Pandemia possui lacunas importantes a serem desvendadas

José da Rocha Carvalheiro diz que o Sistema Único de Saúde integrado entre os entes federativos ajudou a minimizar os impactos da pandemia, mesmo sem o governo federal ter coordenado as ações

A alta complexidade na questão do enfrentamento da pandemia do novo coronavírus no Brasil evidenciou a importância da produção científica no País e no mundo. Apesar disso, a pandemia de Covid-19 apresenta complexidades que superam todas as pandemias recentes, inclusive aquela de HIV-Aids.

A recente edição 99 da revista Estudos Avançados do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, traz um dossiê com 17 artigos escritos por 47 pesquisadores de diversas universidades e instituições de pesquisa brasileiras que tratam o tema. Quem comenta as lacunas não desvendadas da Covid-19 é José da Rocha Carvalheiro, professor titular de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, que coordenou o dossiê após ser convidado por Sérgio Adorno, editor da revista.

Ele observa que já participou de vários outros dossiês da revista sobre o tema pandemia. Apesar disso, enfrentou maiores desafios com o dossiê atual, devido à dificuldades de compreensão da dinâmica do novo coronavírus (o Sars-Cov2). Ele ressalta que até mesmo o HIV, apesar de um início misterioso, rapidamente se revelou em sua história natural.

“Sabe-se menos nesta pandemia, do ponto de vista da realidade biológica e clínica da doença em nível individual, para transformar em processo coletivo, que é a responsabilidade da saúde pública, fica prejudicada por termos lacunas importantíssimas, ainda. Estamos um pouco no escuro”, admite.

Carvalheiro diz da falta de identificação com profundidade dos elementos fundamentais da história natural do vírus Sars-Cov2, e afirma que, até o presente momento, ainda há muitas dúvidas. “Até agora, permanecem incógnitos elementos importantes desta doença, como incidência, prevalência e duração”, diz.

“O que acontece com os assintomáticos ou pré-sintomáticos? Quanto tempo dura, e se existe, uma imunidade após a infecção? […] O que se pode considerar fundamental para a transmissão?”, questiona o professor, que também é integrante do Observatório da Inovação e Competitividade do IEA.

Para a última pergunta, há um certo consenso na comunidade científica de que as gotículas que se expelem quando se fala e espirra são “indiscutíveis” a respeito do papel na transmissão da covid-19, bem como os aerossóis (partículas ainda menores que os perdigotos que ficam suspensos no ar), que teriam menos importância na transmissão. Existe ainda dúvida sobre o papel dos fômites, objetos ou substâncias capazes de absorver e transportar o vírus de um indivíduo a outro.

Por isso, protocolos não farmacológicos precisam ser utilizados no caso desta pandemia. É fundamental que não haja aglomeração de pessoas, que tenha obrigatoriedade do uso de máscaras como principal mecanismo de controle, além do isolamento social e da prática de “etiqueta respiratória” (como tossir e falar adequadamente). Em resumo, essa pandemia possui importantes lacunas no ponto de vista clínico e biológico, que leva aos cuidados estritamente necessários com o que já temos de conhecimento.

O potencial do SUS

Prestes a atingir 100 mil mortes e 3 milhões de casos confirmados da doença, o Brasil não trabalhou para a adoção de bloqueio total dos serviços não essenciais nem confinamento obrigatório da população, apesar de ter implementado medidas mais brandas. “Eu não diria que é um mau resultado, variou muito”, observa Carvalheiro. Ele diz que há experiências municipais surpreendentes.

Foi o Sistema Único de Saúde (SUS), integrado entre os entes federativos (municípios, Estados e União), que ajudou a minimizar os impactos da pandemia, mesmo sem o governo federal ter aproveitado sua capacidade de coordenação nacional.

O professor atribui esse “desfalque” como sendo provocado pela Presidência da República, “com todo seu comportamento ‘esquisito’ em relação à cloroquina e outros equívocos de fake news”, que se negou a usar toda a capacidade do SUS que poderia alcançar os lugares mais remotos do País. Ele salienta que o Brasil conta com agentes de saúde espalhados por cada município do país, que poderiam ter sido acionados, em vez de restringir as políticas ao atendimento mais sofisticado de hospital.

Ele citou o exemplo de Cuba, que fez muita testagem, conforme orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) preconizava. Acompanhou os pré-sintomáticos, admitindo que era naquele momento em que ele era mais perigoso como agente de contágio, e fez a quarentena deste e dos seus contatos. “Não precisa inventar! Nós já tínhamos a estrutura para ser disparada para atender”, enfatizou.

Como não se sabe a história natural do vírus, Carvalheiro diz que é preciso utilizar-se da história natural do sistema de saúde. Ele fala que há, não apenas no Brasil, uma estratégia de “morde e assopra”, em que se há ameaça de colapso no atendimento, volta-se à quarentena. “Como o doente que tira férias do remédio, conforme melhora de saúde, voltando a tomar se a saúde piorar”, comparou.

O avanço epidêmico

José da Rocha Carvalheiro acredita que estamos iniciando a descida do platô, com um equilíbrio da curva de contágio e mortes tendendo a decrescer. “Portanto, teremos que conviver com os valores elevados de casos e óbitos diários até pelo menos setembro, outubro ou novembro”, projeta. Por outro lado, mesmo os países que vivenciaram a pandemia antes, não sabem ainda se haverá segunda onda de contágios, uma outra lacuna que dificulta previsões sobre os rumos da pandemia.

Outro ponto que o professor aborda é sobre a imunidade coletiva da população, também chamada de imunidade de rebanho, “uma espécie de complemento positivo de um conjunto da população estar imunizado”. Ele explicou que, mesmo os primeiros estudiosos do tema abandonaram-no como medida protetiva em casos de epidemia, devido ao seu caráter polêmico. Ele prefere não estabelecer um percentual populacional para isto, mas considera que se há 80% da população com anticorpos, a imunidade coletiva se expressa melhor do que se houver 30% da população.

Para conferir a edição 99 da revista Estudos Avançados clique aqui.

Edição de entrevista à Rádio USP

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