Venezuela: o que está em jogo nas eleições legislativas
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A reconciliação nacional em um sentido mais amplo demanda que as grandes maiorias sociais sejam parte desse processo para unir o país
Publicado 15/09/2020 21:15 | Editado 15/09/2020 21:16
O fim do vigente período parlamentar impõe, por via constitucional, a realização de eleições para a próxima Assembleia Nacional (AN) na Venezuela. Para o país, todos os alcances da próxima eleição vão muito além da rotineira pugna eleitoral.
O enfraquecimento pretendido e parcialmente consumado das instituições venezuelanas, após o ascenso do antichavismo à maioria parlamentar, trouxe consigo a ruptura dos pactos políticos fundamentais previstos na Constituição, tais como, a convivência, contrapeso e equilíbrio entre os poderes do Estado.
As fortes investidas do parlamento e seu choque contra as demais instâncias do poder constituído durante estes anos sobrevieram gerando o desacato e a nulidade dos atos da atual AN, por ordem do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Mas, além dessa ruptura no âmbito do formal, a impugnação foi transferida rio abaixo na sociedade venezuelana.
Tentaram romper os pactos sociais, a convivência política e a paz pública. A escalada pseudo-parlamentar chegou ao ponto em que a maioria opositora na AN propiciou o ciclo de medidas coercitivas e unilaterais (MCU), que têm bloqueado a economia nacional, mediante a ação aberta de fatores estrangeiros tentando desmoronar o governo do país e agravando profundamente a deterioração econômica e social.
Este ciclo que precede o dezembro próximo deixa expostas às tarefas urgentes do parlamento que virá.
1. A re-institucionalização do país:
Nisto consiste que o próximo parlamento seja eleito e saia do desacato ao TSJ. O retorno da regularidade parlamentar é indispensável, precisamente por ser a AN o primeiro espaço de debate nacional, ponto essencial na estrutura do Estado.
Embora os vazios deixados pela AN em desacato foram em boa medida atendidos pela Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que será dissolvida proximamente, o objetivo da re-institucionalização necessária passa pela reincorporação aos canais regulares de todas as forças políticas do país. É urgente a volta da política aos seus espaços naturais.
2. Destruir o governo paralelo perpétuo:
A eleição de uma nova AN reconhecida internacionalmente desabilitará de forma administrativa e jurídica toda pretensão de que o deputado Juan Guaidó se mantenha de forma “indefinida” em seus dois cargos artificiais presidenciais, do parlamento e do país, e que são avalizados por Washington.
É preciso lembrar que o governo norte-americano, com seu antecipado desconhecimento das próximas eleições na Venezuela, tem previsto sustentar para 2021 o proto-governo paralelo de Guaidó, declarando assim sua prolongação por tempo indeterminado e totalmente à margem da Constituição venezuelana. Um ato de ingerência e de tentar quebrar as instituições venezuelanas, sustentando as MCU e continuando a desestabilização interna.
Deve-se romper o ciclo da atual AN, para romper a operação Guaidó e as intenções de Washington de perpetuá-lo.
Muitos opositores na Venezuela pretendem destruir a fracassada, porém custosa, “estratégia Guaidó” (pelas MCU e pelo enfraquecimento político que tem produzido).
Não pretendem avalizar sua posição indefinidamente. Alguns deles comparecerão à eleição do novo parlamento para resolver o retorno de determinados atores ao cenário político, pois se consideram rebaixados perante a evidente coordenação de Washington do destino do antichavismo, e daí que as próximas eleições também são importantes para eles.
3. Defender os ativos venezuelanos e promover a ruptura do bloqueio:
Um passo indispensável para o retorno da estabilidade econômica e social será a ruptura das MCU contra o país. Uma tarefa árdua, com desafios hoje impensáveis, que passará por tentar enfraquecer e romper os consensos internacionais ao redor das medidas lideradas por Washington.
Isso implica que o parlamento deve ir à luta por Venezuela na recuperação de seu espaço internacional. Ir à disputa pelo sentimento nacional e contra as penúrias que sofre a população por causa do bloqueio.
Nesse item, a nova AN terá a obrigação de acompanhar o Executivo nacional em todas as gestões na frente externa para criar exceções ao bloqueio, recuperar recursos e bens congelados, para promover acordos de cooperação, para instrumentar a denúncia com a finalidade de realmente desaplicar ou desmantelar, pelas vias formais, muitas das medidas que hoje asfixiam a nação.
O processo de reinstalação da AN e a legitimação de todos os atores políticos que farão parte dela serão fundamentais para enfraquecer os argumentos e narrativas sobre a cacarejada “ditadura”, relatos que serviram para propagar a legitimação do bloqueio.
Além do estritamente narrativo, uma nova AN composta por eleições reconhecidas será uma carta aval política para o titânico trabalho.
4. Promover a reconciliação nacional:
A nova AN terá a importante obrigação de que, ainda com as diferenças entre os atores políticos, se detenham os avanços da fragmentação político-social que têm se agravado no país. O retorno da sadia e necessária diatribe é necessário como uma resposta ao desencanto, à atomização e ruptura dos consensos políticos básicos que têm imperado. Tudo isto, vale dizer, após os ciclos de instabilidade, violência política e tentativas de sedição e guerra mercenária, cortesia da ala dura do antichavismo.
Hoje, pelo menos uma parte da oposição tem se afastado das MCU, do rol de operadores de segunda ordem em que se transformaram os opositores sob ordens norte-americanas e da promoção do conflito interno e a intervenção. Esse terreno ganho hoje existe apenas na Mesa de Diálogo Nacional (MDN) mas deve transcender dela para prosperar no parlamento.
A restauração dos pactos políticos elementares, de convivência, de tolerância e de política em seu sentido mais amplo, pelo menos em uma medida mínima, deve concorrer e gerar um efeito rio abaixo na sociedade para unir o país em novo senso comum.
As concessões que fez recentemente o governo venezuelano ao indultar mais de 100 antichavistas indicam nessa direção.
Porém, a reconciliação nacional em um sentido mais amplo demanda que as grandes maiorias sociais sejam parte desse processo, para que ela não fique como um armistício entre setores, e para que o reencontro dentro das diferenças seja o espaço político medular do país.
Fonte: Diálogos do Sul