China vence a Covid-19 com ciência e saúde e não com autoritarismo
A terrível experiência com a epidemia de SARS preparou o sistema de saúde da China para uma resposta rápida e eficiente ao ataque do novo coronavírus
Publicado 24/11/2020 00:55 | Editado 24/11/2020 08:04
Eu vivo em uma democracia. Mas, com a aproximação do Dia de Ação de Graças, sinto falta do tipo de liberdade que estou vendo na China.
As pessoas na China podem se mover livremente agora. Muitos americanos podem acreditar que os chineses são capazes de desfrutar dessa liberdade por causa do regime autoritário da China. Como uma estudiosa de saúde pública na China, acho que as respostas vão além disso.
Minha pesquisa sugere que o controle do vírus na China não é resultado de uma política autoritária, mas de uma priorização nacional da saúde. A China aprendeu uma dura lição com a SARS, a primeira pandemia de coronavírus do século 21.
Como a China achatou sua curva
Há pouco menos de um ano, um novo coronavírus surgiu em Wuhan, China, com 80.000 casos identificados em três meses, matando 3.000 pessoas.
No final de janeiro de 2020, o governo chinês decidiu bloquear esta cidade de 11 milhões de habitantes. Todo o transporte de ida e volta para a cidade foi interrompido. As autoridades bloquearam ainda várias outras cidades na província de Hubei, eventualmente colocando em quarentena mais de 50 milhões de pessoas.
No início de abril, o governo chinês limitou a disseminação do vírus a ponto de se sentir confortável para abrir Wuhan novamente.
Sete meses depois, a China confirmou 9.100 casos adicionais e registrou mais 1.407 mortes devido ao coronavírus. As pessoas na China viajam, comem em restaurantes e vão ao teatro, e as crianças vão à escola sem se preocupar muito com sua saúde. Compare isso com o que estamos vivenciando nos EUA. Até o momento, confirmamos mais de 11 milhões de casos, com o último 1 milhão registrado apenas na última semana.
Em setembro e outubro, amigos da China me enviaram fotos de comida de todo o país enquanto viajavam para visitar amigos e familiares para o festival do meio do outono e depois para a semana de férias de sete dias do Dia Nacional. Eu os invejei naquela época e os invejo ainda mais agora, enquanto os americanos se preparam e se perguntam como vamos celebrar o Dia de Ação de Graças este ano.
O que a China aprendeu com a SARS
Dizem a nós, americanos, que as liberdades de que agora gozam os chineses vêm à custa de serem submetidos a um conjunto de políticas de saúde pública draconianas que só podem ser instituídas por um governo autoritário. Mas eles também têm a experiência de viver uma epidemia semelhante.
A SARS estourou em novembro de 2002 e terminou em maio de 2003, e a China estava tudo, menos preparada para seu surgimento. Não havia infraestrutura de saúde pública para detectar ou controlar essa doença e, inicialmente, decidiu priorizar a política e a economia sobre a saúde, encobrindo a epidemia. Isso não funcionou com uma doença tão virulenta que começou a se espalhar pelo mundo.
Depois de serem forçados a chegar a um acordo com a SARS, os líderes da China acabaram aplicando a quarentena em Pequim e cancelaram o feriado de uma semana de 1º de maio de 2003. Isso ajudou a acabar com a pandemia em poucos meses, com impacto mínimo. A SARS infectou aproximadamente 8.000 em todo o mundo e matou cerca de 800, 65% dos quais ocorreram na China e Hong Kong.
O governo chinês aprendeu com a SARS o importante papel que a saúde pública desempenha na proteção da nação. Após a SARS, o governo melhorou o treinamento dos profissionais de saúde pública e desenvolveu um dos sistemas de vigilância de doenças mais sofisticados do mundo. Apesar de ser pego de surpresa por esse próximo grande surto de coronavírus em dezembro de 2019, o país mobilizou rapidamente seus recursos para conter a epidemia dentro de suas fronteiras em três meses.
O que os EUA podem aprender com a China?
Sabendo que não havia tratamentos seguros ou comprovados ou uma vacina eficaz, a China confiou em intervenções não farmacêuticas comprovadas para vencer a epidemia. Em primeiro lugar, conter o vírus por meio do controle das fontes de infecção e do bloqueio da transmissão. Isso foi realizado por meio da detecção precoce (teste), isolamento, tratamento e rastreamento dos contatos próximos de qualquer indivíduo infectado.
Essa estratégia foi auxiliada pelos três hospitais de campanha (fancang) que o governo construiu para isolar de suas famílias pacientes com sintomas leves a moderados. Medidas estritas de quarentena também foram fundamentais para prevenir a propagação desta epidemia, como foi com a epidemia de SARS em 2003. Isso foi combinado com o uso obrigatório de máscara, promoção da higiene pessoal (lavagem das mãos, desinfecção doméstica, ventilação), auto-monitoramento da temperatura corporal, ordens de permanência em casa, obrigatórias e universais para todos os residentes, e pesquisas universais de sintomas conduzidas por trabalhadores comunitários e voluntários.
O que mais os EUA poderiam ter feito para se preparar?
A SARS expôs sérias deficiências no sistema de saúde pública da China e levou seu governo a reinventar seu sistema de saúde pública. A Covid-19 expôs deficiências semelhantes no sistema de saúde pública dos EUA. Até o momento, entretanto, o atual governo adotou a abordagem exatamente oposta, devastando nosso sistema de saúde pública.
A administração Trump fez grandes cortes nos orçamentos dos Institutos Nacionais de Saúde e dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças. O último orçamento apresentado pela administração Trump em fevereiro de 2020, quando a pandemia estava começando, pedia uma redução adicional de US$ 693 milhões ao orçamento do CDC.
Isso afetou nossa capacidade de nos prepararmos para um surto de pandemia. No passado, essa preparação incluía parcerias internacionais para ajudar a detectar doenças antes que elas chegassem às nossas costas. Por exemplo, o CDC construiu parcerias com a China após a epidemia de SARS, para ajudar a conter o surgimento de doenças infecciosas provenientes da região. A certa altura, o CDC tinha 10 especialistas americanos trabalhando na China e 40 funcionários chineses locais, que se concentravam principalmente em doenças infecciosas. Trump começou a reduzir essas posições logo após assumir o cargo e, quando o Covid-19 estourou, esses programas foram reduzidos a uma equipe mínima de um ou dois.
A Declaração de Alma Ata garantiu saúde para todos, e não apenas saúde para pessoas governadas sob um determinado tipo de sistema burocrático. Os EUA têm sido, e podem ser, tão dedicados a proteger a saúde de seu povo quanto a China sob seu governo autoritário. Demonstramos isso durante a epidemia de Ebola, com o lançamento de todo um esforço governamental coordenado por Ron Klain, que foi nomeado chefe de gabinete da Casa Branca sob o presidente eleito Biden.
Esse esforço, que incluiu uma resposta coordenada com as nações africanas e a China, melhorou a preparação nos EUA e, por fim, ajudou a salvar centenas de milhares de vidas em todo o mundo. Uma redução no financiamento para nossa infraestrutura de saúde pública, sob a administração Trump, foi um desinvestimento na saúde do povo americano e não deveria ter acontecido. Espero que uma nova administração que coloque a saúde pública no comando, mais uma vez, venha a nos provar que a saúde não é apenas algo que pode ser protegido por um governo autoritário, mas é de fato um direito de todos.
Elanah Uretsky é professora associada de estudos internacionais e globais da Universidade Brandeis (Boston: EUA)
Traduzido por Cezar Xavier