O racismo como arma ideológica de dominação, por Clóvis Moura
Ao longo da história, o racismo foi a justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas. Agora ele se renova como instrumento de dominação
Publicado 21/03/2021 12:41 | Editado 21/03/2021 14:57
Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis
do mundo moderno, concentram-se opiniões contraditórias, que discutem em vários
níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as diversas formas
de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga
emocional, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de seu
significado transcende em muito as questões acadêmicas, para atingir um
significado mais abrangente, da ideologia de dominação. Somente admitindo o
papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua força
permanente e seu significado polimórfico e ambivalente.
Apenas desta forma poderemos compreender por que
se trata de um conceito tão polêmico e, também, por que em determinados
contextos políticos e momentos históricos o racismo adquire tanta vitalidade e
se desenvolve com tanta agressividade: ele não é uma conclusão tirada dos dados
da ciência, de acordo com pesquisas de laboratório que comprovem a
superioridade de um grupo étnico sobre outro, mas uma ideologia deliberadamente
montada para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre
aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa, portanto, uma
ideologia de dominação, e somente assim pode-se explicar a sua permanência como
tendência de pensamento. Vê-lo como uma questão científica cuja última palavra
seria dada pela ciência é plena ingenuidade, pois as conclusões da ciência
condenam o racismo e nem por isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo
no contexto das relações locais, nacionais e internacionais.
O racismo tem, portanto, em última instância, um
conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também ideológico e político. É
por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas através do seu viés
acadêmico e estritamente científico, uma vez que ele transcende as conclusões
da ciência e funciona como mecanismo de sujeição e não de explicação
antropológica. Pelo contrário superpõe-se a essas conclusões com todo um
arsenal ideológico justificatório de dominação.
Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou
convencido de que no próximo século milhões de homens se matarão por um ou dois
graus do índice cefálico”. Isso foi escrito em 1880. O que esse teórico do
racismo queria expressar eufemisticamente é que a humanidade travaria a maior
guerra de sua história e que as diferenças raciais seriam um dos pretextos
ideológicos de que os agressores lançariam mão para justificar a conquista de
territórios colonizáveis.
É uma constante o traço antropológico estar
embutido na crista da ofensiva racista de dominação. Com isso não queremos
dizer que toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que
a divulgação que se faz dessa ciência, especialmente para a opinião pública
leiga, é nesse sentido. A expressão de Lapouge teve contestadores, mas o que se
viu foi a florescência progressiva dessa posição no final do século XIX e
início do século XX, a ponto de fazer com que milhões de pessoas dela
compartilhassem. O racismo é um multiplicador ideológico que se nutre das
ambições políticas e expansionistas das nações dominadoras e serve-lhe como
arma de combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome do direito
biológico, psicológico e cultural de “raças eleitas”. Há também o racismo
interno em várias nações, especialmente nas que fizeram parte do sistema
colonial, através do qual suas classes dominantes mantêm o sistema de
exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças.
Com a montagem do antigo sistema colonial e a
expansão das metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como arma
justificadora da invasão e da domínio das áreas consideradas “bárbaras”,
“inferiores”, “selvagens” que, por isso mesmo, seriam beneficiadas com a
ocupação de seus territórios e a destruição de suas populações pelas nações
“civilizadas”.
O racismo larval que encontramos em todos os
povos antes da aventura colonialista passa a revestir-se de uma roupagem
científica a ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos dizer
que o racismo moderno nasceu com o capitalismo. Referimos-nos ao racismo como o
entendemos modernamente, o qual procura justificar a dominação de um povo,
nação ou classe sobre outra invocando argumentos “científicos”. Antes do
aparecimento do capitalismo, “(…) as tentativas feitas para justificar a
dominação européia sobre os indígenas eram fundadas em crenças sobrenaturais.
Como os europeus eram cristãos, ao contrário dos povos submetidos, nada mais
lógico e natural de que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse os seus
adeptos. Os donos de escravos negros podiam inclusive justificar a escravidão
em uma passagem do Velho Testamento, no qual se lê que os filhos de Cam foram
condenados a ser lenhadores e aguadeiros. Obviamente, essas razões sobrenaturais
logo começaram a perder seu valor e em seguida os brancos imaginaram outras
justificativas mais de acordo com a natureza. A doutrina da seleção natural e
da sobrevivência do mais apto foi um argumento que veio a calhar. A rapidez com
que esse conceito puramente biológico chegou a dominar em todos os campos e
atividades do pensamento europeu nos dá a idéia da necessidade urgente que se
precisava para justificar a dominação. Nessa teoria universalmente aceita, a
dominação européia encontrou a forma de justificar-se que estava procurando. Já
que os brancos haviam conseguido mais êxito que as outras raças, tinham de ser,
per si, superiores a ela. O fato de que essa dominação tinha data muito recente
foi justificado alegando-se que o europeu médio não tinha perspectiva mundial,
assim como os outros argumentos que procuravam demonstrar que as raças
restantes ocupavam na realidade uma posição inferior na escala da evolução
física” (1).
É exatamente nesta confluência do capitalismo
com as doutrinas biológicas da luta pela vida e a sobrevivência do mais apto
que o racismo se apresenta como corrente “científica”. Surge, então, a idéia de
raça como chave da história. Ela aparece exatamente na Inglaterra com Robert
Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur de Gobineau (Essai sur
l’inégalité des races humaines). Para Alan Davies,
“(…) do primeiro surgiu o mito do gênio racial
saxão – mais tarde anglo-saxão – e do último surgiu o mito do gênio racial
ariano; mas ambos os mitos eram variantes do tema geral da superioridade branca
européia sobre os não-brancos. Sua gênese foi política. Knox procurava provar
que o homem saxão era democrata por natureza e por isso o futuro dominador da
terra. Gobineau, por outro lado, não gostava da democracia e procurou provar
que seu surgimento era um sinal certo de decadência e da morte iminente da
civilização. Em ambos os casos as raças não-brancas eram relegadas a uma
posição inferior como símbolos dos elementos primitivos e não-criativos na
natureza humana” (2).
Deduz-se, portanto, sem muito esforço, que o
racismo pode ser considerado – da forma como o entendemos atualmente – um dos
galhos ideológicos do capitalismo. Não por acaso ele nasceu na Inglaterra e na
França e depois desenvolveu-se tão dinamicamente na Alemanha. O racismo é
atualmente uma ideologia de dominação do imperialismo em escala planetária e de
dominação de classes em cada país particular.
Desta forma explica-se o sistema colonial e o
pilar de seu êxito: de um lado, exterminar as populações autóctones das áreas
ocupadas e, de outro, justificar o tráfico negreiro com a África, um dos
fatores mais importantes da acumulação capitalista nos países europeus. As
populações autóctones não tinham direito aos territórios onde viviam por serem
primitivas; e às africanas, que já sofriam a maldição bíblica de Cam,
juntava-se agora seu atraso biológico, sua semelhança e proximidade com os mais
primitivos espécimes da raça humana, quer dizer, eram antropóides que se
desviaram de sua árvore genealógica. Com isso, o chamado processo civilizatório
tinha o respaldo da ciência. A afro-América, que compreendia, no século XVIII,
o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande parte da América espanhola continental
(costa do Peru, partes do que são hoje a Venezuela e a Colômbia) já estavam
inteiramente dominadas, e a justificativa para a sua dominação era a mesma: a
incapacidade inata (biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.
Toda essa população nativa ou compulsoriamente
trazida da África fazia parte de uma massa sem história, sem máscara, sem
cultura, sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX
os teóricos racistas substituíram as explicações um pouco vagas por explicações
“científicas”, como já foi dito, enquanto as demais áreas da Ásia, África e
Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.
Foi a época áurea da antropometria, quando
Gobineau, Ammon, Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas no sentido de
saber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões biológicas)
aos camponeses pela sua capacidade craniana; se os nórdicos eram superiores aos
alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos eram superiores a outras
“raças” européias.
Tais conclusões eram baseadas em pesquisas
históricas; na mensuração de crânios e esqueletos; na medição de índices
cefálicos, e na capacidade craniana de cada grupo pesquisado. Tudo isso, no
entanto, representava, em última instância, as contradições e os conflitos das
nações européias em luta pela dominação continental. Convém notar que alguns
deles, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas conclusões antes de terem
lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859 e deu novo alento a
essas hipóteses com a sua teoria da “sobrevivência do mais apto”, criando a
escola do darwinismo social. Como diz uma antropóloga, “havia-se descoberto uma
razão” 'científica' que santificava o velho axioma
'o poder faz o direito'”.
Por outro lado, entrava-se na época aguda do
colonialismo e as disputas pelos territórios conquistados ou a serem conquistados.
Afirmou Ruth Benedict:
“O racismo converteu-se em grito de guerra
durante este período nacionalista. A pátria, que necessitava de uma
palavra-de-ordem aglutinadora, se outorgou um pedigree e um vínculo que levava
a que qualquer homem podia compreender e sentir-se orgulhoso dele. O racismo
foi, a partir daí, uma babel de vozes diferentes. Os franceses, os alemães, os
eslavos, os anglo-saxões, todos produziram literatos e políticos consagrados a
demonstrar que, desde o princípio da história européia, os triunfos da
civilização devem-se exclusivamente à sua ‘raça’” (3).
Como se vê, essa antropo-sociologia era reflexo
e rescaldo de uma competição sociopolítica entre as nações da Europa. Era, por
isso mesmo, uma ciência eurocêntrica. Com a instalação e o dinamismo do sistema
colonial e seu desdobramento imperialista, ela se estende ao resto do mundo e
aí procura ter uma visão mais abrangente e sistemática, unindo todas as
diferenças étnicas européias em um bloco compacto – o branco –, que passa a se
contrapor ao restante das populações não civilizadas, dependentes, e
racialmente diversas das matrizes daquele continente. Não se cogita mais nas
diferenças entre o nórdico, o alpino, o mediterrâneo, que passam a ser, de modo
genérico, componentes da raça branca. E essa raça tinha por questões de
superioridade biológica o direito de tutelar os demais povos.
A partilha da África, feita por Bismarck na
Alemanha, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 criou uma
trégua entre as nações conquistadoras, e com isso o mundo ficou dividido entre
os brancos civilizados europeus e os povos não-brancos “bárbaros” e
“selvagens”.
Civilizados que mandam e bárbaros que obedecem
Ordenado o colonialismo através do racismo, as
nações dominantes sentiram-se à vontade para o saque às colônias e para as
razias mais odiosas nas regiões da Ásia, América Latina, África e Oceania e
para agir contra todos os que compunham as multidões de desamparados e anônimos
da história. Não só roubaram-lhes as riquezas, mas suas culturas, crenças,
costumes, língua, religião, sistemas de parentesco e tudo o que durante
milênios esses povos constituíram, estruturaram e dinamizaram.
As explicações eram fáceis e já vinham
pré-fabricadas pela sociologia antropológica desenvolvida na Europa para dar
aparência de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou
pretensamente humanista européia achava essa espoliação natural e defendia o
direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos colonizados. Renan, neste
sentido, escreveu:
“A regeneração das raças inferiores pelas raças
superiores está dentro da ordem providencial da humanidade. O homem do povo é
quase sempre, entre nós, um nobre renegado, sua mão pesada é mais acostumada ao
manejo da espada do que ao utensílio servil. Prefere bater-se a trabalhar, isto
é, regressa ao seu primeiro estado. Regere imperio populos, eis a sua vocação.
Derramai esta devorante atividade sobre os países que, como a China, concitam a
conquista estrangeira. Dos aventureiros que desinquietam a sociedade européia,
fazei um ver sacrum, um exame como dos francos, dos lombardos, dos normandos, e
cada qual estará no seu papel. A natureza gerou uma raça de operários – é a
raça chinesa – duma maravilhosa destreza de mão e quase nenhum sentimento de
honra; governai-a com justiça, cobrando-lhe pelo benefício de tal governo um
amplo erário em proveito da raça conquistadora, e ela ficará satisfeita; uma
raça de trabalhadores da terra é o negro, sede para ele bom e humano e tudo
estará em ordem; uma raça de senhores e soldados é a raça européia. Que se
reduza esta nobre raça a trabalhar no ergástulo como os negros e os chineses e
ela revolta-se. Entre nós todo revoltado é, mais ou menos, um soldado que errou
de vocação, um ser feito para a vida heróica e que constrangeram a uma tarefa
contrária à sua raça, mau operário, soldado bom demais.
Ora, a vida que revolta os nossos trabalhadores
faria a felicidade de um chinês, dum fellah, seres de
maneira alguma militares. ‘Que cada um faça
aquilo para que nasceu e tudo correrá bem'” (4).
Os europeus – arianos, mediterrâneos, alpinos
etc. – neste contexto eram os brancos. A grande massa de povos colonizados era
a população indistinta, e o denominador que as igualava era a vocação de
servir, trabalhar para os brancos, que tinham o dom divino e biológico de
governá-la.
Com a passagem do colonialismo para o
imperialismo (neocolonialismo), o racismo é remanejado em sua função
instrumental. As metrópoles passam a ver as áreas coloniais como habitadas por
povos indolentes, incuravelmente incapazes de criar uma poupança interna que os
elevasse ao nível dos países brancos, que tinham estes predicados e se
desenvolveram, ao contrário do mundo não-branco que, por esta razão, permanece
subdesenvolvido.
A teoria do pensamento pré-lógico desses povos,
criada por L. Lévy Bruhl, condenava-os a uma posição de dependência circular,
porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura psicológica,
sendo refratários e impermeáveis à experiência e à razão e essencialmente
religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão estanque entre os povos
dominados e os dominadores, pois esse pré-logismo impedia-os de passar da
economia natural para a economia monetária (lógica) levada pelos dominadores
(5). Neste sentido, K. Marx e F. Engels escreveram, em 1848:
“(…) devido ao rápido desenvolvimento dos
instrumentos de produção e dos meios de comunicação, a burguesia arrasta na
corrente da civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus
produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e faz
capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de
morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção. Numa
palavra, modela o mundo à sua imagem” (6).
O imperialismo multiplica as formas do racismo,
“moderniza-o” na medida em que há necessidade de uma arma de dominação mais
sofisticada. Segundo a teoria de L. Lévy Bruhl, como éramos pré-lógicos, os
movimentos de libertação que se dinamizavam nas regiões colonizadas ou
dependentes não eram políticos, mas etnocêntricos, chauvinistas, xenófobos,
nacionalistas ou messiânicos, ou seja, eram movimentos pré-políticos. Embora o
conceito de movimentos pré-políticos tenha sido cunhado por um historiador
grandemente ligado ao pensamento marxista – E. J. Hobsbawn – acreditamos que
ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoliberal de analisar e
interpretar a dinâmica social. Se o aceitarmos, seriam excluídos como políticos
todos os movimentos do chamado Terceiro Mundo; a luta de Zapata e Pancho Villa,
no México; a de Sandino, na Nicarágua; o movimento camponês de Pugachov, na
Rússia; todos os movimentos de libertação da África, como o kinganbista,
incluindo os Mau Mau e o de Lumumba. Tudo seria englobado sob o rótulo de milenarismo,
salvacionismo ou messianismo, e seria descartada sua essência política. Os
povos “inferiores” não tinham condições de entrar no sentido universal da
história, eram a-históricos. Com isto justificava-se a repressão contra eles e
os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos europeus,
civilizados e “normais”, não existiam movimentos que pudessem ser enquadrados
como aceitos pelas nações dominadoras, como continuadores do “sentido” da
civilização. As próprias lutas de libertação nacional eram (como acontece até
hoje) consideradas revoltas intertribais, movimentos atípicos e perturbadores
do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civilização e à
igualdade de direitos. A nossa inferioridade congênita e inapelável – biológica
e psicológica – nos reduzia a satélites do processo civilizatório.
“A questão racial é essencialmente política e
não apenas científica”.
Tudo isto era respaldado por uma
intelectualidade que se apresentava como tutora do conhecimento, do saber e, ao
mesmo tempo, assessora dos mentores metropolitanos.
Como vemos, a chamada “questão racial” não pode
ser compreendida se a interpretarmos como uma questão meramente científica,
cuja solução será encontrada pelos antropólogos entre as quatro paredes de um
laboratório ou nas salas de congressos de especialistas. Pelo contrário.
Devemos partir de uma posição crítica radical, através da reformulação
política, da modificação dos pólos de poder, especialmente das áreas do chamado
Terceiro Mundo. É uma situação que ficará sempre inconclusa se não a
analisarmos como um dos componentes de um aparelho de dominação econômica,
política e cultural.
No caso da América Latina, o racismo, como
ideologia do colonialismo, penetrou fundo no pensamento da elite intelectual
colonizada. Todo o arsenal “científico” que vinha da Europa sobre a questão
racial era aqui repetido sem ser filtrado, não porque fosse a “última palavra
da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das metrópoles. No lado
oposto expressava-se uma visão democrática e não racista do problema; esta
corrente progressista era desacreditada pela intelligentsia colonizada. O
cientista russo Tchernichevsky, por exemplo, escreveu que “os escravistas eram
pessoas da raça branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão
nos tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical entre as
diferentes raças humanas”. E Jean Finot, em seu livro O preconceito racial,
declarou: “as raças como categorias irredutíveis existem somente como ficções
nos nossos cérebros”. E mais: “as diferenças culturais existem e foram
assinaladas neste livro, porém somente são produtos transitórios, como
resultado de circunstâncias externas, e desaparecerão do mesmo modo” (7).
No entanto, essas conclusões anti-racistas eram
consideradas heresias científicas. Sílvio Romero, depois de citar o antropólogo
alemão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em relação ao
francês, escreve sobre o pensamento de Finot: “Fugir das tolices do russo que
se assina Finot, e cujo nome antigo é João Finkelhaus, literato de segunda
ordem, ignorantíssimo em antropologia e ciência em geral” (8).
Mas não era somente Sílvio Romero quem endossava
o racismo no Brasil da época. E convém esclarecer que estávamos em pleno
processo abolicionista e os escravistas e senhores de escravo tinham, como um
dos suportes que legitimava a escravidão, a inferioridade biológica e cultural
do africano. Euclides da Cunha, outro importante representante de nossa cultura
dominante, repetia o mesmo pensamento racista. Sua posição em relação ao
mestiço e ao negro não deixa dúvidas. Estuda o negro afirmando que “a raça
dominada (negra) teve aqui dirimidas, pela situação social, as facilidades de
desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade extrema, sem as
rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros, toda a pressão da vida
colonial” (9).
Para ele, o negro é a “besta de carga”, o “filho
das paisagens adustas e bárbaras”; Palmares é “grosseira odisséia” e por isto a
ação dos bandeirantes destruindo-o foi um benefício à nossa civilização; são
“vencidos e infelizes”; o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo quilomba,
“temeroso”, “aguilhoado à terra”; são “foragidos”, a raça é “humilhada e
sucumbida”. Para ele a desigualdade racial era um fato provado “ante as
conclusões do evolucionismo”. O negro, como vemos, era o componente de uma raça
inferior. O índio, por seu lado, não tinha capacidade de “se afeiçoar às mais
simples concepções do mundo”. E, quanto ao mestiço desses cruzamentos, no seu
“parênteses irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de um
desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para este embate de
tendências antagonistas” (10).
A ideologia do colonialismo era, e ainda é,
alimentada por toda uma literatura racista que nos vinha, ou nos vem, das
metrópoles colonizadoras, para nos inferiorizar através da nossa própria
auto-análise.
O racismo brasileiro quer um país “eugênico”
Passada a fase da abolição, com sua conclusão
negativa para a população negra, e concluído o golpe militar republicano, com a
persistência das oligarquias agrárias, o racismo brasileiro procura novas
roupagens “científicas”. Na Europa o racismo entra em ascensão e transforma-se
em força agressiva, agressividade que terá a sua conclusão na vitória do
nazismo na Alemanha. No Brasil há uma recomposição ideológica do mesmo sentido.
Essa tendência racista-elitista de nossa intelectualidade tradicional se
revigora.
Na época da ascensão do nazismo e do fascismo,
houve aqui no Brasil um trabalho ideológico racista feito pela nossa
intelectualidade. Essa divulgação e essa prática concentraram-se na Liga da
Higiene Mental, que congregou grandes nomes da ciência. Jurandir Freire Costa,
autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o programa dessa
entidade tinha como objetivo a intolerância e o obscurantismo. Fundada em 1923
e dedicada à prevenção de doenças mentais, longe de estabelecer uma abordagem
científica de doença mental, adotava e enfatizava posições nitidamente ideológicas,
elaborando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do arianismo,
da superioridade racial, justamente as que prevaleceram na Alemanha nazista.
Seus membros mais conspícuos passaram a defender na área profissional, e
publicamente, a esterilização e a segregação perpétua de todos os indivíduos
considerados loucos ou desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação;
daí passaram a pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda
segundo os padrões que adotavam e que definiam como tais os não-brancos puros
(11).
“Já se quis uma reforma “eugênica” dos salários:
maiores para os brancos, menores para os negros”.
A pregação da Liga concentrou seus fogos
particularmente na imigração: o Brasil deveria, nesse campo, adotar rigorosos
critérios seletivos, em que se inseria a condenação à entrada de negros e
asiáticos em nosso país – “rebotalho de raças inferiores” –, alegando que “já
nos bastavam os nordestinos, os híbridos e os planaltinos miscigenados com
negros”. Xavier de Oliveira, um dos membros da Liga, partidário do que entendia
por eugenia, manifestava sua satisfação pela decadência incontestável e pela
“extinção não muito remota” dos índios da Amazônia. A condenação ao fim próximo
alcançava, também, os mestiços, cuja proibição de entrada no Brasil era
encomendada pela Liga em 1928. Outra de suas reivindicações: a reforma eugênica
dos salários, privilegiando os brancos.
Reivindicava também concessão de benefícios
econômicos e financeiros às famílias que procriassem indivíduos “superiores”. A
mais audaciosa foi a criação de Tribunais de Eugenia, que decidiriam sobre a
esterilização e o confinamento de membros das raças inferiores. Em 1934 a
revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, editada pela Liga, publicava a
lei alemã de esterilização dos “doentes transmissores de taras”, com
entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”, dizia a publicação,
“tomava conhecimento da nova e grande lei alemã de esterilização dos
degenerados”. A citada lei, de 14 de julho de 1933, era assinada por Hitler,
além de Frick e Gurther, ministros do Interior e da Justiça, respectivamente.
Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi
aquele no qual o seu autor procurava demonstrar que a Inquisição operara a
partir de uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e seus sacrifícios
“tiveram uma consequência benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Jurandir
Freire Costa, a Liga associava-se à polícia em ações “sempre caracterizadas
pela truculência”; a polícia fornecia, confidencialmente, nomes e endereços de
alcoólatras, que eram, então, procurados pelos psiquiatras da Liga e internados
em hospitais e centros ditos de saúde mental; ali eram submetidos a tratamentos
de acordo com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante três
décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmente psiquiatras:
representavam a ciência oficial, isto é, a ciência das classes dominantes, numa
época em que o nazismo já se manifestava e apresentava a raça alemã como “raça
eleita”.
Entre esses nomes famosos, figuravam Renato
Kehl, presidente da Sociedade de Eugenia em 1929; Alberto Farani, presidente da
Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene Mental e
chefe do serviço dos ambulatórios de Profilaxia Mental do Hospital Rivadávia
Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica Psiquiátrica da Faculdade
Nacional de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro e médico do Hospital
Nacional de Psicopatas.
À época da Liga de Higiene Mental, a década de
1920 e a primeira metade da década de 1930, surgiram e se ampliaram
consideravelmente em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as
teses de Oliveira Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista, elitista e
neocolonialista.
Assim como aconteceu na época de Sílvio Romero,
a produção cultural dominante espelhava a alienação social e, consequentemente,
cultural a qual estava submetida. A obra de Oliveira Vianna, em particular, é
um marco significativo de como a intelectualidade brasileira deixa-se vergar
ideologicamente e refletia em sua produção uma rejeição à sua própria condição
de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda
representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e político,
expressa através de uma produção estimulada pelo neocolonialismo; em outras
palavras, o imperialismo tecnocrático.
Da derrota do nazismo ao aparecimento da Guerra
Fria
Derrotado o nazismo, o pensamento de direita e
especialmente o racismo entraram em recesso, e no âmbito das ciências
biológicas e sociais houve toda uma rearticulação contra tais idéias. Foi o
momento dos grandes pronunciamentos dos antropólogos e dos sociólogos, que
repuseram a questão racial em termos científicos. Em 1950 divulgou-se uma
declaração redigida na casa da Unesco por oito dos maiores nomes da
antropologia e da sociologia mundiais, entre eles: Juan Comas, do México; Levi
Strauss, da França; Morris Ginberg, da Inglaterra; A. Montagu (relator), dos
Estados Unidos, e L. A. Costa Pinto, do Brasil. Nas suas conclusões diziam:
a) Os antropólogos só podem estabelecer
classificação racial sobre características puramente físicas e fisiológicas.
b) No estado atual dos nossos conhecimentos, não
foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem
uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos, quer se trate da
inteligência ou do temperamento. As pesquisas científicas revelam que o nível
de aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos.
c) Os estudos históricos e sociológicos
corroboram a opinião segundo a qual as diferenças genéticas não têm importância
na determinação das diferenças sociais e culturais existentes entre diferentes
grupos da espécie Homo sapiens, e as mudanças sociais e culturais no seio de
diferentes grupos foram, no conjunto, independentes das modificações na sua
constituição hereditária. Vimos produzirem-se transformações sociais
consideráveis que não coincidem de maneira alguma com as alterações de tipo
racial.
d) Nada prova que a mestiçagem, por si própria,
produza maus resultados no plano biológico. No plano social, os resultados,
bons ou maus, que alcançou são devido a fatores de ordem social.
e) Todo indivíduo normal é capaz de participar
da vida em comum, compreender a natureza dos deveres recíprocos e respeitar as
obrigações e os compromissos mútuos. As diferenças biológicas que existem entre
os membros de diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a
organização política ou social, a vida moral ou as relações sociais.
Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a
ética da fraternidade universal; pois o homem é, por tendência inata, levado à
cooperação e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos e
nações padecem igualmente por isso. O homem é por natureza um ser social, que
só chega ao pleno desenvolvimento de sua personalidade por trocas com os seus
semelhantes. Toda recusa de reconhecer este laço social entre os homens é causa
de desintegração. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão.
Cada ser humano é apenas uma parcela da humanidade, a qual está
indissoluvelmente ligado.
Depois desse documento saiu a Declaração de
1951, assinada por um grupo de antropólogos e geneticistas, que ampliava mais
analiticamente o texto do primeiro, com as mesmas conclusões. Outro documento
da Unesco, e nos parece que o último, redigido em Moscou, ainda é mais enfático
na condenação ao racismo.
No Brasil a reação não é diferente. Em 1935
surge o Manifesto dos intelectuais contra o preconceito racial, em que se
enfatiza o racismo como anticientífico:
“O movimento contra o preconceito racial visa
apenas a combater as influências estranhas que nos querem arrastar para o
turbilhão dos racismos truculentos, como também contribuir para todos os meios
para o estudo dos problemas surgidos na própria formação étnica, tendo sempre
em mira promover maior harmonia e mais fraternal cordialidade entre os
elementos que vão caldeando na etnia brasileira”.
Assinam o documento, entre outros, Roquete
Pinto, Maurício de Medeiros, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Hermes Lima,
Leônidas de Rezende e Joaquim Pimenta. Em seguida podemos citar o Manifesto
contra o racismo, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, que foi
aprovado por aclamação no dia 3 de setembro de 1942. O documento terminava nos
seguintes termos:
“(…) queremos oferecer a todo o mundo civilizado
a nossa magnífica filosofia no tratamento das raças como o maior protesto
científico e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias da
concepção nazista da vida, este estado patológico de espírito que pretende
envolver a humanidade numa espessa e irrespirável atmosfera de luto”.
Era a volta, também no Brasil, de uma ciência
social que repudiava os postulados nazistas no julgamento das raças e a sua
função e papel no processo civilizatório.
Já haviam se realizado, nessa ocasião, dois
congressos afro-brasileiros: o primeiro em Recife, em 1934, por iniciativa de
Gilberto Freyre; e o segundo em Salvador, por iniciativa de Edson Carneiro, em
1937. Nos anais de ambos podemos ver a preocupação de muitos congressistas em
relação ao problema racial e o seu dilema no Brasil. Dos anais do primeiro
podemos destacar as comunicações de Mário de Andrade, Alfredo Brandão, Gilberto
Freyre, Adhemar Vidal, Jovelino M. de Camargo Jr, Mário Melo, Rui Coutinho,
Rodrigues de Carvalho e outros. Nesses autores nota-se a preocupação de
descartar a inferiorização do negro, via fatores biológicos (inatos), e
ressaltar a escravidão como causa de nosso atraso. No segundo congresso vemos a
preocupação de Edson Carneiro, Artur Ramos, Donald Pierson, Aydano do Couto
Ferraz, Alfredo Brandão e Jorge Amado, cada um a seu modo procurando encaminhar
o tema no mesmo sentido.
No terceiro congresso, realizado em 1982, as
intervenções de Décio Freitas, Raimundo de Souza Dantas, Clóvis Moura, Gilberto
Freyre e outros vão na direção de reabilitar o processo miscigenatório e
destacar a participação social do negro em nossa história, posição contrária à
dos eugenistas da década de 1930, que consideravam este fenômeno um fator de
degenerescência da sociedade brasileira. A postura democrática em relação ao
problema racial, que teve nos antropólogos e sociólogos da Unesco a expressão
mais lúcida, começa em determinado momento, a ser contestada (12).
No plano político internacional, por outro lado,
saía-se da política de colaboração dos quatro grandes vencedores da Segunda
Guerra Mundial – Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos – para o
confronto da Guerra Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo, os movimentos de libertação
da África, dentro do processo de descolonização que se dinamizava. Nesse
contexto político iniciam-se os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.
O mais relevante sintoma desse protesto e o que
mais repercussão alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de psicologia
educacional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da
declaração da Unesco de 1951 e a de 1964. Afirma textualmente:
“O fato de que diferentes grupos raciais neste
país tenham origem geográficas largamente diferenciadas e tenham tido histórias
largamente diferentes, o que os submeteu a diferentes pressões seletivas
econômicas e sociais, faz com que seja altamente provável que seus acervos
genéticos difiram em algumas características comportamentais geneticamente
condicionadas, inclusive inteligência ou capacidade de raciocínio abstrato.
Quase todo o sistema anatômico, fisiológico e bioquímico investigado apresenta
diferenças raciais. Por que seria o cérebro uma exceção?”
Já o professor de psicologia da Universidade de
Londres e entusiasta de Jensen, H. J. Eysenck, baseando-se em testes de QI de
jovens negros americanos, conclui pela existência de diferenças que, dentro da
estrutura social atual (julgamentos de valor), significam inferioridade. Este
cruzamento de resultados de testes com resultados de pesquisas de geneticistas
é uma forma deliberada de confundir os fatos e chegar-se a uma conclusão
preestabelecida. Por outro lado, todos sabem que as técnicas de medir a
inteligência pelo nível do QI são cada vez mais contestadas.
A antropóloga Ruth Benedict, antes dos
professores citados, já punha em dúvida essas técnicas, especialmente quando
aplicadas sem os diferenciais culturais e sociais. Cita o exemplo de uma
comparação feita entre brancos do Mississipi, Kentucky e Arcansas com negros de
Nova Iorque, Illinois e Ohio. O QI dos brancos do Sul é inferior ao QI dos
negros do Norte. Os resultados foram os seguintes:
Brancos Negros
Mississipi 41,25 Nova Iorque 45,02
Kentucky 41,50 Illinois 47,35
Arkansas 41,55 Ohio 49,50
Fonte: BENEDICT, Ruth. Raza: ciencia y política.
México, Fondo de Cultura Econômica, p. 97.
Contra esses dados, H. J. Eysenck conclui um de
seus livros dizendo:
“(…) O reconhecimento da natureza biológica do
homem e o reconhecimento da desigualdade geneticamente determinada, associados
inevitavelmente ao seu desenvolvimento, são um começo absolutamente necessário
a qualquer tentativa de utilizar os métodos da ciência e a razão, num esforço
destinado a nos salvar dos perigos (sic) efetivamente reais com que nos
defrontamos” (13).
Racismo e determinismo genético
É exatamente em continuação a essa biologização
da história e da sociedade que, na década de 1970, surge uma nova ciência: a
sociobiologia, sistematizada por Edward Wilson, da Universidade de Harvard, e
assim definida:
“(…) uma ideologia biológica que, empenhada em
provar que todo comportamento humano é determinado geneticamente, como nos
animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social. A partir daí a
bibliografia só faz aumentar a lista iniciada com o Macaco nu e a História
natural da monogamia, do adultério e do divórcio, da antropóloga
norte-americana Helen Fischer, para quem há uma lei natural, inscrita em nossos
genes, que molda o relacionamento efetivo e o acasalamento entre os seres da
espécie humana. Outro livro deste gênero é Personas sexuais, de Camile Paglia,
que considera os papéis sexuais, o machismo e a feminilidade decorrentes apenas
de nossa natureza biológica e não, também, das relações culturais, históricas,
estabelecidas entre homens e mulheres; relações condicionadas pela
peculiaridades das épocas e dos lugares onde ocorreram” (14).
“Como o velho racismo, a sociobiologia procura
explicações biológicas para fenômenos sociais”.
Poderíamos citar mais de uma centena de obras da
nova sociobiologia, mas o que se viu dá para perceber o renascimento do racismo
via genética. O preocupante é que essas idéias não se exprimem apenas através
de livros, mas de uma prática universitária na direção da dominação ideológica
do conhecimento. Neste sentido estava prevista, na Universidade de Maryland, a
realização da conferência intitulada “Fatores Genéticos no Crime: Descobertas,
Usos e Implicações”, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso do enfoque
social para o crime” e sugeria a realização de pesquisas genéticas para o
desenvolvimento de métodos capazes de identificar – e tratar quimicamente –
criminosos em potencial. A Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos, por
sua vez, publicou em novembro de 1992 o relatório Compreender e prevenir a
violência, sugerindo a realização de mais pesquisas desse tipo e na mesma
direção, com investigações sobre marcadores bioquímicos e tratamento com drogas
para comportamentos violentos e anti-sociais, embora admitindo a escassez de
evidências substantivas para uma propensão ao crime de per si. Como se pode ver
é a volta disfarçada aos métodos eugênicos dos cientistas do III Reich.
Analisando tal situação, escreveu Patrick Bateson:
“(…) as diferenças existentes entre as pessoas
são muitas vezes pensadas como adaptações, como produtos da evolução darwiniana
e, portanto, como atribuíveis a diferenças genéticas. Para o não biólogo,
‘diferença genética’ é sinonimo de inevitabilidade – o problema começa aí. Às
pessoas claramente exploradas ou oprimidas é dito que devem aceitar essa
situação porque nada podem fazer para alterar os seus genes. Esse tipo de
idéias, que penso não serem geralmente partilhadas pelos cientistas que parecem
dar-lhes credibilidade, é agora parte de nossa vida política. Por essa razão, e
talvez injustamente, o determinismo genético tornou-se o grande tema de muitas
discussões públicas sobre sociobiologia (…) A ênfase no egoísmo e na luta pela
existência na evolução biológica teve um efeito de confirmação insidiosa na
opinião pública (Bateson, 1989). A competição foi encarada como motor da
atividade humana. A experiência nas universidades e nas artes é avaliada pelos
mesmo parâmetros que supostamente resultam tão bem no campo do esporte ou na
feira. Os indivíduos prosperam competindo e vencendo. Esta visão da natureza
humana, popular entre os políticos de direita, foi justificada pelo recurso à
biologia, e os próprios biólogos foram, por sua vez, algo influenciados pelo
movimento de opinião pública. (…) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa tendência
para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção por outros cuja
experiência tenha sido diferente (…) Tal como as coisas estão, o apelo à
biologia feito pela Nova Direita não se dirige tanto ao corpo coerente de
idéias científicas como a um mito confuso. Pensa-se na biologia como tratando
da competição – e isso significa luta. O conceito darwiniano da sobrevivência
diferencial nutre-se da crença na importância do individualismo (15).
Discutindo o lado ético da aplicação da
sociobiologia, ou da biologia em particular, escreveu Hilton Japiassu:
“(…) aliás, nos dias de hoje, parece inegável o
impacto social na biologia sobre a vida de cada um de nós. Ela não constitui
apenas uma pesquisa sem freios da verdade, isenta de toda e qualquer crítica
política ou moral. Já foi o tempo em que se podia declarar, como H. R.
Oppenheimer, um dos responsáveis pela construção das primeiras bombas atômicas,
que: ‘(…) nosso trabalho mudou as condições da vida humana; mas a utilização
feita dessas mudanças é uma questão dos governos, não dos cientistas’. Ora, a
palavra-de-ordem ‘a verdade pelo amor à verdade' torna-se hoje
insustentável. Porque a ciência não é mais, e tampouco pode ser, considerada um
domínio da exclusiva competência dos cientistas. Os trabalhos dos
microbiologistas, por exemplo, que decodificaram as moléculas de ADN. Dão-nos a
esperança de um controle genético de numerosos males surgidos no nascimento.
Mas essas pesquisas já foram utilizadas, como testemunham os cientistas
americanos Zimmerman, Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados
Unidos, para cultivar micróbios violentos destinados à guerra bacteriológica:
‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar subpopulações
variadas, que poderão ser utilizadas pelos que detêm o controle tecnológico.
Essas subpopulações poderão compreender soldados combativos, robôs resistentes
para executar as tarefas físicas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam
transmitidos poderes hereditários”” (Autocritique de la science, Seuil, 1975)
(16).
Estamos nas fronteiras do Admirável mundo novo,
de Aldous Huxley, quando um dos seus personagens define felicidade: “E esse,
acrescentou sentenciosamente o Diretor, é o segredo da felicidade e da virtude
– gostar daquilo que se tem de fazer. Este é o propósito de tudo: fazer as
pessoas amarem o destino social do qual não podem escapar”. Estaríamos
plenamente na era do determinismo genético.
O mundo apresentado por Huxley pode ser o
objetivo desses cientistas. Mas a biologia genética, via engenharia genética,
tem objetivos ainda mais seletivos e ideologicamente racistas. Sobre a visão de
radicalismo epistemológico dessa postura científica, escreveu Hilton Japiassu:
“(…) os gigantescos progressos da biologia e da
engenharia genética já tornaram possível uma outra forma de neo-eugenismo,
desta feita bastante mais sofisticado. Diria que um neo-eugenismo fundado nas
ciências biogenéticas já se anuncia, sem que possamos predizer de modo seguro
quais serão as grandes opções para o futuro. O fato é que, nesse domínio, já
existem sofisticados métodos permitindo a detecção dos ‘maus genes’, vale
dizer, dos genes que, direta ou indiretamente, são responsáveis por certas
doenças. Como nos lembra P. Tuiller, ‘(…) quaisquer que sejam os limites atuais
da ciência médica em matéria de diagnóstico e de terapêutica, criou-se uma
situação nova; doravante é possível concebermos em longo prazo um gigantesco
empreendimento de purificação do capital genético da humanidade (ou de certas
populações). O que levanta numerosas questões ao mesmo tempo técnicas e
éticas’”. (Les passions du savoir, Fayard, 1988, p. 154) (17).
Em outras palavras, os detentores dessa
sofisticada tecnologia podem programar, por exemplo, a cor da humanidade ou de
alguns grupos ou populações (de acordo com os seus critérios de valor étnicos)
considerados de “maus genes”. Se considerarmos a ideologia de quem monopoliza
essa tecnologia, os negros e os não-brancos serão o objetivo desse projeto e
tentarão projetar um mundo branco e de robôs.
A Europa ergue um muro contra não-brancos e
pobres
Além deste racismo, há aquele que está se
disseminando de forma crescente e cada vez mais agressiva. Em todo o chamado
Primeiro Mundo (capitalismo imperialista central) ele vem se afirmando, quer
por legislações que tornam indesejáveis no seu território membros de
determinadas etnias, quer pela incorporação por parte de partidos políticos que
endossam essa ideologia e, finalmente, pelo comportamento irracional de grande
parte da população desses países. Na Inglaterra, na França, na Áustria, e
especialmente na Alemanha, o racismo vem aumentando assustadoramente,
especialmente neste último país, onde se manifesta através do neonazismo, cuja
violência tem feito desaparecer centenas de vidas e cujos métodos de ação são
idênticos aos de Hitler.
“Auschwitz Total, Hitler Superditador,
Antiturcos à Prova: alguns títulos de jogos neonazistas”.
Esses países começam a proteger-se dos “genes
maus”, representados pelas populações não brancas em geral, que procuram
“invadir” o recinto intocável das nações brancas. Esta ideologia racista cresce
juntamente com a idéia da unificação da Europa. Há movimentos de
extrema-direita por toda parte, como a Frente Nacional da França e os
republicanos e neonazistas da Alemanha. Nos países nórdicos, como a Noruega, há
parlamentares de extrema-direita ostensivamente racistas. Segundo Harlen Désir,
para alguém eleger-se basta dizer: “Chega de árabes, jamaicanos e turcos!” Na
França, segundo ele, parte da população não aceita a fusão e a formação de uma
nação plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida principalmente
nas regiões fronteiriças, onde o discurso de Jean-Marie Le Pen, líder da Frente
Nacional, tem forte penetração.
Na Alemanha e na Suécia estão virando moda
videogames distribuídos pela extrema-direita britânica, com os sugestivos nomes
Jogar em Reblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você Terá Ganho
(18). O jogador consegue pontos matando judeus, turcos, homossexuais e ecologistas
ao som de Deutshland über Alles (Alemanha acima de tudo), estrofe glorificada
por Hitler e depois da guerra suprimida do hino nacional alemão.
Os ataques racistas se multiplicam e a
ultradireita ganha terreno. Os governos da Comunidade Européia mantêm leis
discriminatórias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se
encontrarem há mais de 15 anos. Não é de estranhar que os jovens transformem o
videogame em propaganda racista, pois não é apenas na Alemanha e na Suécia que
a juventude assim se diverte. Na Áustria o fato se repete: Auschwitz Total…
Hitler Superditador… Antiturcos à Prova… Segundo Sandra Lacut, da France Press,
de Viena:
“(…) as escolas da Áustria e de outros países
europeus foram invadidas por uma série de jogos de computador racistas e
neonazistas, nos quais as crianças ‘dirigem’ campos de extermínio de judeus ou
‘compram’ gás para matar os imigrantes turcos. (…) Um estudo realizado pelo
Ministério de Educação revela que na cidade austríaca de Lintz, onde Hitler
passou parte de sua juventude, 39% dos jovens sabem que existem esses jogos
neonazistas e 22% já os jogaram. Em Salzburgo, um em cada cinco jovens que tem
um computador já viu publicidade neonazista em sua tela. Os videogames
trivializam o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos,
homossexuais, comunistas e dissidentes durante o nazismo) e incitam o ódio
contra os judeus e turcos. O jogo Administrador de Campo de Concentração
consiste em dirigir o campo de Treblinka (Polônia) e conseguir bastante dinheiro
– por exemplo, arrancando os dentes de ouro dos judeus mortos – para adquirir o
gás necessário para aniquilar os turcos. Outro, chamado Prova Ariana, coloca
perguntas que revelam ao jogador seu grau de pureza racial. Aquele que for
apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De acordo com o
grau de ‘impureza do sangue’, o jogador pode ser varredor ou limpador de
privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente atirado na câmara de gás”. O que à
primeira vista parece ser apenas um detalhe vem demonstrar até que nível a
propaganda neonazista está se aproveitando da nova tecnologia e da comunicação
avançada nos mesmos moldes de Hitler. Segundo El País, os alemães e os belgas,
de acordo com pesquisas feitas pela Comunidade Européia, são os cidadãos europeus
que mais admitem os seus sentimentos racistas. Mas é na França e na
Grã-Bretanha que a xenofobia e a violência racial se mostram mais intensas. Nos
últimos quatro anos (a pesquisa vai até 1990) houve 20 assassinatos motivados
por racismo na França. As vítimas eram norte-africanos de nacionalidade ou de
origem.
Seis jovens cabeças raspadas (skin-heads)
mataram a ponta-pés um tunisiano pai de quatro filhos. O policial que os deteve
contou que aquilo que mais o chocou foi o fato de eles terem a sensação de nada
terem praticado de condenável. Outros três jovens mataram a tiros um jovem
harki (francês de origem argelina) “para se divertir”. Cerca de 76% das pessoas
entrevistadas depois do assassinato dos três norte-africanos declararam: “O
comportamento deles pode justificar as reações racistas”.
Em 1989 ocorreram, em Londres, em média seis
incidentes racistas por dia. O Instituto de Estudos da Polícia estimou em sete
mil os casos conhecidos de racismo no país, mas sugeriu que a cifra poderia ser
dez vezes superior. Isto porque as vítimas temiam denunciar as agressões “por
falta de confiança na polícia”. Uma mãe asiática suportou que seus filhos
fossem esfaqueados e apedrejados – “Pensei que fosse um comportamento normal em
relação aos estrangeiros” – e não procurou ajuda.
Na Itália, os ataques a estrangeiros estão
adquirindo uma sequência e um furor inesperados, acalentados por uma crescente
onda de imigrantes clandestinos. Na Espanha, a fúria contra marroquinos,
portugueses e africanos é uma reação social em alta, mas a discriminação elege
como presa também uma minoria espanhola: os ciganos. Estes últimos são hoje na
Espanha cerca de meio milhão de pessoas e, como no caso dos negros nos Estados
Unidos, sua dança e sua música são muito apreciadas.
Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala
o volumoso estudo de oito capítulos elaborado e aprovado pela Comissão de
Investigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu, presidido
pelo eurodeputado Glyn Ford. Nem a Comunidade Européia, nem os governos dos
seus Estados-membros tomaram medidas para corrigir a situação alarmante, já
denunciada em 1986. O mito da Europa como terra de asilo caiu por terra.
A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas
são mais claramente expressos. Em 1989 (e daí para cá este sentimento
aumentou), cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros
demais no país e 93% eram favoráveis a reduzir o número de trabalhadores
imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha Ocidental admitem ter sentimentos
anti-semitas. As pesquisas revelam, também, que um quinto dos alemães tem ódio
racial contra africanos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.
O racismo como ideologia neocolonial
Falta agora nos referirmos ao racismo político
dos países do chamado Primeiro Mundo (capitalismo central) contra os países
dependentes que fizeram parte do antigo sistema colonial, que não foi
desmontado até hoje. Uma das particularidades é que são, em sua totalidade,
países que tem populações não-brancas.
À medida que se aguçava a luta entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, os norte-americanos concentraram suas atividades de dominação nas áreas incluídas em seu leque de influências. Com o pretexto de combater a subversão, estabeleceram governos subalternos externamente e ditatoriais internamente. Como norma, as ditaduras militares. Com isso consolidaram sua dominação neocolonial. Mas, por uma série de circunstâncias, na América latin, Asia, Oriente Médio e África houve movimentos que conseguiram se afastar de sua órbita. Por coincidência, movimentos de países que havia participado da aventura colonial como dominados. Em outras palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o tráfico negreiro, a escravidõ ou outras formas de trabalho compulsório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações, ou melhor, de sua população demográfica é esmagadoramente não branca.
Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase do imperialismo tecnocrático, houve necessidade de uma reciclagem no processo e nas táticas de dominação. De um lado, para consolidar o seu domínio econômico e, de outro, como manifestação de racismo.
A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi a operação que os Estados Unidos organizaram contra a Líbia em 1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de Estado para assassinar seu líder. Depois de várias operações de agressão militar, nas quais foram abatidos dois aviões líbios (em território líbio), constatou-se que um dos filhos de Kadhafi havia sido assassinado. Isto porém não sensibilizou a opinião pública mundial. A mídia criou para consumo internacional a imagem de que Kadhafi era o líder do terrorismo internacional, o que os fatos desmentiam.
Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obedecer os apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos ocuparam a ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus habitantes. A opinião internacional não se mobilizou nem denunciou o crime, possivelmente por se tratar de um país de negros.
Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aerotransportadora dos Estados Unidos invadiu seu território, prendeu seu presidente Noriega, sequestrou e levou-o para ser condenado pelos tribunais norte-americanos. A intervenção norte-americana destruiu a economia do país, tentou extinguir o exército e colocou um de seus representantes como chefe do Estado. Mas a opinião pública não se emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa mundial teceu elogios ao ato. O Panamá também é um país de negros, mestiços e índios.
Por fim, os casos mais recentes: a guerra do Golfo contra o Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste) de ocupar o Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimento sem relevância. As razões apresentadas são de “ação comunitária”, “restauração da democracia”. “combate ao narcotráfico”, pois não cola mais o “perigo comunista.
É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neocolonialismo tecnocrático, racismo. Para justificá-lo utilizam não só a sócio-biologia, da engenharia genética e das hipóteses que procuram demonstrar a existência de raças inferiores, mas também canhões, aviões e tanques de guerra.
Estamos às vésperas do terceiro milênio. Vamos entrar numa época em que as ordenações sociais serão radicalmente reformuladas. Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas, vindas do antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resgatando o passado de dominação. E o realinhamento social também será étnico, pois as raças não brancas habitam por herança desse sistema as regiões espoliadas. Esse é o desafio do milênio que se avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em dimensão planetária.
Artigo publicado na edição de número 34 da Revista Princípios editada em 1994