Consciência negra: a cor dos donos das concessões de rádio e TV
Pesquisa analisa as concessões de rádio e TV no Brasil sob a perspectiva da Teoria Crítica Racial e mostra que a branquitude dos donos das emissoras ajudou a moldar um discurso discriminatório contra a população negra
Publicado 19/11/2020 21:02 | Editado 19/11/2020 21:53
Já se passaram 70 anos da primeira transmissão da televisão no Brasil, ocorrida em 18 de setembro em 1950. Nessas sete décadas, por apenas uma única vez, e por um curto período de tempo, o país teve um negro como proprietário de uma concessão de TV. Como explicar isso em um país onde metade da população é negra?
Uma pesquisa da Faculdade de Direito da USP levanta uma importante discussão sobre esse tema. Em sua tese de doutorado, Tiago Vinícius André dos Santos, advogado, professor de Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e coordenador pedagógico da Plataforma Feminismos Plurais, analisou a concentração de poder das rádio e TVs no Brasil sob uma perspectiva que vai muito além da questão econômica, trazendo o debate para a perspectiva racial.
A pesquisa teve orientação da professora Eunice Prudente e resultou no livro Desigualdade Racial e Midiática: O direito à comunicação exercido e o direito à imagem violado, lançado em 2018.
“Nós trabalhamos com a ideia de uma economia político-racial da comunicação. É a comunicação concentrada não apenas economicamente, mas também racialmente. Tanto é que, ao estudar quem são esses proprietários, percebemos que, na história do Brasil, nós tivemos um único proprietário negro de concessão de TV que foi o cantor Netinho”
afirma Tiago Vinicius ao Jornal da USP
O cantor e empresário José de Paula Neto (Netinho de Paula) foi proprietário da concessão da TV da Gente. Inaugurada em 20 de novembro de 2005, tinha como proposta ser o primeiro canal produzido por negros e direcionado para a população negra. Com pouca audiência, a TV da Gente não atraiu anunciantes e, devido aos problemas financeiros, as atividades foram encerradas em fevereiro de 2007.
Tiago Vinícius analisou as concessões de rádio e TV e emissoras afiliadas no Brasil para compreender como estava o quadro econômico e racial naquele momento, em 2017, a partir de dados de teóricos da comunicação. Ele conta que teve uma certa dificuldade em conseguir informações porque os próprios teóricos relatavam a ausência de dados sobre o assunto.
As informações obtidas mostravam majoritariamente homens brancos como os donos das concessões de emissoras de TV no Brasil. Quanto às rádios, a situação é muito parecida. A burocracia, segundo o pesquisador, é um dos fatores que dificultam e até, muitas vezes, impedem que a camada mais pobre – e negra – da população ocupe ou mesmo permaneça atuando nesses espaços, principalmente no que diz respeito às rádios comunitárias.
O advogado relata que, durante a realização da pesquisa, encontrou um estudo que mostrava o potencial das rádios no Brasil e as apontava como um espaço midiático onde havia uma maior representatividade da população negra, sobretudo nas periferias. As rádios seriam então um contraponto à hegemonia das emissoras de TV, que colocam a população negra em posições de subalternidade. O pesquisador lembra que as concessões de TV vieram da ditadura militar e o quadro pouco se alterou desde então. Com as rádios isso é diferente. Entretanto, segundo Tiago Vinícius, o excesso de dispositivos jurídicos funcionavam como um impeditivo para essa população ter acesso às concessões.
Negritude subalternizada
“O resultado disso é que o discurso midiático brasileiro primeiro fortalece a ideia da branquitude, do privilégio branco. Os protagonistas são brancos, em sua maioria. E há uma hipervalorização do negro em relação à criminalidade e à pobreza. Isso cria uma naturalização do que é ser branco e o que é ser negro no Brasil”, explica Tiago Vinícius.
“Por outro lado, nós vamos ter um discurso muito potente de uma democracia racial e que, supostamente, somos uma sociedade onde negros e brancos vivem de forma pacífica. Desse modo, a subalternização do negro fica mais do que naturalizada. Naturaliza-se a ideia de branquitude, a ideia de que não existe racismo no Brasil, e que a condição do negro enquanto um indivíduo subalternizado é o lugar natural da existência dele”, destaca o advogado.
“Com isso, a ideia do médico, do juiz, do promotor, do empresário passa pela ideia de branquitude – e nunca pela negritude. E aquilo que os negros produzem é o exótico, pois traz a consolidação da branquitude e a consolidação da naturalização das diferenças negativas”, aponta o pesquisador.
Intelectualidade negra
Durante a realização da pesquisa de doutorado, Tiago Vinícius passou um período de nove meses na Universidade de Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos. E a experiência foi muito enriquecedora. Um dos motivos é que ele, um homem negro, pela primeira vez, pode estar em uma sala de aula em uma universidade de elite americana onde muitos professores também são negros. Entre eles, Kendall Thomas, seu supervisor em Columbia, e Kimberlé Williams Crenshaw, professora em Columbia e na Universidade da Califórnia – e eleita a melhor professora de Direito dos Estados Unidos quando Tiago Vinícius estava lá. O outro motivo é que foi em Columbia que ele teve essa nova perspectiva sobre a concentração de poder nas mídias brasileiras, graças aos estudos ligados à Teoria Crítico Racial.
Para entender o contexto de surgimento e da importância dessa teoria, é preciso voltar um pouco no tempo. Com o fim da Guerra Civil americana, vários estados implementaram o Jim Crown, um conjunto de leis segregacionistas que vigoraram nos EUA entre o final do século 19 e meados do século 20. Após a derrocada desse sistema, iniciada a partir do Movimento pelos Direitos Civis e da Lei dos Direitos Civis, nas décadas de 1950 e 1960, a sociedade americana percebeu que a igualdade formal entre negros e brancos, por si só, não era suficiente, sendo necessário estabelecer estratégias de reparação histórica.
Nos décadas seguintes, surgiram uma série de ações afirmativas para aumentar a presença da população negra em universidades, em empregos públicos, e em outros espaços sociais, e até politicas públicas para aumentar a representatividade dos negros nos meios de comunicação.
A Teoria Crítica Racial surge quando esses jovens, em sua maioria negros, entram nas universidades americanas de elite. Muitos se tornam acadêmicos e é nesse momento que a intelectualidade deles passa a alterar a academia. Eles começam a questionar o motivo de as faculdade de direito defenderem as ações afirmativas, mas, no entanto, não há professores negros e, nos currículos pedagógicos, não se fala sobre a luta pelos direitos civis, ou opressão racial ou questões ligadas aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais.
“Eles se reúnem, questionam o sistema – que não permite um estudo sistemático sobre raça, racismo, machismo, homofobia, etc. – e, a partir desses questionamentos, começam a criar uma teoria do direito pra pensar esses temas”, explica o pesquisador, destacando que essa teoria já foi usada por alguns teóricos italianos para discutir a situação do povo cigano.
A teoria se tornou tão relevante para a discussão sobre desigualdades raciais que, recentemente, o presidente dos EUA, Donald Trump, expediu uma ordem para banir a Teoria Crítica Racial dos treinamentos sobre diversidade dentro da administração pública federal.
Barack Obama e Gilberto Freyre
Para aplicar a Teoria Crítico Racial à realidade brasileira, Tiago Vinícius fez um paralelo usando como exemplo a eleição de Barack Obama. Muitos analistas da sociedade americana disseram que eleger o primeiro presidente negro representava o fim dos problemas raciais nos EUA – o que não é verdade. “Eles chamavam isso de sociedade pós-racial”, pontua o advogado.
Em relação ao Brasil, Tiago Vinícius cita os estudos do sociólogo Gilberto Freyre, que defendeu, na década de 1930, com o livro Casa-Grande & Senzala, a ideia de que a sociedade brasileira havia superado a questão racial em razão da miscigenação cultural (europeia, indígena e africana) e da biológica. E que estávamos além da raça: seríamos uma meta-raça, um exemplo para o mundo, pois este caldeirão de raças seria a genética do futuro, conta o advogado.
“Nos Estados Unidos, o que se dizia era: ‘superamos o racismo porque votamos no Obama’. Aqui, no Brasil, o que se dizia era: ‘superamos o racismo porque somos uma mistura de raças’. Mas a gente sabe que, tanto os teóricos críticos raciais daquele momento, nos Estados Unidos, como muitos acadêmicos daqui, já contestavam isso. O fato de sermos uma mistura racial não significa que, na pirâmide social, os negros estejam representados nas melhores posições. Na verdade, eles ocupam a base da pirâmide, com salários menores, e os brancos estão em posições de mais poder”, observa o pesquisador, lembrando que, no Brasil, muitos usam argumentos como “tenho amigos pretos” ou “já namorei uma mulher negra” na tentativa de dizer que não são racistas – principalmente quando têm atitudes racistas.
Desigualdade racial midiática
O passo seguinte da pesquisa foi estudar a desigualdade racial midiática, ou seja, quem são os donos dos veículos de comunicação. O pesquisador já tinha feito um estudo bibliográfico que mostrava uma falta de representatividade dos negros na TV em papeis positivos e uma hiper-representatividade dentro da criminalidade e da subalternidade.
“Porém, não havia um estudo que pensasse a concessão de rádio e de TV para além da concentração econômica, e sim racial. Tampouco que pensasse na hiper-representatividade da população branca e em como a mídia consolida uma ideologia de que os indivíduos de pele branca são pessoas naturalmente predispostas a terem bons trabalhos, a assumir funções de poder, enquanto que os negros, por outro lado, apresentam posições de subalternidade e de criminalidade”, descreve.
Essa branquitude dos proprietários acaba por controlar a imagem de si mesma e a dos demais. Não há como fazer um contraponto. Nos Estados Unidos, ao contrário, há grupos de TV construídos para e pelos negros, frutos das ações afirmativas. Uma dessas emissoras pertence a Oprah Winfrey, atriz, jornalista, empresária e apresentadora norte-americana.
“Havia a ideia muito clara de que os negros deveriam falar por eles. Mas isso não significa excluir. A ideia era: como os negros irão construir a própria imagem por eles mesmos?”, conta. “Se a gente pensar em uma novela, aqui no Brasil, a maioria dos autores é branca. Os protagonistas são brancos. Quem são os diretores, os editores? Esses espaços de poder não passam pela negritude.”
Em seu doutorado, Tiago Vinicius não pesquisou especificamente a representatividade negra em séries americanas ou brasileiras de televisão. Mas para falar sobre como os negros podem construir a própria imagem, por eles mesmos, bem longe dos estereótipos de subalternidade e criminalidade, precisamos citar a super poderosa Shonda Rhimes. Essa mulher negra, norte-americana, é considerada uma das mais bem-sucedidas criadoras e produtoras de séries da atualidade.
Shonda é responsável por séries de muito sucesso: Grey’Anatomy (17 temporadas), Scandal: Nos Bastidores do Poder (sete temporadas) e How To Get Away With Murder (seis temporadas).
Grey’s Anatomy é ambientada em um hospital e conta a história de Meredith Grey (Ellen Pompeo), uma médica branca. A série apresenta vários personagens negros ocupando cargos de alta relevância e de muito destaque, como a chefe da equipe médica, Miranda Bailey (Chandra Wilson); o diretor do hospital, Richard Webber (James Pickens, Jr.), o cardiologista de renome internacional, Preston Bourke (Isaiah Washington ) e a toda poderosa urologista, Catherine Fox (Debbie Allen), presidente da billionária Fundação Harper Avery, uma mantenedora de hospitais.
Para Tiago Vinícius, é importante que exista um proprietário negro na área da comunicação. “Quando isso passa para essa esfera de poder, ocorre um outro tipo de representatividade, algo mais genuíno, mais orgânico, que sai da própria intelectualidade afro e que passa a disputar esses espaços, mas de uma outra perspectiva. Mas quando se fala da mídia brasileira, isso é uma coisa muito difícil”, finaliza.
Publicado no Jornal da USP