“Desastres começam com cientistas sendo ignorados”
Carole Mundell integra grupo de pesquisadores que dá aconselhamento científico ao governo britânico e fala em entrevista sobre desafios nas relações entre cientistas e governos
Publicado 07/09/2020 13:11
Se você é um consumidor dos blockbusters de Hollywood, sabe que quase toda história de desastre começa com o alerta dos cientistas sendo ignorado pelo governo. De fato, a política e a ciência são mundos diversos, com tempos e objetivos diversos e, às vezes, até antagônicos. Mesmo num lugar com uma ciência tão tradicional como o Reino Unido nem sempre é diferente. Mas justamente para evitar essa dicotomia, o governo dispõe de órgãos que promovem uma relação mais íntima e de confiança entre quem toma as decisões e quem tem as melhores informações para orientá-las. Um deles é o Sage – Scientific Advisory Group for Emergencies, formado por um grupo de cientistas que assessoram o primeiro ministro Boris Johnson.
Carole Mundell, pesquisadora em astrofísica e professora na Universidade de Bath, Reino Unido, integra o Sage e também é Assessora Científica Chefe do FCDO – Foreign, Commonwealth and Development Office, o equivalente ao Ministério das Relações Exteriores britânico.
No mês de agosto, ela participou da Escola de Ciência e Inovação em Diplomacia Científica (InnSciD SP), evento com organização da USP e conta, nesta entrevista ao Jornal da USP, sobre seu papel à frente da diplomacia científica do FCDO, principalmente na resposta à pandemia, com a cooperação internacional na busca de tratamentos e vacinas. Colaboração ainda mais vital nesse momento de emergência global.
Quais as principais dificuldades de fazer a intermediação entre cientistas e lideranças políticas?
Carole Mundell – Primeiro, existem as diferenças de linguagem entre um grupo e outro, a compreensão das terminologias específicas, que é difícil. Além disso, estamos falando de culturas e ritmos de trabalho muito diferentes. E aí que entra um dos pontos fortes da rede de cientistas-chefes. Como também somos acadêmicos, sabemos como falar com nossos colegas, entendemos as dificuldades que enfrentam, o estresse a que estão submetidos, as pressões sofridas envolvendo financiamento, prazos e mudanças nos programas governamentais, por exemplo.
E como essas dificuldades apareceram durante a pandemia?
Nas crise da covid-19, os dois grupos, cientistas e políticos, estão sob diferentes tipos de pressão. Quando colocamos um cientista na frente de um político, que quer respostas rápidas para suas perguntas, o cientista em geral fica muito relutante e pode falar: “ah, vou ter que pensar nisso”, o que pode demorar algumas semanas, meses e até anos. Mas também consigo entender que, em tais situações, é necessário obter as informações depressa.
Acho que há uma diferença real entre as duas culturas, mas também penso que distanciar esses sistemas ajuda em alguns pontos, especialmente quando falamos de financiamento.
Como funciona isso?
Aqui no Reino Unido temos um sistema muito robusto de revisão por pares e sei que no Brasil vocês usam um sistema semelhante, com agências de financiamento, os cientistas e seus projetos. É um sistema baseado no chamado “princípio Haldane”, que basicamente é a ideia de que as decisões sobre como gastar os fundos para pesquisa devem ser tomadas por pesquisadores e não por políticos. Assim, é a excelência das ideias científicas que orientam a forma como os recursos são alocados, a comunidade científica é quem os administra, e o governo não interfere.
É a excelência das ideias científicas que orientam a forma como os recursos são alocados, a comunidade científica é quem os administra, e o governo não interfere.
No FCDO, se nossos ministros têm prioridades específicas ou se surgem desafios globais maiores, direcionamos a ciência para programas estratégicos e abrimos núcleos de financiamento. Isso tem sido muito instrumental dentro da crise da covid-19, para criar um novo tipo de pesquisa interdisciplinar. Tivemos que olhar para alguns dos grandes desafios existentes na sociedade e que não podiam ser resolvidos apenas com um tipo de disciplina da ciência, e nem dentro de um só país.
Que tipo de desafio, além da pandemia?
A resistência antimicrobiana é um bom exemplo disso. Esse grande problema global mobilizou o nosso governo e então foi aberta uma linha de financiamento. Deixamos para os pesquisadores decidirem como se organizar e buscar resolver. No início, não era possível prever se eles seriam capazes de responder a isso em pouco tempo, dentro do prazo de submissão que foi dado. Foi um verdadeiro desafio para a comunidade acadêmica trazer a política da inovação inclusive junto com a indústria. Mas a comunidade fez um trabalho fantástico! Eles viram a oportunidade e ficaram muito animados. Estabeleceram redes, hubs e trabalharam para cruzar esses limites tradicionais entre os campos.
Eu acho que esse tipo de conexão e as colaborações que foram construídas para resolver essa questão realmente ajudaram quando a crise da covid surgiu, porque os cientistas já tinham se organizado em comunidades que tiveram que trabalhar juntas, comprometidas nas pesquisas. O fato de que toda a comunidade acadêmica realmente se voltou para a pesquisa sobre o novo coronavírus, e a forma como eles fizeram desse um desafio global explica o porquê de já termos duas vacinas candidatas e outras três em ensaios clínicos, além de termos medicamentos imunoterapêuticos para os quais já foram identificados bons resultados em paciente críticos. Isso não acontece por acaso, mas por uma série de ações planejadas.
Carole Mundell: “Acessibilidade e transparência é essencial aos olhos do público. E ajuda na confiança da população em todos os cientistas” – Foto: Divulgação
E como isso se dá na prática?
O comitê consultor estratégico tem a opção de reunir grupos de especialistas e o grupo de aconselhamento científico de emergência [Sage – Scientific Advisory Group for Emergencies], que foi criado há alguns anos. Assim, se o primeiro-ministro se vê diante de uma crise que é complexa, e que pode piorar, o ele chama o principal conselheiro científico do governo para convocar o Sage.
Tivemos uma crise no ano passado, quando, após fortes chuvas, um reservatório se rompeu e inundou uma localidade. Não trabalhei nesse incidente porque essa não é minha área, mas tínhamos muitas equipes de especialistas treinados. Eles foram capazes de dar os melhores aconselhamentos científicos para que o governo pudesse gerenciar o desastre.
E na pandemia, como foi?
Quando soubemos da identificação desse novo coronavírus, que causava um novo tipo de pneumonia, foi reunida uma ampla gama de especialistas na Sage. Uma gama mundial de acadêmicos em epidemiologia, psicologia social, virologia, etc. Nós tínhamos todo o pessoal da saúde pública lá e um grupo específico foi treinado, com a chefia do professor Chris Witthy.
Se você teve a oportunidade de assistir, na BBC, aos briefings do primeiro-ministro… Eles aconteciam diariamente às cinco horas, e dependiam dos assuntos do dia, na medida em que a crise se desenrolava. Era preciso diferentes especialistas, olhar por diversos os ângulos. Aquele foi um momento muito intenso, estávamos nos reunindo regularmente no Sage. As equipes acadêmicas trabalhavam dia e noite e nos fins de semana para produzir os relatórios de pesquisa e tentar construir um consenso para que pudéssemos dar o melhor aconselhamento possível.
Eram tempos de grande incerteza, sabíamos muito pouco sobre o vírus e estávamos trabalhando bem de perto da equipe chinesa, a incentivando a ser transparente, por exemplo, com os dados. E eles realmente publicaram o genoma do vírus muito rapidamente, algo que foi fundamental para ajudar as equipes ao redor do mundo e para começarmos a trabalhar em vacinas e tratamentos.
Foi um trabalho enorme e fomos capazes de colocar em prática projetos de pesquisa de fato mundiais desde o início, gerando uma compreensão realmente profunda sobre natureza da epidemia no Reino Unido, sobre como se preparar para o inverno, tudo com dados públicos, compartilhados com pesquisadores ao redor do mundo.
Quando um político precisa de uma resposta definitiva, clara e rápida é muito importante ter um mecanismo para aconselhar o governo sobre o que sabemos, o quanto temos de certeza, o que não sabemos, e o que fazer com isso tudo. Isso é fundamental para criarmos as mensagens o mais claras possíveis para a população. Explicar para as pessoas: ‘isso é o que precisamos que você faça, e é por isso que precisamos que você faça’. E, de fato, se você assistir aos briefings, a imprensa teve grandes oportunidades de fazer perguntas realmente desafiadoras e receberam respostas muito francas. Fizemos um forte trabalho de bastidores para construir esse nível de transparência, apoiando o professor [Chris] Whitty e o Sir Patrick [Vallance] a dar essas respostas de forma clara, sensata, fundamentada… e com humildade. Esse nível de acessibilidade e transparência é essencial aos olhos do público. E ajuda na confiança da população em todos os cientistas.
Instituições como a OMS [Organização Mundial de Saúde] parecem estar perdendo força, ou pelo menos vêm sendo atacadas. Os Estados Unidos, por exemplo, cortaram os recursos financeiros à OMS. Como você vê isso?
Acho que as organizações multilaterais são absolutamente vitais e não podem ficar paradas, então é claro que é importante respaldá-las e garantir que permaneçam eficientes, e isso é ainda mais relevante nos dias atuais. Sempre haverá controvérsias, os países têm suas visões particulares. Mas a Organização Mundial da Saúde já teve tantas campanhas importantes… E a saúde global é muito desafiadora para deixá-la nas mãos apenas dos países, individualmente. Estamos todos em um mundo muito conectado agora e temos que ter esta organização multilateral para que todos os países possam ter igual acesso ao tipo de informação científica e aconselhamento de que precisam.
A saúde global é muito desafiadora para deixá-la nas mãos apenas dos países, individualmente.
Mas está mais difícil estabelecer consensos hoje?
Consenso é importante, mas não significa que ambos mudamos de ideia quando as evidências se tornam claras ou quando aprendemos coisas novas. Significa é que você pode ter certeza de que, no momento, isso é o melhor que sabemos e que estamos disponibilizando esse conhecimento a todos. Fiquei muito animada ao ver muitos dos principais cientistas do Reino Unido no conselho da OMS. E que também há conexões internacionais através de nossas comunidades de pesquisa, que apoiam em todo o mundo que a Organização Mundial de Saúde faz. E a OMS, por sua vez, pode ampliar a iniciativa e apoiar os outros países que podem não ter sistemas com as mesmas condições de fazer algumas pesquisas científicas.
Qual o peso dos acordos bilaterais e dos multilaterais?
Bem, eu acho que depende do problema. Acho que está tudo em escala. Os países podem ter acordos bilaterais muito fortes, ter bons relacionamentos em diferentes níveis desde os cientistas individualmente até os primeiros-ministros. E existem muitos tipos diferentes de acordos em todo o mundo, dependendo das questões que se apresentam. Algumas vezes os acordos bilaterais atendem melhor à função, mas também é o tipo de coisa que se deve manter atualizada. Você sabe, temos muitas novas fronteiras de ciência e tecnologia que estão surgindo, de biotecnologia, em que teremos que nos unir como uma comunidade mundial. Só porque um cientista pode fazer algo no laboratório, não significa que ele deva, certo?
Dê um exemplo.
Acho que o núcleo atômico é um bom exemplo disso. Quando os físicos dividiram o átomo, eles perceberam o enorme potencial da energia nuclear para o bem, para gerar energia. Por outro lado, também perceberam que havia um enorme potencial para desastres, caso fosse feita uma escolha não tão humana e social. Como você usa sua ciência, como você usa sua tecnologia? A ciência é mútua, certo? E as pessoas decidem como ela é aplicada. E eu acho que essa é a conversa que não paramos de ter entre nossos cientistas sociais, nossos filósofos, os responsáveis pela política. Nossa orientação ética envolve um diálogo ao redor do mundo entre muitos países. E nós tentamos entender a perspectiva de diferentes países sobre isso. Apresentamos as melhores evidências científicas disponíveis no âmago disso, e a sociedade tem o direito de questionar sobre a ética, e que tipo de mundo queremos construir para as crianças que estão crescendo hoje, que legado deixar.
A sociedade pode decidir o que podemos fazer com a ciência, com o que sabemos e com o que não sabemos, e como construímos essas estruturas em torno de algo novo que é descoberto, para não nos destruímos acidentalmente em razão de más decisões.
Há aquela piada de que todo filme de desastre de Hollywood começa com os cientistas sendo ignorados… É verdade, ironicamente, é verdade. Mas também é verdade que, embora os cientistas sejam muito bons no que fazem, eles não são únicos guardiões da ciência, e precisamos pensar amplamente com a sociedade sobre o tipo de mundo que queremos construir.
Embora os cientistas sejam muito bons no que fazem, eles não são únicos guardiões da ciência, e precisamos pensar amplamente com a sociedade sobre o tipo de mundo que queremos construir.
Na sua área [astrofísica] isso é mais fácil? Quer dizer, no mínimo vocês precisam entrar em acordo para usar os mesmos telescópios e colaborar.
Sim e não. Devo dizer que a astrofísica é altamente competitiva, mas sim, nenhum país pode trabalhar sozinho para construir certas infraestruturas. Quando você tenta usar instalações, os recursos são muito escassos e há muitas pessoas interessadas. Então competimos como qualquer outro cientista e precisamos administrar o uso dessas instalações.
Quando pedimos acesso ao telescópio, precisamos fazer isso de uma forma muito competitiva: definir uma questão científica importante, usar o método científico de maneira a projetar o experimento para testar as hipóteses ou responder aquela questão e, em seguida, traduzir a resposta em um relato técnico. Você precisa escrever um projeto persuasivo para seus pares que vão avaliar a proposta; dizer que é por isso que este telescópio ou equipamento é a melhor ferramenta para você responder àquela pergunta. Antes de mais nada, você tem que convencer seu colega de que a pergunta é importante, que vale a pena tentar respondê-la, que é possível respondê-la. E que aquela instalação tem a estruturas certas para fazer isso. E claro, que sua pergunta e sua abordagem são realmente melhores do que as da outra proposta que está chegando para ser avaliada. Então é, ao mesmo tempo, muito colaborativo e muito competitivo.
Qual sua visão sobre divulgação da ciência para o público?
O primeiro passo é entender que o dinheiro público é que paga pelo tempo de pesquisa. Ser pesquisador, então, é um privilégio. O Reino Unido tem um papel muito forte e uma reputação sólida em engajamento público de alta qualidade. Quer dizer, realmente engajando, envolvendo o público, e não apenas “falando ao público”. E isso em todos os níveis, desde pesquisadores saindo para as praças num dia ensolarado envolvendo famílias e crianças com ciência que produzem. É algo que está muito embutido na cultura de nossas universidades, assim como o investimento em equipes profissionais de engajamento público que são especialistas em divulgação de ciência para a população e que ajudam os cientistas a transformar suas pesquisas em algo acessível.
[A divulgação científica] é algo que está muito embutido na cultura de nossas universidades, assim como o investimento em equipes profissionais de engajamento público (…) que ajudam os cientistas a transformar suas pesquisas em algo acessível.
E institucionalizando essas ações… temos museus de ciência de altíssima qualidade, e que também exportam seus projetos para outros países. Também temos muita sorte de ter a BBC, que é conhecida no mundo, com o David Attenborough [naturalista e documentarista]. A maneira como ele comunica as maravilhas do mundo, a natureza… Ele tem uma habilidade incrível de comunicar o quanto nosso Planeta é único e como somos todos guardiões dele e devemos protegê-lo. Ele faz isso de uma forma muito acessível; não prega, não diz que você deve fazer isso, você não deve fazer aquilo. Ele apenas apresenta o mundo. Quero dizer, fala também para pessoas que nunca viram um programa de ciências clássico ou que têm um pouco de medo, e pensam que cientistas são um tipo de pessoa estranha que usa jaleco branco e fica no laboratório… E isso para todas as gerações. São muitas gerações aqui que já assistiram a esses programas, cresceram e passaram este hábito para as crianças. Então faz muitos anos que estamos desenvolvendo um sistema, às vezes tendo contratempos, mas realmente buscando se aproximar das pessoas. É questão de realmente entender que, se você é financiado pelo público para fazer sua ciência, também é seu dever, de alguma forma, encontrar uma maneira de divulgá-la ao público, para que desfrute dela.
A senhora também é engajada na luta pela diversidade na ciência. Fale um pouco desse aspecto.
Sim, diversidade é um assunto que me é muito caro. Sabemos que se você tem um grupo na sala com mesmo tipo de pessoa você não vai conseguir encontrar as melhores respostas para as perguntas mais difíceis. Isso é muito importante como base. Sempre trabalhei na área da física, que é muito dominada pelos homens e tenho muitos colegas homens maravilhosos que respeito imensamente. E felizmente vemos cada vez mais mulheres jovens, em particular crianças, que não agem “de acordo com o gênero”, elas estão apenas animadas em encontrar evidências [científicas]. Mas em particular a interseção de raça e gênero, ainda é um desafio em dobro, porque a física é muito voltada, tradicionalmente, para os homens brancos e é muito triste pensar que as poucas estudantes que temos neste perfil muitas vezes largam a área. Existem estudos controlados muito bons feitos por cientistas sociais que mostram atitudes muito perturbadoras e muito agressivas neste meio. O assédio sexual é outro problema importante.
É fundamental a criação de um ambiente inclusivo e de apoio, também para que possamos ouvir novas vozes nos debates, reuniões, apresentações, em que as mulheres muitas vezes ficam em segundo plano.
Pensando isso de forma muito mais ampla, é algo que toca o cerne de como projetamos nosso sistema de ciência. Há necessidade de uma agenda que transforme a cultura nos locais de trabalho, para que possamos produzir a melhor ciência, porque aquela ciência vai literalmente mudar o mundo, vai impulsionar sua economia, tornar as pessoas mais saudáveis. E eu repito que é muito importante termos essa mistura de pessoas e que as pessoas se sintam seguras para poderem ser tão inteligentes e talentosas quanto são.