O interesse político-eleitoral presente no enfrentamento da Covid-19
O governo Bolsonaro fez uso indevido do recurso público em detrimento do direito à saúde e à vida.
Publicado 21/10/2020 14:00
A pandemia da Covid-19 evidenciou para muitos especialistas o caráter genocida, autoritário e neofascista de vários governos pelo mundo, inclusive do governo Bolsonaro . Os dados referentes à execução orçamentária e financeira da ação de enfrentamento da Covid-19 em combinação com notícias divulgadas pela grande mídia ilustram tanto esse caráter governamental, como parecem evidenciar também a utilização indevida de recursos pelo governo federal para atender interesses político-eleitorais de 2020 (eleições municipais), visando 2022 (eleições presidenciais). Há fortes indícios de manobra política visando a permanência no poder central da República.
Conforme tem sido analisado desde março pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), a execução orçamentária e financeira da ação Covid-19 pelo Ministério da Saúde (MS) tem sido muito lenta e abaixo do esperado, conforme dados dos Boletins Semanais da Cofin/CNS a seguir destacados:
- na modalidade aplicação direta do MS (compras de materiais e equipamentos feitas centralizadamente pelo MS) : até 30 de junho de 2020: R$ 1,5 bilhão; e até 29 de setembro de 2020: R$ 4,2 bilhões; ou seja, em três meses – julho/agosto/setembro – o gasto foi quase duas vezes maior que o dos quatro meses imediatamente anteriores – março/abril/maio/junho.
- na modalidade de aplicação Transferências do Fundo Nacional de Saúde para Estados, DF e Municípios: até 30 de junho: R$ 9,9 bilhões, sendo R$ 4,1 bilhões para Estados e DF e R$ 5,8 bilhões para Municípios; até 29 de setembro: R$ 27,2 bilhões, sendo R$ 7,4 bilhões para os Estados e DF e R$ 19,8 bilhões para os municípios; ou seja, em três meses – julho/agosto/setembro – as transferências para os Estados e DF foram semelhantes aos valores transferidos nos quatro meses imediatamente anteriores – março/abril/maio/junho – e as transferências para os Municípios foram cerca de três vezes maiores que os valores transferidos nos quatro meses imediatamente anteriores – março/abril/maio/junho.
Em outros termos, considerando que houve crescimento exponencial de casos e mortes no Brasil como decorrência da Covid-19 no período de março a junho, chama a atenção que a liberação acelerada de recursos do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os municípios enfrentarem a Covid-19 tenha ocorrido somente a partir de julho, de tal ordem que nesses três últimos meses (encerrados em setembro) o repasse acumulado foi quase três vezes maior que os valores somados no período de março a junho. O que é grave: coincidentemente, essa liberação acelerada e ampliada de recursos a partir de julho coincide com dois fatos de natureza político-eleitoral:
- as tratativas do governo federal em busca de acordos com parlamentares do grupo denominado como “Centrão” – dois exemplos: o jornal “O Estado de São Paulo”, de 18 de junho de 2020, noticiou “Covid-19: Pazuello adia decisão sobre entregar R$ 10-bilhões a gestores do SUS ou Centrão” e o “Portal Terra” publicou em 17 de julho de 2020 “Olímpio: governo distribui verba da covid-19 a parlamentares. Senador afirma que congressistas receberam R$ 30 milhões em emendas cada um para ficarem na base de Bolsonaro” ; e
- a proximidade com o início da campanha para as eleições municipais que serão realizadas em novembro/2020 – dois exemplos: o jornal “Correio Braziliense” noticiou em 30/06/2020 “Centrão entra na negociação do adiamento das eleições municipais. Antes contrários ao adiamento das eleições, partidos agora se mostram favoráveis a uma nova data ante a possibilidade de reforço de verbas federais” e o jornal “O Globo” noticiou em 27/07/2020 “Pressionado por deputados em ano eleitoral, governo prioriza repasses para municípios no combate à Covid-19” .
A combinação dos dados analisados nos Boletins Cofin/CNS semanais com essas notícias publicadas na grande mídia revela que as condições de saúde e de vida das pessoas foram subordinadas aos interesses políticos da construção de uma base parlamentar de apoio ao governo federal, com envolvimento de recursos financeiros cujo retardamento de envio aos gestores estaduais e municipais do SUS torna ainda mais dramática a prestação de serviços de combate ao Covid-19. Enquanto os casos e as consequentes mortes cresciam em velocidade e quantidade, houve lentidão nos repasses. Entretanto, quando houve a necessidade de acordo com o Centrão no Congresso e, principalmente, com a aproximação das eleições municipais de 2020, os repasses foram acelerados e ampliados desproporcionalmente ao período anterior. Isto evidencia o uso indevido do recurso público em detrimento do direito à saúde e à vida.
Outro indício desse uso político-eleitoral dos recursos para o enfrentamento da Covid-19 pelo governo federal também pode ser encontrado nos dados divulgados pelos Boletins Cofin/CNS semanais. O orçamento federal para enfrentamento da Covid-19 para repasse do FNS para os Estados foi reduzido em julho, quando comparado a junho e, desde então, nunca mais voltou naquele patamar anterior. E, no mesmo período, foi o aumentado o orçamento federal para as transferências do FNS para o municípios, que foram efetivados a partir de julho.
Esses fatos, por si só, merecem uma grande mobilização da sociedade civil e denúncias para reforçar o Inquérito Civil Público instaurado pelo Ministério Público Federal , especialmente pelos gestores estaduais e municipais, principalmente da área da saúde.
Porém, outros aspectos podem estar contribuindo para essa baixa mobilização dos gestores da saúde municipal, como por exemplo, a proximidade do término dos mandatos municipais e a consequente necessidade de receberem recursos para fechar as contas deste ano. Sobre isso, inclusive, há um Projeto de Lei tramitando para flexibilizar o uso do recurso originalmente recebidos do FNS pelos Estados e Municípios para enfrentar a Covid-19 , inclusive para autorizar o uso de eventual saldo em 2021, cuja discussão pragmática e conjuntural tende a substituir equivocadamente a luta contra a Emenda Constitucional 95/2016 e o consequentemente desfinanciamento estrutural das políticas sociais promovido pelo governo federal, conforme documento técnico produzido pela “Coalizão Direitos Valem Mais” e conforme petição pública do Conselho Nacional de Saúde em prol de um piso emergencial para o SUS federal de 168,7 bilhões em 2021 .
Desta forma, o caráter conservador, retrógrado, antidemocrático e neofascista expresso em várias posturas políticas do atual governo federal inviabilizam qualquer proposta de acordo, mas exige em contrapartida ampla unidade e pressão permanente da sociedade para que os direitos de cidadania conquistados na Constituição Federal de 1988 não sejam totalmente eliminados.
Urge a unidade de todas as entidades de representação dos prefeitos(as), de vereadores (as), bem como de gestores da saúde, de profissionais de saúde e das entidades que representam trabalhadores e trabalhadoras, em conjunto com as demais representações da sociedade civil e dos movimentos populares e sociais, especialmente com os conselhos de saúde, de educação, de assistência social, de saneamento e de outros espaços de controle de políticas públicas , para que o desfinanciamento dessas políticas públicas, impulsionado pela Emenda Constitucional nº 95/2016, possa ser revertido de forma permanente.
Para isso, faz-se necessária a mudança radical do caráter antidemocrático do atual governo e o enfrentamento da atual política econômica de austeridade fiscal, que fragiliza as políticas sociais, adoecendo e matando os brasileiros sem cumprir a promessa de equilibrar as contas públicas, mas enriquecendo ainda mais os que estão no topo da pirâmide social, em especial o capital financeiro. Recuar para acumular forças e avançar em bloco na luta é taticamente correto, diferente de recuar para não lutar. É ilusão de classe pensar que a marcha acelerada do neofascismo será interrompida sem o devido enfrentamento político, o que passa pela ampla unidade democrática e popular contra o bolsonarismo.
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