A autocrítica no país da hipocrisia

.

Ilustração: Duke

Como você explicaria o que se passa no Brasil a uma pessoa que viva em um país qualquer minimamente civilizado?

A missão é hercúlea, mas talvez pudéssemos começar assim: pegue uma porção de hipocrisia, não uma pitada, mas doses cavalares, e junte com generosos punhados de distorção da realidade, temperada com tendenciosidade e manipulação. Misture bem e cozinhe em fogo brando por uns quatro anos, e teremos uma situação de absoluto vale-tudo e descaso, com sabor de revolta e impotência.

Caso não seja compreendido, lance mão de alguns exemplos da nossa história recente.

Dilma Roussef não cometeu crime algum, como é sabido, mas Eduardo Cunha, esse sim criminoso comprovado, a chantageou e terminou por aceitar um pedido de impeachment infundado, mas que foi aprovado pelos deputados e senadores “pelo bem do país e da família (?)”. A grande mídia transmitiu todo o processo como se legal fosse, avalizando o golpe. Uma das justificativas para o golpe era baseada no alardeado caos econômico que o país atravessava. Pois bem.

Michel Temer arquitetou o golpe, aparelhou o governo com a laia mais corrupta do Centrão, e não teve satisfações públicas a dar. Nas palavras dele mesmo: “Vamos manter isso.”

Não foi comprovado crime por parte de Lula, mas ele foi julgado, condenado, preso e impedido de disputar as eleições de 2018. A grande mídia cobriu a atuação de cumplicidade de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol como se legal fosse, avalizando, assim, a prisão ilegal e o descrédito gerado pela política de modo geral, em especial pelos partidos de esquerda. Com grande apetite e autoridade moral, a grande mídia exigiu uma retração, uma autocrítica de Lula, do PT e de qualquer político e partido de esquerda a respeito dos desmandos e da corrupção instalada no país que, segundo parecem defender, era exemplar até então. Tudo isso foi determinante para a eleição de Jair Bolsonaro, que foi tratado por essa mesma mídia como se fosse realmente um sujeito com capacidade mínima para dirigir o país e fazê-lo avançar em algum aspecto.

Apesar de um bom contingente de fanáticos se manterem fiéis ao “mito”, parte cada vez maior dos seus eleitores se mostra arrependida da escolha. Para mim, a melhor ilustração dessa situação foi feita pelo cartunista Duke. Ele mostra um sujeito de camisa amarela empurrando um asno para dentro de um quartinho de depósito. Uma pessoa o alerta dizendo para não colocar o asno raivoso ali porque ele iria destruir tudo. O de camisa amarela não se importa. Daí, óbvio, o asno começa a destruir o quartinho e o sujeito volta atrás, preocupado, constatando que o asno estava destruindo tudo e que precisava ser retirado dali. Fazer o que, não é mesmo? A melhor encarnação desse tipo de sujeito é João Dória, aquele que auto intitulava-se Bolsodoria, e que hoje, “surpreso” pelo comportamento de Bolsonaro, posa como seu arquirrival, e de quebra, como sujeito ponderado e democrático, evidentemente de olho em 2022.

Apenas dois anos depois, vemos a Rede Globo tratar as notícias da pandemia com visível zelo e preocupação, enquanto condenam os graves erros e omissões do governo federal. É “comovente” ver figuras como Miriam Leitão e William Bonner se mostrarem chocadas com as atrocidades do asno raivoso, sem nem por um momento considerarem a enorme contribuição que deram para botar ele lá no quartinho. Realizam pseudodebates com seus próprios comentaristas políticos que não levam a lugar algum, e quando tentam reunir lideranças políticas para avaliações “isentas”, excluem deliberadamente todos os principais quadros que consideram desafetos, à revelia da sua representatividade e importância no país. Algo do tipo “o canal é meu e nele você não fala.” Democrático, não?

Acho que, a essa altura, o estrangeiro já estará começando a entender o Brasil, mas sugiro continuar com os mais recentes acontecimentos.

Chegamos em Rodrigo Maia, que passou os últimos dois anos sem tomar posição clara a respeito dos absurdos de Bolsonaro. Por vezes passou pano, por outras escreveu bravatas no twitter, mas, na prática, sentou em cima de ao menos 54 processos de pedidos de impeachment, esses sim fundamentados em crimes de responsabilidade claramente tipificados. A explicação para não dar andamento aos pedidos é que não havia “ambiente” para a instalação de um processo de impeachment, mesmo na maior crise econômica e sanitária do Brasil ao menos desde a gripe espanhola. Talvez o caos econômico atual não seja tão grave quanto o da época de Dilma. Será? Maia não fez o sucessor na Câmara e, após figurar entre possíveis candidatos em 2022, sai enfraquecido no cenário político do país. Mas, sinceramente, como esperar posição firme de políticos acostumados a ver o circo pegar fogo para depois negociar a divisão da carcaça? É o mesmo que esperar algo de Arthur Lira, que, como bom profissional do ramo, tomou posse de máscara, fazendo o discurso politicamente correto para a pandemia mas, na sequência, se comportou como de fato percebe o mundo, pautado em um negacionismo burro e irresponsável. Está dado o tom do Congresso Nacional para a próxima legislatura: afinidade total com a visão de mundo de Bolsonaro, mas sem as inconsequências do “mito”, pois tentará se manter a elegância diante das câmeras. Exceto as dos celulares.

Não devia ser razoável um vice-presidente arquitetar a derrubada da presidenta que jurou honrar, mas Michel Temer nunca fez autocrítica sobre seu comportamento com Dilma Roussef. Bolsonaro, nem os filhos, nunca fizeram nem farão qualquer autocrítica pelas barbaridades ditas e feitas semanalmente, muito menos pelos crimes cometidos, negarão tudo até a cadeia. Que eu saiba, ninguém nem cogita cobrar o tal pedido de desculpas dessa família. A Rede Globo, como representante maior de um esquema de grande mídia que inclui gente do nível de Alexandre Garcia e Datena, não deveria fazer uma autocrítica sobre seu comportamento no impeachment de Dilma, na prisão de Lula, na promoção de Moro, e na eleição de Bolsonaro? Falo daquela eleição em que não houve nenhum debate no segundo turno, com a conivência de todos os órgãos da imprensa. Rodrigo Maia não deveria fazer uma autocrítica pública por ter segurado tantos pedidos válidos de impeachment e agora deixá-los à mercê do Centrão? O que dizer de (Bolso)Dória então?

A fila da autocrítica é longa. Mas, ao que parece, a autocritica só é exigida nesse país aos que apresentam o mínimo de dignidade, que exibem comportamento do qual se possa exigir coerência e respeito aos valores republicanos. Os irresponsáveis e incoerentes, bandidos e chantagistas, assim como os descompromissados com a verdade e que mudam de opinião e de lado ao sabor de seus interesses, não precisam temer. Nada lhes será exigido.

Após essas breves explicações talvez o estrangeiro se sinta esclarecido sobre o Brasil, mas seguramente também estará estarrecido, afinal ele vem de um país minimamente civilizado.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho

Autor