Dermeval Saviani: Educação não é gasto, nem pode ser submetida a teto
Um fato que vem marcando a educação brasileira, desde o tempo da colônia, é a histórica resistência dos nossos dirigentes à manutenção e desenvolvimento da educação. Indo na contramão do entendimento de que a educação se constitui num investimento de alto retorno.
Publicado 26/08/2020 19:45 | Editado 26/08/2020 21:08
Isso não escapou, sequer, aos políticos já no tempo do império. Como se pode ver por essa afirmação de Almeida de Oliveira na sessão de 18 de setembro de 1882 do Parlamento brasileiro, final do Império, portanto. Disse ele, naquele momento: “Na instrução pública está o segredo da multiplicação dos pães. E o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta”.
Não obstante, durante os 49 anos correspondentes ao Segundo Império, entre 1840 e 1888, a média anual dos recursos investidos em educação foi de 1,80% do orçamento do governo imperial, cabendo 0,47% para instrução primária e secundária. Era, pois, um investimento irrisório, conforme constatou Ruy Barbosa, que afirmou, em 1882: “O Estado, no Brasil, consagra a esse serviço apenas 1,99% do orçamento geral, enquanto as despesas militares nos devoram 20,86%”. Isso está sendo fortemente reeditado agora. Enquanto se busca reduzir os recursos para a educação, os militares são aquinhoados com novos privilégios, mais recursos, mais remuneração, uma aposentadoria privilegiada, e ocupando postos nos mais variados ministérios do governo.
Ao longo da Primeira República, o ensino permaneceu estagnado. O que pode ser ilustrado com o número de analfabetos em relação à população total, que se manteve no índice de 75% entre 1900 e 1920, sendo que o número absoluto de analfabetos aumentou de 12.939.000 para 23.142.000. Quase duplicou!
Na era Vargas, a Constituição de 1934 determinou que a União e os municípios deveriam aplicar nunca menos de 10%, e os estados 20% da arrecadação de impostos, na manutenção e desenvolvimento dos sistemas educacionais. No entanto, vejam só, em 1936, a União aplicava 2,5% e os municípios 8,1%, quando deveria ser no mínimo 10%, e os estados aplicavam 13,4% dos 20% mínimos.
A Constituição de 1946 fixou em 20% a obrigação mínima dos estados e municípios e 10% para a União. No entanto, em 1955, tínhamos os seguintes resultados: União, 5,7%, estados, 13,7% e municípios, 11,4%. Sempre investimentos muito abaixo do que a própria lei determinava.
A nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1961, determinou pelo parágrafo 1o. do artigo 92, que, com nove décimos dos recursos federais, deviam ser constituídos, com parcelas iguais, três fundos: um para o ensino primário, outro para o ensino médio e um terceiro para o ensino superior. E no parágrafo 2o atribuiu ao Conselho Federal de Educação a tarefa de elaborar o plano referente a cada um desses três fundos.
Designado para relatar o plano no Conselho Federal de Educação, Anísio Teixeira arquitetou um procedimento engenhoso para a distribuição dos recursos, detalhando no que se refere ao plano do Fundo Nacional do Ensino Primário. Então, combinando renda per capita dos estados com população em idade escolar, propôs que 70% dos recursos fossem calculados na razão inversa da renda per capita, e 30% na razão direta da população em idade escolar.
Para determinar as despesas com ensino considerou que os gastos com salários dos professores seriam da ordem de 70%, que é o que, agora, o Fundeb aprovado também marcou. O anterior era, no mínimo, 60%, e, agora, é como Anísio Teixeira já havia proposto. Distribuindo-se o restante entre administração (7%), recursos didáticos (13%) e prédio e equipamentos (10%).
Anísio tomou ainda os valores dos salários mínimos regionais como referência para estabelecer os custos com o magistério. E, somados às demais despesas, permitiram-lhe determinar o custo do aluno/ano. Com base nesses elementos, propôs uma fórmula matemática para o cálculo dos recursos que a União repassaria a cada Unidade da Federação.
Ora, foi esse procedimento que inspirou a criação, em 1996, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério, o Fundef, que vigorou de 1996 até 2006. Essa orientação também foi mantida com a substituição do Fundef pelo Fundeb, em dezembro de 2006, quando ocorreram, no entanto, dois avanços em relação ao Fundef.
O primeiro foi estender a abrangência para toda a educação básica, abarcando também a educação infantil e o ensino médio. E o segundo avanço foi assegurar a participação da União com a parcela do orçamento do MEC, pois o governo FHC não cumpria essa exigência e utilizava a transferência dos recursos do salário-educação como correspondendo à participação federal na composição do, então, Fundef. Pela lei de 20 de junho de 2007, que regulamentou a implantação do então Fundeb, foi vedada a utilização de recursos oriundos da arrecadação da contribuição social do salário-educação na complementação da união aos Fundos, paragrafo 1o. do artigo 5o. dessa lei. O próprio governo federal, no projeto da lei que foi aprovado no Congresso, proibiu o uso do salário-educação, porque era uma forma de burlar a exigência da complementação por parte do Governo Federal.
Agora, felizmente, a Câmara dos Deputados, num esforço articulado pela oposição ao governo Bolsonaro, aprovou em 22 de julho deste ano, a Emenda Constitucional, que não apenas renova a validade do Fundeb, como o torna permanente. Além disso, representa um avanço ao determinar a ampliação gradativa da participação da União, passando dos 10% atuais, para chegar a 23% em 2026.
Só nos resta, então, esperar que o Senado confirme integralmente essa decisão, que se configurou numa clara derrota do governo Bolsonaro. No entanto, o presidente, mentiroso contumaz, teve o desplante de afirmar nas redes sociais, no dia 23 de julho, um dia depois da aprovação da PEC do Fundeb, que “O Executivo mostrou responsabilidade na aprovação do Fundeb, no dia de ontem. Então, o PT ficou 14 anos no poder e não fez nada. Ou melhor, via método Paulo Freire, nos colocou em último lugar no PISA [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes]. E o governo conseguiu, ontem, mais uma vitória, aprovamos o Fundeb e o Senado deve seguir o mesmo caminho”.
Ora, o governo tentou a ultima hora transferir a validade do Fundeb para 2022 e desviar recursos do Fundo para o programa Bolsa Família. Sete votos não favoráveis à aprovação da PEC foram de aliados do presidente, pertencentes seis do PSL e um do PSC, partidos que o elegeram.
Enfim, já que a questão dos recursos para a educação e seu aumento têm a ver com a busca de melhorar a qualidade do ensino, é preciso considerar que é impossível equacionar o problema da qualidade do ensino público operando sempre com recursos escassos como é a regra no nosso país.
É preciso, então, equipar adequadamente as escolas e instituir uma carreira docente que permita aos professores, em regime de 40 horas semanais, e com salários dignos, atuarem em uma única escola de educação básica, destinando metade do tempo para as aulas e a outra metade para as demais atividades.
Assim, transformada a docência em uma profissão atraente socialmente, em razão da sensível melhoria salarial e das condições de trabalho, para ela serão atraídos muitos jovens dispostos a investir seus recursos, tempo e energias, numa alta qualificação obtida em graduações de longa duração e em cursos de pós-graduação. Com um quadro de professores altamente qualificados trabalhando em condições adequadas estaremos elevando a qualidade da educação pública em seus diferentes níveis e modalidades.
Enfim, cabe afirmar que educação é, pois, um investimento, e dos mais rentáveis; não sendo, em hipótese alguma, simplesmente gasto ou despesa. Portanto, a educação sequer estaria sujeita à determinação da Emenda 95 que estabeleceu o Teto de Gastos.
Portanto, o governo deve encaminhar ao Congresso, que deve tomar a iniciativa de aprovar um projeto revogando a Emenda 95. Porque é um absurdo que um país decida, por sua iniciativa, ficar parado durante 20 anos sem investir e sem se desenvolver. Mesmo que o Congresso não faça isso, o governo não está impedido de investir em educação, porque não se trata de gasto, portanto não está submetido aos limites do Teto de Gastos.
Este texto foi extraído da live do portal Vermelho “Rumos da educação em tempos de pandemia e bolsonarismo”, ocorrida no último dia 24 de julho, às 15 horas.