Bolsonaro adotou estratégia de propagar covid-19 para retomar economia
Bastou analisar a sequência de milhares de normas vindas do Governo Bolsonaro em 2020, para pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP e a Conectas Direitos Humanos perceberem uma estratégia institucional sistemática para adoecer toda a população e retomar a economia o quanto antes. Ação do legislativo e do judiciário impediram uma tragédia ainda maior.
Publicado 21/01/2021 20:41 | Editado 22/01/2021 17:27
A pesquisa das normas produzidas pelo Governo Bolsonaro relacionadas à pandemia de covid-19 revelam o oposto do que um governo deveria fazer para proteger sua população da propagação de uma doença contagiosa. Ao divulgar o relatório em que, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e a Conectas Direitos Humanos, organização de justiça da América Latina, se dedicaram a coletar e analisar as normas federais e estaduais relativas à estratégia para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, fizeram uma afirmação categórica: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.
A declaração dos pesquisadores consta do boletim Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, com edição especial lançada nesta quinta-feira (21). Segundo reportagem de Eliane Brum ao jornal El País, a análise de 3.049 portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões e decretos, assim como as falas públicas do presidente, explicam porque o Brasil é um dos países mais afetados pela covid-19 no mundo.
Segundo a análise dos estudiosos, não se trata de incompetência ou negligência, mas de uma prática proposital e “sem precedentes” com objetivos, planos e metas. A vantagem do estudo é sistematizar uma linha do tempo consciente e ordenada com esses objetivos definidos, que não podem ser percebidos num turbilhão de episódios confusos que se seguiram dia a dia no ano de 2020. O estudo consegue documentar claramente as etapas do planejamento do governo.
“Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”, afirma o editorial da publicação. “Esperamos que essa linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa”.
A pesquisa é coordenada pela jurista Deisy Ventura, pesquisadora da relação entre pandemias e direito internacional e coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP; Fernando Aith, professor-titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP e diretor do CEPEDISA/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil; Camila Lissa Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos; e Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da USP.
A linha do tempo mostra os vetos presidenciais a normas federais que não estavam sintonizadas com os objetivos centrais. Revela como o governo federal procurou obstruir sistematicamente a resposta dos governos estaduais e locais à pandemia. Mais visivelmente, pôs em prática táticas de propaganda contra a saúde pública, definida como “o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além denotícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da covid-19”.
A análise aponta ainda para a responsabilização de agentes públicos pela “violação sem precedentes do direito à vida e do direito à saúde dos brasileiros”. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União apontaram, inúmeras vezes, a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais. Também destacam “a urgência de discutir com profundidade a configuração de crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19 no Brasil”.
Os atos e falas de Bolsonaro são conhecidos, mas acabam se diluindo no cotidiano, no quala mobilização de factoides e notícias falsas nas redes sociais é também parte da estratégia para encobrir a consistência e persistência do projeto que avança.
Desestímulo à atuação dos profissionais de saúde
A análise ainda pontua as populações que deveriam ser atingidas primeiro. Além dospovos indígenas, que tiveram vetados vários direitos durante a pandemia, medidas são tomadas para impedir os trabalhadores das periferias de se proteger da doença por meio de isolamento. Para isso, dificulta o acesso ao auxilio emergencial aprovado pelos deputados e senadores, aumenta o escopo de “atividades essenciais”.
Bolsonaro se dedica a desestimular o trabalho arriscado dos profissionais de saúde no combate à doença. Faz isso ao vetar compensações financeiras para esses que ficarem doentes trabalhando, e também isenta de responsabilidade esses servidores da saúde caso não queiram contribuir para o atendimento à população. A falta de um plano de imunização e o discurso antivacinal do presidente também visa a desacreditar a ciência e desinformar para garantir a estratégia.
Através de retenção de recursos destinados à covid-19, o Governo prejudica a assistência aos doentes na rede pública de Estados e municípios. A guerra contra governadores e prefeitos que tentam implementar medidas de prevenção e combate ao vírus também foi sistemática. Bolsonaro chega a vetar até mesmo medidas básicas, como obrigatoriedade de máscaras dentro de estabelecimentos com autorização para funcionar.
A análise dos dados mostra também o quanto a situação do Brasil poderia ser ainda mais trágica caso o STF e instâncias legislativas não tivessem barrado várias das medidas de propagação do vírus produzidas pelo Governo. Apesar da fragilidade demonstrada pelas instituições e pela sociedade, é visível o esforço de parte dos protagonistas para tentar anular ou neutralizar os atos de Bolsonaro. É possível fazer o exercício de projetar o quanto todos esses esforços, somados e associados a um governo disposto a prevenir a doença e combater o vírus, poderiam ter feito para evitar mortes em um país que conta com o Sistema Único de Saúde (SUS).
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