José Graziano: Fome volta ao Brasil com crise e omissão de Bolsonaro
Para Graziano, caminhos possíveis para enfrentar a fome passam por restabelecer uma política similar ao Fome Zero
Publicado 01/02/2021 11:53 | Editado 01/02/2021 12:59
Depois de sair, em 2014, do Mapa da Fome mundial, o Brasil está de volta à lista dos países onde mais 5% da população vive em situação de insegurança alimentar grave. O golpe de 2016, a crise econômica, a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder e a pandemia de Covid-19 formaram a chamada “tempestade perfeita”, que detonou o avanço da fome País afora. É o que avalia José Graziano, idealizador do programa Fome Zero e ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Hoje, com a pandemia ainda em patamares elevados, o Brasil pode ter 30 milhões de pessoas em situação de fome extrema. Em entrevista ao Sul21, Graziano diz que os caminhos possíveis para enfrentar a fome passam por restabelecer, como política de Estado, um projeto de segurança alimentar e nutricional, assim como foi feito com o Fome Zero na primeira década do século 21.
Sul 21: A fome voltou a ser um problema grave para a população brasileira, situação ocorrida antes da pandemia, mas agravada pelas circunstâncias da crise sanitária. Para o Instituto Fome Zero, quais os caminhos possíveis para enfrentar esse tema?
Graziano: Implantado em 2003, o Fome Zero conseguiu, em apenas dez anos, tirar o país do Mapa da Fome mundial. Nesse momento em que se aprofunda a crise econômica pela segunda onda da pandemia, é fundamental tomar algumas medidas de urgência, entre elas, a principal é o restabelecimento do auxílio emergencial, também reforçar o programa Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), bem como dar crédito aos pequenos comerciantes, pequenos negócios, e principalmente para os agricultores familiares, que são os grandes responsáveis pelos alimentos frescos que nós comemos.
Sul21: Em 2020, o auxílio emergencial amenizou a crise econômica das populações mais vulneráveis, porém ele terminou agora em 2021. Qual a dimensão da importância de o auxílio continuar sendo oferecido em 2021?
Graziano: Sem o auxílio emergencial, a maioria dessas pessoas teria se tornado miseráveis ou famintos, e é isso que pode acontecer agora, se o auxílio não for restabelecido no início de 2021. Já estamos demorando para fazer. É inacreditável que o governo espere a eleição na Câmara dos Deputados e no Senado para voltar a discutir seriamente esse problema. É inacreditável que a equipe econômica não tome a iniciativa de propor um novo auxílio emergencial nesse início de ano, em que estamos vendo o recrudescimento fortíssimo da pandemia em todo o País.
Sul21: Nos primeiros dias de governo, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Antes, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) já vinha sofrendo perdas durante o governo Temer. Como recuperar ou substituir instrumentos de políticas públicas importantes para a segurança alimentar e que foram esvaziados ou eliminados?
Graziano: A extinção do Consea no primeiro dia do governo Bolsonaro é um ato político, um recado de que ele desmontaria a política de segurança alimentar e nutricional que foi implementada a partir dos dois governos Lula. O resultado, conhecemos bem, perdemos o interlocutor. O Consea é importante porque é o interlocutor do governo com a sociedade civil organizada e com o setor privado. O setor privado tem muito a contribuir nas cadeias alimentares.
Programas como o Bolsa Família, merenda escolar, o Programa de Aquisição de Alimentos têm que estar inscritos no orçamento com a garantia de que os recursos de um ano serão, no mínimo, iguais aos recursos do ano anterior. Não podem ser descontinuados, afinal de contas, precisamos comer todos os dias. Nós vimos no que deu o desmantelamento do PAA, faltou arroz e feijão, não houve controle, não havia estoque, se exportou tudo o que produziu, não se guardou nada e ficamos sem estoque. Isso não ocorreu na maioria dos países civilizados. Produtos como arroz e feijão, que são a base da nossa dieta, precisam ter um estoque regulador emergencial, a recomendação da FAO é de dois a três meses do consumo nacional, o que permite, em momentos de incerteza, fazer frente à escassez do produto e evitar que o consumidor pague o preço disso, literalmente, porque os valores subiram exponencialmente.
Sul21: Considerando o atual contexto adverso, tanto politicamente como do ponto de vista sanitário, quais outras práticas bem sucedidas do passado o Instituto Fome Zero acredita serem possíveis de recuperar?
Graziano: Tinha muita coisa que era feita, no nível dos estados e municípios, e que pode voltar a ser feita. Podemos ter bancos de alimentos para reduzir perdas, e redistribuir produtos que vão vencer no supermercado. Os municípios podem ter a feira do produtor e facilitar a venda local, podem implementar hortas comunitárias em terreno baldio com pessoas desempregadas. Há uma lista de coisas que podem ser feitas no âmbito de um programa tipo o Fome Zero e agora é a hora dos estados e municípios tomarem a iniciativa frente à omissão criminosa do governo federal. O fundamental é ter uma política permanente de segurança alimentar e nutricional. Não pode levar 10 anos pra tirar o país do Mapa da Fome e ele voltar em cinco anos, como está para acontecer. A política de segurança alimentar e nutricional deve ser permanente e implementada em todos os níveis de governo, do municipal ao federal, passando pelos estados, cada um tem as suas funções a cumprir e pode cumprir muito bem para garantir a todos os brasileiros uma alimentação saudável.
Sul21: De que forma é possível estados e municípios atuarem pra enfrentar a fome em seus territórios, considerando a hipótese de não receberem apoio do governo federal?
Graziano: Vale lembrar que determinados recursos são de transferência compulsória do governo federal para estados e municípios, independem do governo federal querer apoiar ou não o prefeito ou o governador. Por exemplo, os recursos pra saúde, do SUS, e os recursos da merenda escolar, na área da educação. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) transfere recursos para os municípios administrarem a merenda escolar. E aí depende do prefeito como esses recursos serão utilizados. Por exemplo, a diretriz de compras da agricultura familiar, de 30% no mínimo para merenda escolar, ainda não é seguida em muitos municípios porque os prefeitos não tomaram a iniciativa de se organizarem pra fazer essas compras, apesar dos recursos estarem disponíveis. Então é uma questão de estabelecer prioridade.
Em segundo lugar, diria que estados e municípios têm seus próprios orçamentos. Os municípios têm recursos independentes que vêm da arrecadação tributária, e os estados também. Então esses recursos podem ser alocados de acordo com as prioridades estabelecidas pela administração municipal ou estadual, é uma questão de escolha e vontade política do prefeito alocar uma parte maior, ou menor, desses recursos para melhorar a segurança alimentar e nutricional dos cidadãos que moram na cidade. Vale lembrar uma máxima que é sempre repetida: as pessoas moram nos municípios, é ali que elas vivem, é ali que elas comem, portanto compete às prefeituras criarem condições mais favoráveis às comidas saudáveis ou não.
Fonte: Sul21