Indígenas Xavante perdem Cidaneri, ancião histórico, por Covid-19
Filho do grande cacique Apöena, o líder indígena morre com suspeita de Covid-19; todos da família testaram positivo para o coronavírus
Publicado 06/08/2020 11:11
Filho do grande líder dos indígenas Xavante, o cacique Apöena, “uma pessoa iluminada”, “uma enciclopédia viva”, assim é lembrado o ancião Cidaneri Xavante, de 87 anos. Ele morreu no último dia 23 de julho apresentando os sintomas do novo coronavírus. Cidaneri é o segundo ancião que a comunidade de Pimentel Barbosa perde em menos de um mês. Três semanas antes faleceu Luís Ripru Xavante, que testou positivo para Covid-19.
O sepultamento foi realizado na sexta-feira (24) pelos sobrinhos mais velhos do ancião, Jurandir Siridiwe Xavante e Paulo Cipasse Xavante. O ritual de despedida encerrou um drama particular para a família de Cidaneri, que acompanhou os últimos momentos do ancião e agora a maioria dos que tiveram contato com ele testaram positivo para a doença. Todos estavam acampados há mais de 15 dias no interior da mata à beira do histórico Rio das Mortes.
De acordo com o cacique Cipassé, o ancião começou a passar mal na terça-feira (21 de julho). Um dia depois, foi retirado de carro do acampamento e levado para o centro da aldeia Waderã, numa viagem de 40 quilômetros que durou cerca de duas horas. Lá, ele foi examinado por uma equipe médica que constatou que era preciso levá-lo com urgência para Barra do Garças, a 400 quilômetros da aldeia, mas Cipassé pediu para esperar até o dia seguinte. Na quinta-feira, 23, o cacique comunica às enfermeiras que seu tio havia morrido. Era um final de tarde.
A família mora na Terra Indígena Pimentel Barbosa, nas regiões dos municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheiras, ao leste de Mato Grosso. Dez membros de uma família Xavante testaram positivo para Covid-19 depois da morte do patriarca. Entre os infectados estão a mulher dele, Arnestina Xavante; os dois filhos, Eurico e Donamélia; o sobrinho, Jurandir; o genro, Trital; e o cacique Paulo Cipassé Xavante.
O cacique acredita que o tio estava com Covid e possivelmente se contaminou na Casa de Saúde Indígena (Casai) de Barra do Garças – a 350 quilômetros de Pimentel Barbosa – já que ele fazia um tratamento de hemodiálise no local. Nessa Casai foi registrado o primeiro caso de Covid-19 de um indígena em Mato Grosso.
“Ele morreu de Covid, sim. Acompanhei junto com as enfermeiras e ele tinha os sintomas: dor de garganta, tosse seca e falta de ar, por isso que ele teve essa morte. A mulher dele, tia Arnestina, está com Covid. Toda a família, os filhos que tiveram contato com o corpo no velório, porque o caixão demorou a chegar, estão com Covid”, disse Cipassé.
Os testes rápidos nos familiares do ancião só foram feitos na quarta-feira (29), pelas enfermeiras do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xavante. Desde o primeiro caso de Covid-19 em maio, já são mais de 345 contaminados e mais de 30 mortes entre a etnia, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. A campanha SOS Xavante, que também monitora os casos, afirma que já são mais de 50 mortos.
Segundo o cacique Cipassé, a equipe do Dsei Xavante não conseguiu testar o ancião porque o sangue já estava coagulado, explicaram as enfermeiras. Por isso, os testes foram feitos nas pessoas que tiveram contato com o ancião, e o resultado foi positivo. Cipassé disse que o Dsei já adaptou um espaço de isolamento em uma escola da aldeia Pimentel Barbosa – que leva o mesmo nome da TI -, para receber os contaminados. “Fizeram uma mini-estrutura para receber as pessoas lá, com respiradores, camas e balões de oxigênio. Também têm duas enfermeiras padrão e um médico”, informa. Um teste com todos os moradores da aldeia seria feito no dia 30.
“Todo mundo está preocupado, porque o vírus já está no território. Como são 16 aldeias é perigoso o vírus se esparramar nessas regiões. Por enquanto o vírus só está em três aldeias: aldeia Pimentel Barbosa, Etenhiritia e Waderã. Tem mais 13 aldeias e precisamos evitar a proliferação, que é muito perigoso. Por isso a gente tem que isolar essas pessoas. A gente deve ajudar também os profissionais, na orientação e no trabalho deles. Todo mundo se unindo para combater esse vírus e diminuir contágio”, reforçou Cipassé
Os indígenas Xavante se autodenominam A´uwe (gente) e são da família linguística Macro-Jê. É a etnia mais numerosa de Mato Grosso e a quarta do país, com uma população de 22 mil pessoas residentes em nove territórios, em mais de 300 aldeias ao leste e nordeste mato-grossense. As terras são banhadas por rios como o das Mortes, Kuluene, Couto de Magalhães, Batovi e Garças. A etnia é a mais atingida pelo vírus no estado, sendo o terceiro grupo indígena mais vulnerável à pandemia no Brasil.
‘Quis morrer no meio do cerrado’
“Uma vez ele tinha falado para os filhos que ele não queria voltar para Barra do Garças pra fazer hemodiálise. Não queria nem ouviu falar de Casai [Casa de Saúde Indígena], pois estava cansado, foram 10 anos de tratamento, não estava mais aguentando a agulha. Aí eu falei para as meninas [enfermeiras] para respeitar, que ele queria ficar, e que na quinta (23) a gente tentava convencê-lo. Elas entenderam. Mas ele já estava decidido. O tio já tinha terminado o pensamento dele de morrer no meio da aldeia, perto de seu povo, da família e do cerrado”, lembra o cacique.
Cidaneri era filho do grande líder dos xavante, o cacique Apöena, que em 1946 foi o primeiro da etnia e estabelecer oficialmente contato com a expedição do antigo Serviço de Proteção ao Indígena (SPI) – atual Funai – chefiada pelo sertanista Francisco Meirelles. Na época, Apöena e Meirelles saíram nas páginas dos principais jornais como “heróis nacionais” pelo sucesso da empreitada. Na verdade, Apöena se viu sem muitas opções, pois o seu povo já estava cercado pelas fazendas de gado. Temendo o genocídio, o grande líder negociou para garantir o território e a continuidade da etnia.
“A única coisa que ele pediu para o Meirelles foi respeito, pois os Xavante não estavam se rendendo, mas estabelecendo contato para garantir o território”, conta Cipassé que ouviu a história transmitida pelo ancião Cidaneri. O cacique entende que Cidaneri soube assimilar os conhecimentos do pai, e que cumpriu sua missão ao transmitir esses valores aos mais jovens, principalmente a defesa do território e a preservação do cerrado.
“Uma grande perda. Agora é superar a dor e dar continuidade ao legado dele. Da missão, que é proteger e defender o nosso território, para evitar a entrada dos pescadores, madeireiros e garimpeiros. Ele nos ensinou que o território é nossa casa, da onde a gente vive, retira os nossos alimentos, faz as nossas festas, pra continuar como povo. Ele sempre falava isso”, recorda o cacique.
A jornalista e fotógrafa Rosa Gauditano, amiga de Cidaneri, escreveu em postagem no Facebook que o ancião era um “homem visionário” por ter vivido em dois mundos, antes e depois do contato com os warazú (os brancos). “Cidaneri era um profundo conhecedor do Cerrado brasileiro, incentivador dos jovens para melhorarem a vida do povo Xavante e fazerem o resgate de sua cultura ancestral. Com ele aprendi a conhecer as frutas desconhecidas do Cerrado, a ver a imensa variedade de remédios, a aprender conhecimentos que eu nem imaginava que existissem, aprendi que o amor está em todas as coisas, em todos os lugares. Ele era uma pessoa iluminada, uma enciclopédia viva, como muitos anciãos indígenas que estão perdendo a vida com o Covid-19 por conta do descaso do governo brasileiro”, escreveu Rosa.
Fernanda Viegas Reichardt conheceu Cidaneri em 2013, quando realizou um estudo sobre conflitos sociais entre os indígenas nas cabeceiras do Rio Xingu, pela Universidade de São Paulo (USP). A partir desse contato, o ancião a adotou como filha. Conta que o momento mais marcante foi quando Cidaneri conheceu seus pais biológicos. “Meus pais foram visitar a aldeia e a gente vai na casa dele e ele faz um canto ritualístico. E aí ele agradece aos meus pais a minha existência e fala que sou uma luz para os xavantes”, recorda.
Hiripadi Toptiro, presidente da Associação Warã Xavante, ressalta que em sua Terra Indígena Sangradouro já morreram dois anciões importantes em decorrência da Covid, entre eles, Mônica Rênhinhai’õ, líder Xavante que trabalhava pelo reflorestamento da TI Marãiwtsédé. “Essa Covid-19 não está dando a oportunidade dos velhos fazerem o que sempre fizeram com a gente, que é orientar. Essa ruptura de transmissão de conhecimento para a nova geração vai mudar bastante, vai se perder muita coisa. Nós vamos sentir daqui alguns meses ou um ano, quando começar a voltar os rituais”, lamenta Hiripadi.
O que diz o Dsei Xavante
A coordenadora do Dsei Xavante, Luciane Gomes, informou que depois da pandemia, Cidaneri ficou com medo de ficar na Casai de Barra do Garças e pediu para permanecer na sua aldeia. Segundo ela, o médico autorizou, mas que era para ele vir à cidade toda semana para fazer a hemodiálise. Ela afirma que quando o ancião foi para o acampamento no interior da aldeia, ele ficou 15 dias sem fazer o tratamento, o que teria elevado sua pressão arterial. O órgão diz que em nenhum momento Cidaneri teria se queixado de sintomas da Covid-19.
Uma enfermeira da Casai de Barra do Garças ouvida pela reportagem da Amazônia Real disse que nos últimos meses Cidaneri fez periodicamente testes rápidos para o novo coronavírus. Em nenhum deles, o resultado foi positivo para a doença. Ela pediu para não ser identificada pela reportagem.
Fonte: Amazônia Legal