Comunistas do Brasil e a questão da mulher – parte 3

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Nos dois primeiros artigos desta série abordamos o desenvolvimento da luta das mulheres no Partido Comunista do Brasil desde a fundação, em 1922, até o final da década de 1940. Neste terceiro artigo da série veremos de que forma isso desenvolveu entre os anos 1950 até a antessala do golpe militar.

Nas grandes mobilizações operárias que sacudiriam o país, no final da década de 1940 e início de 1950, as mulheres comunistas tiveram uma grande participação. Na greve dos 300 mil que parou a capital paulista em 1953 – e foi uma das mais importantes do período – se destacaram as figuras de Maria Sallas (foto à esquerda), Orondina Silva e Adoración Vilar. Graças a esse movimento grevista foram criados departamentos femininos nos sindicatos dos têxteis, metalúrgicos e gráficos. Em 1952 e 1953, a FMB realiza a 1ª e a 2ª Assembleia Nacional de Mulheres.

Neste período, tentou-se ampliar e fortalecer as organizações de bases femininas no interior do Partido, ainda que com muitas dificuldades e limitações na compreensão de seu papel. Ainda assim, o trabalho de mulheres florescia no partido, e foi significativo o número delas integradas aos cursos Stálin e Lênin, ministrados em grande escala nos primeiros anos da década de 1950. Muitas militantes, como Edíria Carneiro, tornaram-se professoras das escolas partidárias. Algumas mulheres seriam incluídas ainda nas três turmas que fizeram o curso de aprofundamento do marxismo-leninismo na URSS, com a duração de dois anos (1). Essas medidas sinalizavam uma preocupação maior em formar quadros femininos para o trabalho de direção política.

No Programa Socialista aprovado no 4º Congresso (1954), a questão da mulher é tratada em um ponto separado e sensivelmente mais detalhado que os registros partidários anteriores. No congresso, Iracema Ribeiro e Olga Maranhão fazem intervenções robustas sobre a questão da mulher, posteriormente publicadas na Revista Problemas, nas quais, ao passo que se enaltecia a capacidade política e de luta das mulheres brasileiras, se problematizavam os métodos de trabalho partidário entre este segmento e sua subestimação pelo coletivo partidário.

As resoluções do 4º Congresso reafirmaram a valorização das mulheres na construção do Programa do PC do Brasil e a existência das organizações de base femininas, objeto de polêmica na Tribuna de Debates. No jornal Voz Operária de 04 de dezembro de 1954 indicava, dentre as tarefas políticas do PC do Brasil após o congresso, “maior atenção ao trabalho entre as massas femininas” (2). Ainda em 1954, realiza-se o Ativo Nacional do Trabalho do Partido entre as Mulheres.

Além disso, uma quantidade recorde de mulheres foi eleita para a instância máxima de direção partidária, o Comitê Central. Entre os membros efetivos do CC constavam Arcelina Mochel, advogada, Rio de Janeiro; Lourdes Benaim, doméstica, São Paulo; Zuleika Alambert, professora, São Paulo. Na suplência: Orondina Silva, tecelã, São Paulo; Olga Maranhão, doméstica, Rio de Janeiro; Maria Salas, tecelã, São Paulo e Iracema Ribeiro, professora, Rio de Janeiro.

Os meses que se seguiram ao 4º Congresso foram de intenso trabalho e reflexão sobre o futuro do “trabalho feminino” no interior do Partido. Entre 19 e 21 de março de 1955, em reunião do pleno ampliado do Comitê Central, aprovou-se uma resolução histórica, pela radicalidade e ineditismo. Nesta, o amadurecimento do debate sobre a opressão da mulher fica patente logo nos primeiros parágrafos, distinguindo-o de todas as elaborações anteriores do PC do Brasil: “a mulher no Brasil sofre um duplo jugo […] sofre como qualquer trabalhador. […] Simultaneamente, é vítima, como mulher, das mais injustas e brutais discriminações no terreno econômico, político e social e, até no terreno jurídico, encontra-se em posição de inferioridade, já que as leis não lhe garantem os mesmos direitos que ao homem. […] Em sua esmagadora maioria, vivem na ‘escravidão doméstica’, esmagadas pelo trabalho mais árduo, subalterno e embrutecedor da cozinha.”(3)

Além disso, o mesmo documento afirmava que as mulheres tinham de se organizar em defesa de seus direitos e por sua emancipação, e que a conquista destes integrava a agenda nacional-democrática brasileira. Do ponto de vista partidário, diagnosticou-se que a resistência em se colocar o trabalho entre as mulheres como uma das principais tarefas refletiria “a influência da ideologia burguesa nas nossas fileiras, revelaria oportunismo”. 

No ano seguinte se realizaria um encontro nacional de mães e a 1ª Conferência Nacional das Mulheres Trabalhadoras. Esta conferência, ocorrida entre 18 a 20 de maio, reuniu centenas de delegadas — a maioria era composta de operárias — e elegeu suas representantes para a Conferência Mundial de Trabalhadoras em Budapeste. As comunistas tiveram participação em todos esses eventos.

O auge do processo de maturação do debate sobre a emancipação da mulher ocorre no final de maio de 1956, com a realização da 4ª Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil — também intitulada Conferência Nacional Sobre o Trabalho do Partido entre as Mulheres. A 4ª Conferência Nacional do PC do Brasil ocorreu em maio de 1956 e tinha por objetivo fazer uma autocrítica coletiva à subestimação das pautas das mulheres e conclamar o coletivo partidário ao engajamento na organização de sua luta.

O informe principal da conferência foi “Despertar para a luta e organizar as grandes massas femininas”, assinado por Luiz Carlos Prestes. Haveria mais três informes especiais: “Por um amplo trabalho de agitação e propaganda entre as mulheres”, apresentado por Carlos Marighella; “O trabalho com as Organizações de Bases Femininas: Condições para um amplo movimento feminino de massas”, por Sérgio Holmos; e “Renovar e melhorar nossos métodos de trabalho entre as mulheres”, por Iracema Ribeiro. A abertura dos trabalhos coube a Marighella e o discurso de encerramento, a João Amazonas. (4)

No Presidium de Honra da Conferência figuravam os nomes de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Olga Benário, Zélia Magalhães (5) e Angelina Gonçalves (6). No final dela, foram aprovadas duas resoluções: sobre o trabalho do partido entre as mulheres e a respeito de questões de organização e propaganda.

Alguns dias depois da conferência, o jornal Voz Operária publicou uma síntese da intervenção de Prestes, onde o secretário-geral “colocou diante de todos os comunistas o importantíssimo problema da emancipação da mulher. Esta não é uma tarefa fácil. A própria palavra emancipação não será facilmente compreendida pela maioria das mulheres. Emancipar-se significa livrar-se da tutela de alguém, libertar-se. A luta pela emancipação da mulher compreende um trabalho imediato, mas que será contínuo e prolongado.”(7)

Esse foi, ao mesmo tempo, o auge e o início de um rápido declínio da temática feminina no interior do PC do Brasil. O trabalho que vinha se acumulando foi desmontado após a grave crise interna que acometeu o partido, sobretudo após o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). No segundo semestre de 1956, a seção “Página Feminina” do Voz Operária deixou de existir.

Em 22 de janeiro de 1957, Juscelino Kubitschek assinou um decreto discricionário que afirmava: “Art. 1º Fica suspenso, pelo prazo de seis meses, o funcionamento da Federação de Mulheres do Brasil, com sede no Distrito Federal e das organizações a ela filiadas em todo o Território Nacional; Art. 2º O Ministério Público Federal promoverá imediatamente […] a competente ação de dissolução das entidades referidas no artigo primeiro; Art. 3º Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”. O Partido sequer esboçou reação.

A Declaração de Março de 1958, que se anunciava como a “modernização” do PC do Brasil, não cita em nenhum momento a palavra “mulher” ou “feminino”; inexistem textos na Tribuna de Debates do 5º Congresso (1960) tratando do tema; é drasticamente reduzido o número de mulheres no Comitê Central eleitas naquele congresso — passando de sete para uma única dirigente: Zuleika Alambert. A resolução do 5º Congresso parece reduzir tudo à estaca zero ao afirmar: “Maior atenção deve ser dedicada ao trabalho de massas entre as mulheres, que podem ser reunidas nos mais variados tipos de organização, especificamente femininas ou não para a luta em torno de reivindicações, tais como o amparo à criança, o combate à carestia, a abolição de desigualdades de direitos, a melhoria das condições de vida nos bairros etc.” (8)

A confluência de fatores externos e internos foi determinante para a desidratação do trabalho de mulheres do partido comunista nesta fase. Além de uma divisão de grandes proporções, resultando na reorganização do Partido Comunista do Brasil sob antigo programa — mas nova sigla (PCdoB). O rompimento foi o apogeu das disputas iniciadas alguns anos antes. A origem da contenda teriam sido as divergências táticas derivadas das diferentes interpretações acerca da natureza da revolução brasileira, catalisadas pela divisão do movimento comunista internacional a partir do 20º Congresso do PCUS em 1956. No Brasil, essa divisão se materializou na cisão incomum em que o grupo menor (alguns dirigentes de maior destaque foram expulsos) reinvindica a herança histórica, o nome original e o então programa da agremiação para si.

Resultado de um processo de luta interna no âmbito das direções partidárias, tal rompimento dos comunistas brasileiros fora capitaneado por dirigentes de proa da organização. À proposta do grupo majoritário liderado por Luís Carlos Prestes, então prestigioso secretário-geral do partido, se opunham o paraense João Amazonas, membro secretariado nacional desde a Conferência Nacional de Organização Partidária em 1943 e ex-deputado federal constituinte cassado em 1947, o paulista Maurício Grabois, secretário nacional de agitação e propaganda e ex-deputado federal constituinte cassado em 1947, Calil Chade e Pedro Pomar, também membros do comitê central, foram expulsos das fileiras do PCB. (11) Esses foram respaldados inicialmente por cerca de 300 militantes, um contingente pequeno para o tamanho do PCB. Este grupo, em 18 de fevereiro de 1962, realiza uma conferência extraordinária, reivindicando a reorganização do Partido Comunista do Brasil, sob — como logo passou a ser conhecido — a sigla PCdoB, e todo o seu arcabouço histórico. (12)  

As condições de clandestinidade ou semi-clandestinidade em que estiveram os comunistas no Brasil tornam difícil a aferição precisa da participação de mulheres nesse processo. Mas é possível sustentar a hipótese de que o desgaste advindo do largo processo de disputa interna havia, como efeito colateral, refluído a presença de mulheres no interior do PCB, e, por conseguinte, do PCdoB nos seus primeiros anos. Ao longo da década de 1960, sobretudo após o golpe de 1964, este pequeno grupo teria suas fileiras engrossadas por dissidentes oriundos do PC Brasileiro, das Ligas Camponesas e da Ação Popular. Então, a despeito da brutal perseguição e violência de Estado a que foi submetido, o PCdoB logrou crescer em tamanho e influência. Com a incorporação da Ação Popular, um número considerável de mulheres jovens, militantes daquela organização, ingressaria no partido. Elas seriam, em grande medida, a base do futuro trabalho feminista do PCdoB. As mulheres comunistas participaram ativamente da resistência à ditadura e do processo de redemocratização do Brasil. Temas que trabalharemos no próximo artigo da nossa série.

Notas e referências bibliográficas

(1)          CARNEIRO, Edíria. Entrevista a Augusto Buonicore e Fernando Garcia de Faria. Acervo do Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois CDM/FMG. Áudio: 2011.

(2)          O 4º Congresso do PCB indica as tarefas políticas a realizar. Jornal Voz Operária, nº292. 18/12/1954.

(3)          RIBEIRO, Iracema. Informe apresentado em nome do Presidium à Reunião do CC Ampliada de Março de 1955: “Melhorar, intensificar e ampliar o trabalho do partido entre as mulheres”. Jornal Imprensa Popular, nº 1468, 03/04/1955. p. 02

(4)          Jornal Voz Operária, nº 370, 16/06/1956.

(5)          Zélia Magalhães era militante do partido, assassinada pela polícia com um tiro durante uma manifestação no Rio de Janeiro em 1949. Tinha 23 anos e estava grávida de oito meses quando alvejada. Foto ao centro da montagem que ilustra o texto. (MONNERAT, Elza de Lima. Memória: Zélia Magalhães. Em Revista Presença da Mulher. nº14. Out/dez 1989. P. 21)

(6)          Militante do partido, operária tecelã gaúcha, assassinada no 1º de Maio de 1950. Angelina Gonçalves, 37, foi morta com um tiro no ouvido, abraçada à bandeira do Brasil e ao lado de sua filha Shirley, então com 10 anos, numa caminhada pacífica rumo à sede da Sociedade União Operária, que se encontrava fechada pelo governo. Foto à direita da montagem que ilustra o texto. (BUONICORE, A. & FARIA, F.G. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. 2012. Disponível em https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/)

(7)          PRESTES, Luís Carlos. Despertar para a luta e organizar as grandes massas femininas. Jornal Voz Operária, nº 369. Rio de Janeiro, 9/06/1956. p. 04.

(8)          PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PCB). Resolução do 5º Congresso. 1960. Disponível em: http://www.grabois.org.br/cdm/principais-documentos/146259/2010-01-23/resolucao-politica-do-5-congresso-1960

(9)          VENTURINI, M. R. Comunistas no Brasil e a emancipação da mulher: as conferências partidárias de 1956 e 2007. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia – nível mestrado, da Unicamp. Campinas: 2019.

 (10)       Cf. Jornal Novos Rumos nº 151. 29/12/61-4/1/62. Apud BUONICORE, Augusto. Meu verbo é lutar: a vida de João Amazonas. p.136.

(11)        RUY, José Carlos. 1954-1969 – Da reorganização de 1962 à Guerrilha do Araguaia. Em: BUONICORE, Augusto & RUY, José Carlos (orgs). Contribuição à história do Partido Comunista do Brasil. São Paulo: Fundação Maurício Grabois / Editora Anita Garibaldi. 2ª Edição. 2010. P. 127.

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