“Sozinha ninguém faz nada”, diz Vanuza Kaimbé, 1ª indígena vacinada
Em entrevista à Amazônia Real, enfermeira fala sobre luta indígena, vacina, saúde e política
Publicado 20/01/2021 18:22
A imagem de Vanuza Costa Santos, de 50 anos, da etnia Kaimbé, rodou o Brasil e o mundo após ela ser a primeira indígena no país a ser vacinada contra o coronavírus, no dia 17 de janeiro, em São Paulo. Técnica de enfermagem e também assistente social, ela mora em uma aldeia multiétnica de Guarulhos, a 20 quilômetros da capital e composta majoritariamente por povos vindos do Nordeste. Apesar de estarem no grupo prioritário de vacinação, pelo menos 380 mil indígenas brasileiros foram excluídos do plano nacional de imunização por não viverem em territórios demarcados. “Sou uma pessoa signatária das leis, leio a Constituição e não existe nenhum dispositivo que diga que o indígena deixa de ser indígena quando sai da aldeia. O Brasil todo é terra indígena, o Brasil é pindorama. Temos que ser vacinados”, cobra Vanuza em entrevista à Amazônia Real.
No domingo (17), o Coletivo Indígenas do Amazonas lançou uma mobilização nacional para pressionar as autoridades de saúde a ampliarem a cobertura vacinal prioritária. Após Vanuza Kaimbé ter recebido a dose da vacina, os governadores dos demais estados se apressaram em também imunizar os primeiros indígenas de seus territórios. No Amazonas, Vanda Ortega, da etnia Witoto, foi a primeira pessoa vacinada. Ronoré Gavião, de 105 anos, foi primeira indígena imunizada no Pará. No domingo, logo após a vacinação da enfermeira Mônica Calazans e de Vanuza Kaimbé, o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, acusou o governador de São Paulo, João Doria, de querer fazer propaganda. “Um faz o marketing que salva e o outro faz o marketing que mata”, compara Vanuza. Confira os principais trechos da entrevista com Vanuza Kaimbé.
Amazônia Real – Como recebeu a notícia de que seria a primeira indígena a ser vacinada?
Vanuza Kaimbé – Eu sabia que tomaria a vacina, mas acredito que fui chamada devido à repercussão da luta que engajei, pela minha militância. Na sexta-feira (15 de janeiro), me ligou uma assessora da Secretaria de Saúde e mais uma pessoa do Butantan e perguntaram se eu topava. Respondi que seria uma honra, que estava esperando para ser vacinada há muito tempo. Não contei para ninguém para não gerar expectativa e no domingo fui a primeira pessoa a chegar lá. Sabia que o acontecimento seria só depois das 13 horas, mas com medo de me atrasar, às 11 horas já estava lá. Não tive nenhuma reação, nenhum efeito colateral. O único efeito é o da gratidão e o da euforia, de saber que há uma esperança para a continuidade da minha vida. Não quero morrer e a única forma de a gente se livrar dessa doença é a vacina.
Amazônia Real – Qual foi a luta em que se engajou?
Vanuza – Desde o primeiro dia em que fiquei sabendo dessa pandemia, que era uma doença respiratória, sabia que chegaria no Brasil, porque vivemos em um mundo globalizado. E a proximidade de morarmos perto do aeroporto de Guarulhos me deixava ainda mais preocupada, porque sabia que quando o vírus chegasse aqui seria pelo aeroporto. Faço parte do Conselho Municipal de Saúde e mostrava nas reuniões a minha preocupação. Dizia que a gente deveria pensar em prevenção, em estratégias. Mas diziam que não, que era para eu me preocupar com a dengue, com a chikungunya, com a H1N1, que o Brasil era um país tropical, que não iria chegar aqui, e eu dizendo que eles estavam enganados. Tenho tudo isso documentado. Quando as pessoas ficaram doentes, quando morreram indígenas, quando primos meus morreram, entrei em desespero e comecei a bater na porta das secretarias de saúde municipal e estadual, da Funai (Fundação Nacional do Índio), da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), cobrando uma intervenção. Engajei uma luta com parceiros porque sozinha ninguém faz nada. Divulguei áudios, que chegaram até as emissoras de televisão e assim começou a ter mídia. Por causa dessa insistência, nossa aldeia foi a primeira em que todos os membros foram testados.
Amazônia Real – Qual o sentimento após receber a vacina?
Vanuza – Estou em estado de graça por estar imunizada, mas tem uma certa apreensão porque a vacina não vai chegar para todo mundo nesse momento. A gente só tem 6 milhões de doses. Não vai dar nem pra vacinar todos os profissionais de saúde, os idosos e os indígenas. Os governos não fizeram a lição de casa, então tem problemas com insumos, tem problemas para comprar vacinas, seringas, com a logística correta. Recomendo que quem tiver a oportunidade de tomar a primeira dose, tome, porque é melhor tomar uma do que não tomar nada. É a única medicação eficaz para garantir as nossas vidas. Não tem remédio paliativo.
Amazônia Real – Como foi falar sobre a sua preocupação com a chegada da doença e ser desacreditada?
Vanuza – Em uma reunião no dia 18 de fevereiro, no Conselho Municipal de Saúde, eu falava sozinha e era tida como uma doida e exagerada. Vi tanta gente indo contra o meu pensamento que me perguntava se estava mesmo exagerando, porque ninguém compactuava da minha preocupação, como se eu estivesse doida mesmo. Mas eu queria ter sido doida, exagerada e pecado por excesso e nenhuma dessas mortes tivesse acontecido. Eu fazia o trabalho de prevenção na aldeia, de distanciamento, já falava em fechar a comunidade para não deixar ninguém de fora entrar. Aí veio a equipe de saúde dizer que era para a gente se preocupar com a dengue. Então, todo o trabalho que fiz com a minha comunidade, a Secretaria de Saúde foi lá e desfez. Só quando viram que a água estava chegando no pescoço, que começou a correria.
Amazônia Real – E como foi o seu trabalho na aldeia?
Vanuza – Meus parentes também não me ouviam, não. No carnaval, já não saí de casa porque sabia que tudo isso ia se espalhar e que seria como se o mundo acabasse. Sabia que morreria muita gente e já falava de ficar em casa, mas falavam que eu estava doida, que estava chamando a doença. No dia 14 de abril morreu o primeiro Kaimbé, a primeira pessoa do meu povo, e era uma pessoa próxima da gente. Aí viram que precisávamos mesmo nos cuidar. Então fechamos a aldeia e os que tinham que trabalhar fora, deixaram os empregos. Eu e mais uma prima colocamos a cara na TV contando que vivíamos do artesanato, do trabalho informal e pedimos apoio. Com nossa mobilização, nunca nos faltou nada na aldeia, nem comida, nem produto de higiene. Os brasileiros foram solidários com a gente e com isso resistimos até hoje sem nenhum óbito na aldeia. Dos sete contaminados, todos se recuperaram. Nos contaminamos todos de uma vez, da segunda quinzena de maio até 15 de junho. Depois não fizemos mais testes porque ficamos com medo e como ninguém mais teve sintomas, não teve problema. Mas a comunidade ficou fechada, só entravam os parceiros, todos de máscaras e tudo com distanciamento.
Amazônia Real – Conta um pouco sobre quem é a Vanuza.
Vanuza – Nasci na Terra Indígena Massacará, no município de Euclides da Cunha, sertão baiano. Vim para São Paulo jovem. Quando eu tinha cinco anos precisei ir ao hospital e me indicaram uma operação de tireóide imediatamente, sem muitos exames, e fugi do hospital. Fui pra casa e fiquei com aquilo na cabeça, que iria estudar porque um dia seria uma pessoa de branco, porque eu nem sabia o que era enfermeiro, o que era médico, e minha mãe dizia que eu não ia conseguir isso, não. Aí vim para São Paulo estudar, trabalhar e aí já sabia que queria ser enfermeira. Não tive condições e fui trabalhar de empregada doméstica e depois como auxiliar de crédito. Depois fui vendedora. Mas sempre que passava em frente a um hospital me lembrava que tinha vindo para ser enfermeira. Larguei tudo e fui realizar meu sonho. Tinha 30 anos e me tornei técnica de enfermagem e fui trabalhar na saúde indígena, onde fiquei por dez anos. Mas só ser técnica já não era o suficiente, pois fazia falta o curso superior. Também queria ser exemplo para o meu filho. Criei coragem para fazer o vestibular na PUC e passei. Meu filho também fez o vestibular e passou e no ano que vem ele se forma. No momento, estou procurando emprego remunerado de assistente social.
Amazônia Real – Qual a sua opinião sobre a informação do governo federal que os indígenas que moram nas cidades não serão vacinados no grupo prioritário?
Vanuza – Sou uma pessoa signatária das leis, leio a Constituição e não existe nenhum dispositivo que diga que o indígena deixa de ser indígena quando sai da aldeia. O Brasil todo é terra indígena, o Brasil é pindorama. Não existe essa separação. O indígena é indígena em qualquer lugar, na aldeia, na cidade ou na universidade. Hoje grande parte dos indígenas mora na cidade e não é porque não amamos a natureza que deixamos nossas aldeias. Mas as cidades invadiram nossos territórios. As terras indígenas foram invadidas e as que não foram nós preservamos. Estamos nas cidades porque não tivemos outra opção. Viemos em busca de saúde, moradia e trabalho porque as aldeias não eram mais suficientes para morar. Então temos que dizer para esse governo e para todos que índio é índio nas cidades ou nas aldeias e temos que ser vacinados.
Amazônia Real – Você já sabe quando vai receber a segunda dose da vacina?
Vanuza – Ainda não tem data, mas a previsão é para 30 dias. Quando chegar esse prazo, se eles não me ligarem, eu mesma entro em contato porque tenho o telefone deles e vou perguntar: “E aí, quando será minha segunda dose?”.
Amazônia Real – Qual a sua avaliação sobre essa disputa ideológica entre o governo do estado de São Paulo e o governo federal?
Vanuza – Isso entristece muito, mas não estou surpresa com o presidente, porque ele sempre foi um parasita. Viveu 30 anos como deputado e além de não ter nenhum projeto de lei, sempre votou contra tudo que era a favor do povo. Mas pensava que agora ele teria uma oportunidade para cuidar da saúde, porque estava com a faca e o queijo na mão. Não sou eleitora do Doria, mas ele está fazendo o possível para conseguir resolver. No entanto, se a gente tivesse as três esferas funcionando, nossa realidade seria outra, seria melhor. Mas o governo federal desrespeita a ciência, mas a ciência não é política e deu de goleada no governo. A verdade é que o governo passa, mas a ciência e os profissionais ficam. Viva a ciência.
Amazônia Real – O ministro da Saúde deu uma declaração de que o governo do João Dória teria feito marketing já vacinando pessoas no domingo. Você se sentiu uma peça de marketing?
Vanuza Kaimbé – Não, mas para defender a minha saúde e para defender o bem eu me sujeito a ser uma peça de marketing. Não me sujeitaria se fosse para o marketing da desinformação, da ignorância e para destruir vidas. O presidente está no palanque e está fazendo o marketing da ignorância e da desinformação. Um faz o marketing que salva e o outro faz o marketing que mata. Vacina é um ato de amor. Vacina não mata. O que mata é a ignorância, a falta de remédio. Se a vacina chegar pra você, seja grato.
Fonte: Amazônia Real