Quem não viu Pelé
Mesmo depois de 43 anos sem atuar nos gramados, Pelé continua a influenciar gerações e é símbolo nacional
Publicado 23/10/2020 16:44 | Editado 23/10/2020 17:28
A memória é um tanto fantástica. Ela tem o poder de amplificar momentos e transformá-los em algo tão concreto como parte do corpo. Em outras ocasiões, não menos poderosa, nada faz além de registrar uma imagem, uma sensação no cantinho do cérebro. Subjetivas e pessoais, as lembranças se encontram em espaços sociais, complementam umas às outras em uma construção coletiva. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, é assim: todos o conhecem de maneira particular ao mesmo tempo que frequentam o imaginário coletivo para compreender o fenômeno que foi Pelé.
A minha primeira lembrança do craque já é de aposentado e consagrado como Rei do futebol. Na tribuna da Vila Belmiro, estádio do Santos, ele aguardava o início do jogo contra o Corinthians no início dos anos 2000. A câmera faz questão de buscar o rosto do ídolo santista, e ali repousa a objetiva no semblante sereno. O narrador, orgulhoso em apresentar Pelé mais uma vez, busca elogios para descrever um homem que não é mais somente um atleta. O amante de futebol sabe disso, e a lembrança o alegra. O menino, por sua vez, vê-se encantado por conhecer uma majestade inteiramente brasileira.
A camisa 10 foi usada a última vez pelo seu maior representante em um jogo profissional no dia 2 de setembro de 1977, em partida disputada entre os dois times em que atuou: Santos e New York Cosmos. São 43 anos desde a última apresentação oficial de Pelé. Ou seja, grande parte da população não o viu nos gramados. Não viveu o período em que o Santos era um time itinerante, parando nos rincões do Brasil e do mundo para levar o futebol e o nome do Brasil; nem a seleção que dominou o cenário futebolístico enquanto teve Pelé como camisa 10.
Para alcançar tal nível de sucesso, o camisa 10 contou com companheiros extraordinários. Durante a carreira, jogadores como Vavá, Garrincha, Zito, Coutinho, Carlos Alberto Torres, Nilton Santos, Tostão, Djalma Santos, Pepe e muitos outros o acompanharam na trajetória vitoriosa do Santos e da seleção brasileira.
No bicampeonato mundial da seleção, disputado no Chile em 1962, Pelé se machucou ainda no segundo jogo da primeira fase contra Tchecoslováquia. Algo parecido aconteceu com o bicampeonato mundial do Santos contra o Milan em 1963, que o craque se ausentou de duas das três partidas finais disputadas. Mesmo sem jogar, sagrou-se campeão nas duas ocasiões. Pelé era destinado a ser o maior do futebol.
Durante a carreira, o meia atacante proporcionou cenas que ficaram gravadas apenas nas retinas de quem estava presente no estádio. Agia com simplicidade dentro de jogadas extremamente complexas, como é característico da genialidade.
Pepe, que o acompanhou no ataque santista durante 13 anos, gosta de lembrar que ele é o maior artilheiro humano do Santos, já que Pelé é um extraterrestre. No dia em que inventou sua comemoração típica com o soco no ar, depois de chapelar cinco adversários do Juventos de São Paulo e empurrar a bola de cabeça para o gol vazio, as únicas testemunhas eram os que ali estavam reunidos na Rua Javari. Pepe descreveu o lance em entrevista à Tribuna On-Line. “Pelé driblou, pelo menos, quatro jogadores. O último foi o goleiro. A bola ainda estava um pouco alta depois de ter dado um chapéu e ele foi lá e fez de cabeça. Foi uma pintura. Um gol incrível para um jogador normal e um gol normal para um jogador incrível como o Rei”.
Quem viu o rei em campo, ao vivo, afirma que não é possível outro ícone do futebol como ele. O que Pelé significou para o Brasil vai além das quatro linhas que demarcam o campo de futebol, como o escritor Nelson Rodrigues registrou em suas crônica. Pelé levou multidões aos estádios, popularizou o futebol no mundo e elevou a autoestima do brasileiro. A quem nasceu depois de 1970, fica a mitologia em torno de Pelé. Os símbolos e registros que extrapolam o mundo do futebol.
A pergunta se Messi ou Cristiano Ronaldo seriam melhores que Pelé surge aqui e acolá. Se Pelé seria tão decisivo no futebol moderno, mais físico e tático do que o praticado nos anos 50, 60 e 70. Um exercício pueril, já que parte da premissa que o esporte mudou e qualquer comparação é impossível de ser mensurada. Isso sem contar a bola mais pesada, os pregos na chuteira, os buracos nos gramados, e o peso da camisa de algodão ensopada de suor.
Em fragmentos de vídeos, a leveza de um esporte quase ingênuo sem tantas câmeras, regras, fama e dinheiro é contagiante. As emoções não estão sob julgamento a todo instante e os jogadores comemoram, cumprimentam-se por estarem ali em um jogo de futebol. A sensação é de um saudosismo de uma época em que nem era nascido.
Quem é apaixonado pelo esporte e não teve o privilégio de vê-lo ao vivo, com certeza parou para ver um especial sobre Pelé. A mística começa com uma imagem, como Pelé assistindo o jogo do Santos na tribuna, ou uma história de um parente que de alguma forma se relaciona com o Rei do futebol. A partir daí, é quase involuntário a procura por imagens do craque em ação. Programas esportivos, o filme Pelé Eterno, exibição no museu do futebol, vídeos no YouTube – alguma explicação sobre o frisson que ele causa. E ali atestamos a genialidade do atleta Pelé. Os melhores momentos do melhor mundo. O eterno camisa 10 parecia mais à vontade em campo que os outros, atento ao posicionamento de todos. Ele se movimenta em outra rotação e parece imprimir uma violência no chute que surpreende a todos.
A carreira do jogador nascido em Três Corações (MG) em 1940 é tão fora de série que até quem detesta futebol o reconhece como símbolo nacional. Pelé é quase sinônimo de Brasil, uma das primeiras referências que o estrangeiro consegue pensar em relação ao nosso país. É um brasileiro extraordinário com um sorriso no rosto vestindo a camisa amarela. No encerramento dos Jogos Olímpicos em Londres, em 2012, o Rei do futebol é apresentado no final quase como uma síntese do brasileiro.
Muitas vezes a pessoa nem lembra como conheceu Pelé – no mural perto de casa, em uma conversa de futebol na padaria, na comemoração de um menino que fez o gol na quadra, em uma foto com a Xuxa, na declaração sobre ‘cuidar das crianças’ depois do milésimo gol.
Edson Arantes do Nascimento não é unanimidade. O indivíduo, por exemplo, é criticado por não defender com mais veemência os direitos reprimidos durante a ditadura e por não assumir a filha Sandra Regina, fruto de um relacionamento extraconjugal.
Pelé, por sua vez, fez tudo o que estava a seu alcance enquanto atleta. É uma seleção de momentos tão marcantes para a história do esporte e do país que merece ser relembrada sempre. Não à toa, é embaixador do futebol no mundo. E se um dia descobrirem a bola em outro planeta, Pelé deve ser o embaixador universal do futebol.