Os novos públicos e a Secom
A “individualização” da história não é fortuita. Faz parte de uma estratégia narrativa que, ao rejeitar a abstração de noções como “direitos”, “deveres” ou “justiça” como forma válida de compreensão e avaliação do mundo, dialoga de forma direta e eficiente com a experiência pessoal.
Publicado 11/09/2020 17:34
Comunicações do governo federal têm repercutido na imprensa e na internet. O que pretendo fazer aqui é pensar as mensagens recentes publicadas pela a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) à luz das transformações recentes do “público”.
O “público” é uma invenção moderna. Não há, em latim ou em grego, um termo que corresponda ao que entendemos por “público”. O “público” distingue-se da “multidão” ou da “plateia” por sua dispersão geográfica. A influência mútua que as opiniões individuais exerciam umas sobre as outras por meio da conversa ou de discursos proferidos a multidões tornou-se uma ação feita a distância. Quando lemos um jornal do dia ou assistimos à televisão, ou seja, quando consumimos de forma dispersa e simultânea uma mesma mensagem, configuramos um “público”. Ainda que não suspeitemos disso, estamos então submetidos à influência exercida pela massa desses outros consumidores.
Em um país com os índices de escolarização e analfabetismo como os do Brasil, os meios de comunicação digitais sempre tiveram maior influência sobre as opiniões que os meios impressos. Diz-se, não sem razão, que foi através da imagem que o país se unificou graças à expansão do sinal da televisão no final dos anos 1970. Em outras palavras, brasileiros dos quatro cantos do país passaram a formar um público. Mas as maneiras como as mensagens da televisão atingem o grande público têm a ver com as características próprias do veículo. A heterogeneidade de seu público leva a televisão a corresponder a um suposto “gosto médio” do público.
Não é novidade alguma que, nesse aspecto, as novas tribunas ensejadas pelas redes sociais são incomparáveis aos canais de televisão. Dada a enorme segmentação das formas de consumo das redes sociais, as mensagens correspondem quase que automaticamente às expectativas de seus públicos. Tampouco é difícil constatar a altíssima diversificação das linguagens e mensagens de vídeos do YouTube e de correntes de WhatsApp. Graças a essas redes, grupos receptivos a discursos e linguagens, que nas últimas décadas estiveram, de forma geral, ausentes dos circuitos dominantes da comunicação pública, hoje configuram públicos.
O recente desenvolvimento das redes sociais teve consequências de duas ordens. Por um lado, diversificou e vulgarizou as mensagens e linguagens transmitidas a públicos ampliados. Por outro lado, inaugurou dinâmicas altamente segmentadas de formação de públicos e, logo, possibilitou a percepção de determinadas opiniões como autênticas “correntes de opinião”. Proponho pensar a adoção das linguagens atuais nas comunicações recentes do governo federal a partir das novas expectativas engendradas pelos deslocamentos recentes das configurações de públicos em escala nacional.
À ocasião das comemorações do Dia da Independência, a Secom fez uma série de publicações no Twitter em que, como em outras peças divulgadas por ela recentemente, busca-se uma ruptura radical com o passado recente, reivindicando, através de discursos nacionalistas, a “verdadeira” identidade nacional: afirma-se que a história do Brasil foi “vilipendiada por anos de destruição da identidade nacional”; “O Brasil tem identidade. Uma identidade nacional erigida com amor ao próximo e à pátria, com devoção, sacrifício e bondade”.
Essas publicações inserem-se em uma série de histórias individuais de brasileiros que se sacrificaram pelo país. Essa “individualização” não é fortuita. Faz parte de uma estratégia narrativa que, ao rejeitar a abstração de noções como “direitos”, “deveres” ou “justiça” como forma válida de compreensão e avaliação do mundo, dialoga de forma direta e eficiente com a experiência pessoal. De forma semelhante ao que se vê em vídeos no YouTube ou que circulam pelo WhatsApp, em que amadorismo serve como prova de autenticidade.
Há, portanto, uma valorização da experiência direta em detrimento de formas abstratas de apreensão de realidades coletivas. “De que adianta gritar que ama a humanidade, mas desprezar o ser humano?“, diz outro Tweet da Secom. Da mesma forma, privilegia-se os direitos individuais em detrimento de direitos coletivos: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.
A fala do secretário de Cultura Mário Frias é ilustrativa: “Você já parou para pensar como seria se a gente pudesse olhar para a nossa história assim: do jeito que eu estou olhando pros objetos aqui, dessa sala? Se a gente pudesse ver tudo o que vivemos em nossa vida de uma maneira simples, acessível à nossa visão? […] Seria incrível, não é mesmo? […] Eu falo a gente, porque eu conheço a nossa gente”.
Evidentemente os novos hábitos de consumo de conteúdo multimídia não explicam as razões do anti-intelectualismo, da crise da representação política, ou do recuo das ideias progressistas que, entre outros fatores, ensejaram as significativas mudanças no cenário político brasileiro recente. Mas considerar esses processos de formação de públicos e seus efeitos psicológicos pode ajudar a pensar os deslocamentos recentes das correntes de opinião assumidas publicamente que sustentam a eficiência do novo discurso oficial.
Pedro Paulo Martins Serra é doutorando em Sociologia pela FFLCH/USP com apoio do CNPq