O que a “overdose eleitoral” em Israel anuncia
Israel prepara-se para a quarta eleição em dois anos e as perspectivas não são promissoras: espera-se o recrudescimento da extrema-direita no governo, com maior participação de forças religiosas fundamentalistas no Parlamento.
Publicado 18/02/2021 20:16 | Editado 18/02/2021 20:39
Nem mesmo a notícia do moderno remédio contra a COVID-19 da Universidade de Tel Aviv, que vem sendo publicizado, pode atenuar a gravidade da situação. A realização de novas eleições em meio à persistente crise política e também sanitária, em 23 de março, é um dos péssimos sintomas.
Um programa em áudio do jornal da esquerda liberal israelense Haaretz tem precisamente esse nome, “Overdose Eleitoral”. Os analistas que o apresentam estão extremamente céticos sobre qualquer melhoria do cenário político no país. No último episódio, discutiram a “não tão misteriosa morte da esquerda israelense”. Claro que se referiam mais precisamente à esquerda sionista.
O sionismo é dado absoluto, mas é notável a persistente resistência de progressistas e comunistas antissionistas nas ruas (onde enfrentam a brutalidade da repressão), nas universidades (onde suas carreiras dificilmente sobrevivem) e no Parlamento (onde o acosso é cotidiano). O conjunto de forças de esquerda antissionistas cresceu eleitoralmente nos últimos anos, como acompanhamos. Porém, ainda não o suficiente para desafiar concretamente a direita e a extrema-direita. Já a dita esquerda sionista e liberal, representada pelo Trabalhista e o Meretz, tem estado alijada ou praticamente fora de cena; prevê-se que o último sequer alcance a cláusula de barreira, estabelecida em 3,25%, e que o Trabalhismo ressurja de forma modesta.
Mas isso não dirime a crise do movimento, de grande significado: foi o Trabalhismo Sionista a principal força motora da colonização da Palestina antes e durante o Mandato Britânico (que durou até 1948) e do estabelecimento do Estado de Israel, ainda governando-o até 1977, quando a onda neoliberal e outros fatores mudaram o cenário. Aliás, o Trabalhismo travou, assim, quatro grandes guerras com países árabes, lançando as fundações do que seria a mais longa ocupação militar ainda vigente dos territórios de nações vizinhas, alimentando o expansionismo de Israel e a colonização da Palestina.
O que acompanha o enfraquecimento da esquerda sionista (que investiu na colonização para garantir a “emancipação nacional do povo judeu”) é a ultra-radicalização da direita sionista. Não bastasse toda a ficha corrida do partido que chefia o governo de Israel desde a queda do Trabalhismo em 1977 (com breves intervalos), o Likud, que nasceu de um “Revisionismo Sionista” idealizado por Zeev Jabotinsky (ele mesmo racista, beligerante e fascista, apontam alguns), resolveu salvar a pele nas próximas eleições aliando-se a um partido nascido de forças tão virulentas que foram banidas.
Trata-se do Otzma Yehudit (“Força Judaica” ou “Poder Judeu”), fundado por gente inspirada pelo rabino Meir Kahane, ele próprio proibido de concorrer às eleições nos anos 1980. Kahane fundou a Liga de Defesa Judaica e o partido Kach, banido em Israel e considerado pelo Departamento de Estado dos EUA uma organização terrorista. Ele pregava que os árabe-palestinos vivendo em Israel são inimigos e que o país deve ser um estado teocrático judaico em que vigoraria a lei judaica, onde não-judeus não teriam direito a votar ou à nacionalidade. Um tanto pior que a já brutal realidade, onde mais recentemente a Lei Israel: Estado-Nação do Povo Judeu conferiu aos judeus direito exclusivo à autodeterminação, definiu o hebraico como única língua oficial e rebaixou a língua árabe (antes também língua oficial) para língua de status especial (embora mais de 20% dos cidadãos de Israel seja palestino), promoveu a colonização da Cisjordânia como atividade de “valor nacional”, entre outras medidas que seriam consideradas aberrações em estados democráticos, mas são normais num regime de apartheid.
O “Poder Judeu” conforma o chamado Bloco Religioso Sionista, que tem tradição em Israel entre o “movimento dos colonos” fundamentalistas. Depois da guerra de 1967 diz-se que a ocupação dos territórios palestinos e outros territórios árabes e sua exponencial colonização revigoraram um messianismo no sionismo religioso que fortaleceu organizações dessa tendência. A vanguarda desse movimento ficou denominada Gush Emunim (Bloco dos Fiéis), que considerava um dever sagrado a conquista dos territórios, a sua “redenção”. E esta tradição vai conquistando ainda mais espaço formal. Já em 2019, Yoav Peled (professor israelense que argumenta por uma autonomia não-territorial como forma de desafiar o sionismo) escreveu que o Bloco Religioso Sionista tende à hegemonia cultural no cenário político, em referência à conceptualização gramsciana da capacidade de estabelecer as fronteiras do discurso público e consensos que beneficiam o grupo dominante.
Para isso, “os partidos do Sionismo Religioso estão trabalhando para forjar essa espécie de bloco histórico” que consolida a sua hegemonia. Enquanto isso, segundo Peled, o sistema partidário israelense é definido em três blocos políticos: o Likud, junto aos partidos menores ainda mais à direita e os do Sionismo Religioso e ultra-ortodoxos, formam o bloco da direita. Os de alguma forma afiliados ao legado do Trabalhismo Sionista formam a centro-esquerda, então liderada pelo Kahol Lavan (Azul e Branco). E os partidos que defendem os cidadãos palestinos de Israel formam o terceiro bloco. Na prática, apenas os blocos judaicos seriam relevantes para a formação de governos, embora nenhum deles tenha conseguido os 61 lugares necessários no Parlamento, nas últimas várias eleições, lembra Peled.
Foi há cerca de duas semanas que o premiê de Israel Benjamin Netanyahu, líder do Likud e do governo israelense desde 2009, achou no “Poder Judeu” a boia de salvação. Netanyahu tem sobrevivido a diversas crises políticas e enfrenta um processo judicial, acusado de corrupção e suborno, por exemplo.
Espera-se que em breve também seja acusado formalmente por crimes de guerra e crimes contra a humanidade contra o povo palestino, já que o Tribunal Penal Internacional avança (lentamente) no acolhimento das denúncias e, depois de ter determinado que tem jurisdição, pode finalmente abrir um inquérito. Netanyahu e seus aliados nos EUA esperneiam, é claro, sem reconhecer a autoridade da corte, acusando-a de enviesada e até, sem surpresa, antissemita.
Depois da formação da coalizão de governo com o general Benny Gantz, líder do partido oponente Kahol Lavan desde então fraturado, não houve convergência entre Netanyahu e Gantz. Foi uma crise após a outra e os desentendimentos atingiram o limite, para Gantz, que passou o tempo inteiro ameaçando desfazer a coalizão. Durou apenas sete meses. Uma forma de impedir o funcionamento do governo foi reprovar a proposta de orçamento e daí a convocatória de novas eleições, já que o Likud sozinho não pode sustentar o governo. Essa história é sabida. Agora analisa-se como a aproximação de Netanyahu a partidos ainda mais à direita que o seu próprio evidencia a gravidade da conjuntura política israelense. É preciso notar, entretanto, que Netanyahu já vinha recorrendo a acordos com o Poder Judaico ao menos desde 2019 para seguir garantindo a sua permanência na liderança do governo, mas agora o acordo atinge novo patamar. O Likud e o Poder Judaico devem compartilhar os votos na eleição de março.
Ao “Poder Judeu” já se havia somado o Noam, um partido “anti-LGBT e messiânico”, (assim descrito pelo Maki, órgão do Partido Comunista de Israel – PCI). O líder do “Poder Judeu”, Itamar Ben-Gvir, já havia sido denunciado pela Hadash (Frente democrática de paz e igualdade), que o PCI compõe, por sua adesão às ideias “kahanistas” – como ficou conhecido o legado de Kahane. De acordo com o Maki, Ben-Gvir até mesmo teve um cartaz com a foto de Baruch Goldstein, responsável pelo massacre de mais de 20 palestinos em Hebron, na Cisjordânia ocupada, pendurado na parede.
De acordo com órgão comunista, o acordo de partilha de votos sobressalentes, como o que o Likud assinou com o bloco religioso sionista, permite dirigir mais votos a um partido além do necessário para que um mandato seja transferido de um partido para outro e não seja desperdiçado. O método do cálculo para concluir quem fica com os votos sobressalentes está na Lei Bader-Ofer. Outras forças de extrema-direita, como o Yamina, dirigido por Naftali Bennett, e o Nova Esperança, de Gideon Sa’ar, assinaram o mesmo acordo em 4 de janeiro. Estes também compõem o chamado Sionismo Religioso.
Para a parlamentar comunista Aida Touma-Sliman, citada no Maki, com o acordo Netanyahu está “tentando conseguir imunidade por suborno em troca de apoio ao racismo flagrante”, referindo-se à tentativa de Netanyahu de fazer ser aprovada uma lei no próximo Parlamento que isentaria o Primeiro-Ministro em funções de ser julgado. O Maki também cita a parlamentar e líder do Partido Trabalhista Merav Michaeli dizendo que o acordo firmado entre Netanyahu e Ben-Gvir mostra que a escolha eleitoral é “entre continuar no caminho que levou ao assassinato de Yitzhak Rabin” – por um extremista israelense, depois de Rabin assinar os Acordos de Oslo nos anos 1990 com os palestinos e por isso ser alvo de virulentas acusações de Netanyahu, em discursos inflamados, à época – ou “votar pelo caminho de Rabin e o seu partido” – o Trabalhista. Já a líder do Meretz, também da esquerda liberal sionista, a parlamentar Tamar Zandberg, disse que o Likud atingiu um novo patamar moral ajudando Ben-Gvir a entrar no Parlamento.
Entretanto, a nível internacional, também se esperam os próximos capítulos da novela após o presidente estadunidense Joe Biden ter finalmente ligado para Netanyahu. Como se sabe, com Barack Obama, o governo estadunidense teve graves desentendimentos com Netanyahu, até mesmo se abstendo de vetar uma resolução aprovada no Conselho de Segurança da ONU que condenava a acelerada colonização de territórios palestinos de que Netanyahu tanto se esmera.
Mesmo assim, os EUA e Israel têm uma relação simbiótica e tanto Obama quanto Biden fazem questão de enfatizar este fato. Até mesmo a “liderança” do governo Netanyahu no combate à COVID-19 no país foi elogiada por Biden, embora há meses os palestinos e organismos internacionais denunciem os gravíssimos impactos da política discriminatória do regime de ocupação no processo de prevenção e vacinação, tanto de prisioneiros em cárceres israelenses quanto aqueles presos sob seu bloqueio à Faixa de Gaza, por exemplo. A consulta ainda incluiu a política a seguir relativa ao Irã, que Israel alega querer a sua destruição, buscando uma intervenção militar, e que o Governo Trump voltou a achacar depois de Obama ter firmado o acordo nuclear que Biden pode tentar ressuscitar. Vários dos pontos na agenda externa dos EUA passam por Israel e a turbulência política no país é certamente parte dela. Os EUA precisam poder contar com seu aliado mais-que-estratégico na região. A confirmarem-se as previsões eleitorais, de qualquer forma, com mais ou menos tensões, é provável que a simbiose resista.