Resgate de trabalhadores não acaba com trabalho escravo no Brasil

Maria Hemília Fonseca comenta que a situação conta com apoio dos beneficiados pela mão de obra escrava e precisa de ação do Estado para ser superada

Trabalho escravo: 45.028 pessoas foram resgatadas no Brasil entre 2003 e 2018. A agropecuária foi o setor que concentrou maior número de resgates Foto: Ministério do Trabalho via Fotos Públicas

Nos últimos meses, várias ações do Ministério do Trabalho têm libertado inúmeros brasileiros em condições análogas à escravidão. Só em 2020, foram cerca de mil pessoas resgatadas nessas condições. Essas ações, alerta a professora Maria Hemília Fonseca, professora e pesquisadora na área de Direito Internacional do Trabalho, Desenvolvimento e Sustentabilidade na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, mesmo indenizando o trabalhador resgatado, não acabam com a prática do trabalho escravo.

Para a pesquisadora, esse é um ciclo produtivo, fruto de um conjunto de agentes: desemprego, falta de qualidade de vida e de “políticas de ação e educação do Estado”, além de apoio dos próprios beneficiados por essa mão de obra. “O sistema não consegue inserir essas pessoas em outras formas de ver a própria dignidade e condição de sobrevivência; além disso, a pouca escolaridade e menores oportunidades de emprego são fatores de vulnerabilidade para a entrada no trabalho escravo.” 

É um contexto de trabalho em condições degradantes; ocorre sob ameaça de penalidade física ou psicológica, com restrições de documentação e dívidas da própria alimentação, e, também, em que o “trabalhador não se oferece de espontânea vontade. Muitas vezes, quando esse processo acontece, ele não tem volta”, explica a professora. 

Por isso, diz a professora, é necessário investimento do governo em educação, educação infantil, em superação de condições de pobreza, como a qualificação profissional da população. E essas também devem ser as exigências da sociedade. “Nós podemos contribuir, olhando para esse processo de cadeia produtiva, exigindo as fiscalizações e apoiando quem as realiza.”

Em vermelho a origem dos trabalhadores, em verde o local onde foram resgatados.

Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, lançado em 2017 pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 45.028 pessoas foram resgatadas em situação de trabalho escravo no Brasil, entre 2003 e 2018. A agropecuária foi o setor que concentrou maior número de resgates, basicamente nas áreas de criação de bovinos para corte, cultivo de arroz, fabricação de álcool, cultivo de cana de açúcar e fabricação de açúcar em bruto.

Violando os direitos humanos e a liberdade de trabalho, o trabalho análogo à escravidão vai contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu artigo 23, diz: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho”.

Trabalho análogo à escravidão no mundo

Dados da Organização Internacional do Trabalho mostram que a escravidão ainda é uma realidade em todo o mundo, mesmo após a entrada em vigor, em 2016, do protocolo de combate ao trabalho forçado.

O território com maior número de casos é a Ásia, em primeiro lugar, seguido pela África, América Latina e demais regiões. As vítimas deixam de receber pelo menos US$ 21 bilhões, a cada ano, em salários não pagos. Na visão da ONU, para dar fim a esse problema, é necessária uma ação coordenada de todos os países, para adotar medidas eficientes que diminuam as vantagens de quem utiliza essa forma de exploração.

Durante mais de 20 anos, o Brasil realizou ações que fizeram o país ser reconhecido positivamente por suas práticas e legislação. De 2005 a 2008, mais de 5 mil trabalhadores foram resgatados. No entanto, agora o País está em uma crescente tendência de retrocesso, como cita o professor Marcus Orione, do Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP. O professor lembra que, “desde 1995, o Brasil tinha um trabalho exemplar, mas, em 2015, houve uma queda no resgate de pessoas em trabalho análogo à escravidão e, em 2017, houve uma diminuição significativa, o que levou a um retrocesso que pode levar a situação equivalente à do século passado”.

Edição de entrevistas à Rádio USP

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