força política

É positivo que agora o financismo ensaie rompimento com o genocida. Mas não está claro como defendem que isso seja feito. Investirão num impeachment ou numa interdição? Aguardarão 2022? Farão campanha de desgaste de Bolsonaro na mídia?

Manifestação pedindo o impeachment do presidente Bolsonaro por genocídio durante a pandemia da Covid-19 (Foto: Divulgação)

A carta aberta sobre o combate à pandemia, lançada por cerca de 500 economistas e empresários (em sua maioria do setor financeiro) é evento da maior importância. Estão lá representantes do Itaú e do Bradesco, ex-ministros e ex-presidentes de bancos públicos, além de acadêmicos de relevo. Genericamente, pode-se dizer que subscrevem o documento setores ligados à direita liberal que um dia se identificaram com o governo FHC e com think tanks como a Casa das Garças e o Instituto Millenium. Ou a “frente ampla sem PT”.

Essa turma tem, no entanto, um nó a resolver, para balizar seus rumos futuros: apesar do imenso poder econômico, sua representação político-institucional é mínima. PSDB, MDB e DEM no Congresso aderiram em peso a Bolsonaro. Os movimentos imediatos dos setores ligados ao mundo das finanças serão decisivos, numa conjuntura em que Lula se firma como dirigente maior da oposição.

A carta evidencia algo que escrevi semana passada – o pânico chegou ao andar de cima -, mas não só. Embora a maior parte dos signatários não se oponha às políticas de Paulo Guedes, estão todos/as horrorizados com o que veem.

As quatro páginas e meia e as 29 notas de rodapé do texto podem marcar o rompimento tácito da Faria Lima com o governo Bolsonaro. Ressalto o “podem”. Bolsonaro afugenta investimentos, cria arestas com parceiros internacionais e fortalece a ideia de que o Brasil é a cloaca global. Embora até aqui a alta finança não tenha do que reclamar no quesito lucros, o mercado futuro pode apresentar nuvens carregadas. Nem mesmo medidas sideradas do Banco Central independente, como a puxada de 0,75% da Selic, parecem aplacar o descontentamento em marcha.

E há o pânico real e pessoal de cada um com a pandemia. Lembremos.

Em 5 de maio de 2020, Guilherme Benchimol, presidente da corretora XP Investimentos, declarou ao jornal “O Estado de S. Paulo” o seguinte: “O pico da doença já passou, quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”. Naquele dia, o país tinha um total de 571 mortes pela doença; hoje nos aproximamos das 300 mil.

Os hospitais de elite – aqueles frequentados por Vera Magalhães, como Einstein e Sírio – estão abarrotados. O vírus chegou aos Jardins, ao Leblon e ao Lago Sul. Os bacanas não estão invulneráveis.

A combinação de caos sanitário, preocupação com caos social e pavor de contágio pessoal resultam na justa contundência da Carta. Apesar de fazer seis menções ao auxílio emergencial e indicar sua necessidade, não é fixado um valor (notemos que boa parte da esquerda também não o vê como peça fundamental). Não se toca na mola mestra das políticas ultraliberais, o teto de gastos, cláusula pétrea da vida social para a comunidade da Faria Lima.

Até aqui, não há novidades no que já foi escrito sobre aquelas linhas.

O problema que esses setores têm a resolver é não contarem com representação político-institucional à altura de seu poder econômico. Os partidos que vocalizavam de forma quase orgânica suas aspirações se dissolveram ao longo dos últimos cinco anos. A expressão maior foi o vexame na disputa pela presidência da mesa da Câmara, quando Baleia Rossi – candidato da frente MDB, PSDB e DEM, entre outros – viu seus apoios à direita migrarem em massa para Artur Lira, postulante de Bolsonaro.

Muito se fala da crise da esquerda, mas pouca gente comenta a turbulência forte em que vive a direita liberal. Não se trata de capricho do destino, mas de uma sucessão de medidas suicidas que tiraram a espinha dorsal da representação institucional da turma do dinheiro e a levou a apoiar um defensor da tortura para a Presidência da República.

Mais uma lembrança. Em 2014, o PSDB enfrentava o PT pela quarta vez numa disputa presidencial. Perdeu pela menor diferença de votos em todas elas, num virtual empate.

Aécio neves, o derrotado, alega fraude e não aceita o resultado, criando confusão logo de saída. Acuada tanto pela pressão política, quanto pela carga do setor financeiro, Dilma Rousseff dá um cavalo de pau na política econômica, adota o programa do adversário e provoca uma monumental recessão. O PIB cai quase 8% em dois anos e o desemprego dobra em 15 meses. A popularidade do governo desaba. A direita liberal, mesmo tendo todas as suas demandas atendidas, aceita ser dirigida por um playboy mimado e por um ladrão carioca, presidente da Câmara dos Deputados. Some-se a isso o estrago criminoso feito pela Lava Jato e por boa parte da mídia. Fica pronto e acabado o roteiro do golpe de abril daquele ano.

Acontece aí o primeiro erro monumental da direita liberal, que resolve aderir ao golpe. É bem possível que se não entrassem na onda de Aécio e Eduardo Cunha, a queda de Dilma não aconteceria. Tudo são suposições. Diante do desastre contratado por Dilma, algo de difícil reversão em uma economia global de baixo crescimento, não seria difícil derrotar o PT nas urnas em 2018. Mas o tucanato e seus aliados tinham pressa.

O PSDB em especial ficou umbilicalmente associado ao governo Temer, que exibia ao final de seu mandato míseros 7% de ótimo ou bom. A adesão a um governo medíocre e impopular foi o segundo erro do mundo das finanças.

A consequência apareceu nas eleições presidenciais de 2018. O candidato preferencial dos signatários da Carta, Geraldo Alckmin, amargou um quarto lugar, com míseros 4,76% dos votos. No segundo turno, a direita liberal votou em peso em Bolsonaro, seduzida pela pregação mercadista-pinochetista de Paulo Guedes e crente na possibilidade de domar o miliciano. Consumava-se aqui o terceiro erro. Os partidos mais orgânicos do dinheirismo entraram em parafuso.

É positivo que agora o financismo ensaie um rompimento com o genocida. Todavia, essa ruptura ainda não aconteceu, pelo fato de eles não vislumbrarem a saída institucional para seus objetivos. Investirão num impeachment ou numa interdição, com Mourão? Aguardarão 2022? Intensificarão uma campanha permanente de desgaste de Bolsonaro na sociedade, através da mídia? Não está claro. Qualquer movimento tático provavelmente terá como princípio a tentativa de se diferenciar da centro-esquerda.

Essa gente pode muito, mas não pode tudo. Bolsonaro percebe o isolamento crescente e aumenta os decibéis de seu rol de ameaças à democracia. Brada que chamará o Exército, atenta contra o isolamento social e volta a ser pregoeiro da ditadura.

Tacitamente e ad hoc, a movimentação expressa na Carta dos 500 é em favor da democracia e da saúde. É positivo diante da catástrofe atual. Acaba por se somar aos setores progressistas da sociedade.

A frente ampla funciona, mas para por aí. Até porque os autores não quiseram adesões à esquerda em seu manifesto.

Fonte: Brasil Debate

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