Urariano Mota: Mirtes e Miguel em “Falas Negras”
Especial exibido no Dia da Consciência Negra pela Globo é um marco dramatúrgico na televisão brasileira
Publicado 21/11/2020 11:56
Digo logo para não esquecer: o especial “Falas Negras”, exibido no Dia da Consciência Negra pela Rede Globo, é um marco dramatúrgico na televisão brasileira. Obra digna, militante, séria, verdadeira. Dá até vontade da gente perguntar: como a exibição foi possível no universo político, ideológico da Rede Globo?
Não tenho informações dos bastidores, mas fico aqui a imaginar as táticas, estratégias, da direção da Globo e os acordos forçados ao diretor Lázaro Ramos e à roteirista Manuela Dias. Como não sei dos bastidores, vamos ao mais importante, ao espetáculo que vi.
Ressaltado o valor, a qualidade do especial, menciono a seguir alguns erros do especial. Como cantava Odair José, “na minha opinião”. Primeiro observo que todos os personagens negros são históricos, no sentido do tempo, da sua marca indelével, e do presente que projetam para o futuro. Mas na identificação dos personagens com legendas, deles nada se sabe além das pequenas falas.
Ora, o especial foi transmitido num veículo de divulgação de massa, e com certeza 99,99% dos telespectadores não sabem nada das ilustres figuras de Nzinga Mbandi, Toussaint Louverture, ou Rosa Parks. Até mesmo, pasmem, mal sabem quem foi um dia Malcolm X e James Baldwin. Então faltaram para melhor compreensão de 100%, do público imagens, resumos históricos das suas vidas. E como senti falta da foto de James Baldwin, com seus grandes olhos tristes, que marcariam a sua fala teatralizada:
E nesse caso particular de Baldwin, como me soou triste em outro sentido a frase magistral “Eu não sou o seu negro”! Não houve ênfase na fala do ator nesse máximo de alerta: “Eu não sou o seu negro”. O que significa, preste bem atenção, se ultrapassar esse aviso, você vai ser escarrado e morto. Para quem conhece o genial livro “Da próxima vez fogo”, o sentido da frase interpretada deveria ser: “Olhe, preste muita atenção, se me chamar de seu negro, vingarei séculos de humilhação. Agora, fogo!”. Mas a frase foi dita como outras.
Senti falta ainda de registros mais eloquentes de Muhammad Ali, que são muitos em entrevistas dele, até no YouTube. E do grande Malcolm X vemos um personagem macio, diria até mesmo domesticado. Seria esse o limite do acordo? Já na entrada de Nina Simone, é citada a linda canção Ain’t Got No, I Got Life, mas sem qualquer tradução. Nem mesmo “Eu tenho vida / Eu tenho minha liberdade / Eu tenho a vida!”. E a bela cantora vira uma pessoa de caras e bocas. Aliás, muitos olhos e murmúrios.
Mas o melhor do especial ficou no fim. Magistral, em mais de um sentido. Para a fala de Mirtes Renata, mãe de Miguel Otávio, não se fez necessário nem curto texto biográfico. Penso que porque é recente, está na ordem do dia, e todos sabem. Faz poucos meses. Aquele crime que revela o horror da injustiça de classes no Brasil, o costume em vigor de morte aos negros entre brasileiros, encontrou a sua intérprete no documentário, no cinema, na fala da atriz Tatiana Tibúrcio. Antes das imagens da melhor arte que denuncia a injustiça, Tatiana falou:
“Foi doloroso, mas necessário. Eu não enxergo essas palavras como um texto, eu enxergo como um grito, um brado, um apelo. O desabafo de toda mãe negra brasileira. Digo isso pelas particularidades do racismo no nosso país. Essa fala da Mirtes, de alguma maneira, é a minha fala também, é o medo de todas nós, concretizados na vida dessa mulher. Dizer aquelas palavras foi muito difícil, doeu porque elas estão concretizadas num lugar de muita proximidade. Como mãe de um menino negro, eu entendo, eu sinto a dor dessa mulher no detalhe onde ela reside. Quando uma mãe preta perde um filho, ela perde quase tudo porque não tem muito mais. Toda mãe tem medo de perder seu filho para um acidente, uma doença, uma fatalidade, a mãe preta tem medo de perder seu filho por todos esses motivos e também pelo racismo. E foi dessa forma que a Mirtes perdeu o filho dela. Não foi um acidente, quem matou o filho dela foi a indiferença, oriunda do racismo.”
Nesse entendimento de Tatiana Tibúrcio se unem a inteligência, a sensibilidade, a informação, a consciência. E tudo resumido no talento universal que ela expressou em cena aqui:
Que atriz, que filha de Grande Otelo! Eu me deitei depois de meia-noite. Mas essa fala de Tatiana para Mirtes não deixou nem deixa a gente dormir.