Por que continuam a morrer mais de mil brasileiros por dia?
O único paralelo com o Brasil hoje é os Estados Unidos.
Publicado 30/07/2020 12:40 | Editado 30/07/2020 12:55
“A vigilância Epidemiológica e a Inteligência Geográfica para suprimir a transmissão do Coronavírus” foi tema de um encontro virtual entre pesquisadores, médicos e especialistas mediado por Luiz Humberto Carrijo. A discussão se concentrou na análise da situação da pandemia, que se apresenta neste momento com cerca de 40 mil novos casos de infectados pelo coronavírus diariamente, e que mata cerca de mil pessoas no Brasil em média também todos os dias.
Participaram da discussão o epidemiologista, ex-secretário de Saúde do Rio e professor da Escola Nacional de Saúde Pública e da Fiocruz, Eduardo Costa, o geógrafo e professor da UnB, mestre em Geociências e Meio Ambiente, Edilson de Sousa Bias, o doutor em Saúde Pública e professor do Programa de Pós Graduação da Escola Superior em Ciências da Saúde do Distrito Federal, Roberto Bittencourt, e o professor Paulo Ângelo Alves Resende, matemático e doutor em Ciências da Computação e Coordenador do Observatório da Covid-19 da UnB. Acompanhe a entrevista completa.
Luiz Humberto Carrijo: Essa política de isolamento social que o Brasil adotou, de forma atabalhoada, sem uma liderança nacional, com muita desentendimento e confusão entre governos estaduais e municipais e o governo federal. Vemos entes da federação ora flexibilizando, ora mais restritivos. Esse isolamento social não está levando em conta as condições socioeconômicas da maioria da população que tem limitações de mobilidade, de moradia, que não consegue fazer esse isolamento social. Ao mesmo tempo vemos essa curva de infectados aumentando, da mesma maneira que o número de mortos. Nos dá a impressão que estamos num isolamento às cegas? Fazemos então a pergunta, existe uma luz no fim do túnel? Como é o modelo de vigilância epidemiológica que vocês propõem?
Eduardo Costa: O Brasil não começou as suas atividades de controle de uma maneira, que a gente pudesse dizer, minimamente planejada. Isso pode ser um erro habitual. É difícil nas situações iniciais um pouco desconhecidas, como muitas coisas ainda são. Na verdade o que houve é que o país se agarrou a uma única atividade central que dizia que devíamos fazer o que a gente chama de isolamento social indiscriminado. Dizia-se através da mídia para cada um se isolar sem uma base epidemiológica. Sem saber se o país inteiro está infectado, se é um estado só, ou seja, qual é a situação. Sempre faltou um pouco de inteligência epidemiológica desde o início.
“Sempre faltou um pouco de inteligência epidemiológica desde o início”
E a outra coisa que estavam preocupados, que era natural que estivessem, já tinha havido a experiência de outros países, era a precariedade da distribuição de leitos no Brasil, leitos de UTI especialmente, e que seriam necessários. Então começou um trabalho inicial muito concentrado na questão hospitalar de um lado, com assistência médica, que nós sabemos, não altera muto o curso da doença, não tem um efeito na transmissão da doença e também não muda muito o curso da doença. Na verdade essa é uma realidade que a gente tem. Concentrou-se nisso, que eram coisas, com muita importância, do ponto de vista social e humano, mas com pouco efeito no controle da doença.
E o “indiscriminado” estava marcado por um problema. Não dá para todo mundo parar, do ponto de vista social, por uma questão alimentar, as cadeias nutricionais que são necessárias, tem o setor de saúde que precisa sair para atender, você tem algumas atividades essenciais que acabam circulando bastante entre hospitais, os profissionais de saúde com mais de um emprego, circulam e voltam para casa e são fontes de risco. Então tivemos uma disseminação que continua a acontecer por essas atividades essenciais, embora tivéssemos um isolamento geral indiscriminado de pessoas com pouco risco. Os de maiores riscos não foram atendidos adequadamente.
O que aconteceu foi que tivemos uma mitigação da curva com esse isolamento que funcionou. Ele ajudou a mitigar, como se diz por aí, a curva e saímos de um nível inicial de R de 3, para R de 1,4, por aí, em seis semanas. Depois começou uma queda bem mais lenta.
Para enfrentar esse quadro necessitamos de dois instrumentos. Um que é a inteligência epidemiológica para poder fazer o combate no terreno, com os instrumentos que a saúde pública tem, e precisamos também da inteligência geográfica porque precisa localizar, principalmente num país grande como o Brasil. Tem que correr atrás, identificar onde é que está. Tem que ter informação suficiente para isso.
“Na epidemiologia o objetivo de tudo é a supressão da transmissão. Para isso, nós temos que trabalhar nos casos. A partir dos casos, identificar de onde ele pegou, isolar as pessoas que convivem com ele para que também não peguem”
Na epidemiologia o objetivo de tudo é a supressão da transmissão. Para isso, nós temos que trabalhar nos casos. A partir dos casos, identificar de onde ele pegou, isolar as pessoas que convivem com ele para que também não peguem. Tem que fazer um trabalho epidemiológico que não foi feito. Isso a gente chama de vigilância epidemiológica, que é uma informação para a ação, que é o isolamento das pessoas que tenham contato. Para isso não foi feito um planejamento. O SUS tem capacidade para trabalhar com vigilância epidemiológica, mas não ativou isso. Pelo contrário, mandavam as pessoas para casa, simplesmente, quando era doença leve , nem notificava de cara, era suspeito, não confirmavam. Voltavam para casa e continuava a transmissão. Se ele era grave, ia para o hospital. Essa é a mudança que tem que ter. Estamos falando nisso há dois meses.
Luiz Humberto Carrijo: O senhor acredita que esse modelo foi adotado porque a perspectiva preponderante é um modelo de infectologistas e não epidemiológico?
Eduardo Costa: O nosso campo da epidemiologia, de uma maneira surpreendente, ficou abafado nesse período muito longo desde o começo da epidemia. E ele é chave para o controle. Passou-se a ideia de que você (indivíduo) é responsável por tudo. Não pode sair, não pode se virar, não pode ir onde estão os outros, então cada um por si. Muitas instruções jogadas ao ar e muito pouca atividade mais direta dos serviços de saúde no processo, a não ser na atenção médica hospitalar.
Isso atrasou muito na atuação e isso se refletiu também em não ter testagem. Você precisa procurar o contato, fazer o teste, isolar, os que estiveram dentro do período de incubação, deixar em quarentena para ver como vai evoluir. São coisas simples, que pode ser feitas até por pessoal auxiliar. O contato deve estar referenciado perto da casa dele, onde ele adoeceu eventualmente no trabalho dele.
“Você precisa procurar o contato, fazer o teste, isolar, os que estiveram dentro do período de incubação, deixar em quarentena para ver como vai evoluir”
Eu não disputaria com os infectologistas, mas, os infectologistas não têm a mesma visão do controle a nível populacional. Um infectologista pensa muito mais no controle individual porque ele é basicamente um clínico. Ele pensa na prevenção no nível individual, no seu cliente. O epidemiologista pensa na população inteira porque está é o “seu cliente”. Tem que trabalhar com uma ideia coletiva, e essa é a nossa diferença de abordagem.
Luiz Humberto Carrijo: Eu queria jogar essa bola para o dr. Roberto Bittencourt. Quero saber se o sistema de saúde brasileiro tem condições de dar conta da demanda provinda desse modelo de vigilância epidemiológica que seria identificar, rastrear e isolar. O professor Eduardo Costa diz que o SUS dá conta. Você é da mesma opinião e por quê?
Roberto Bittencourt: Eu levantei alguns dados aqui que vou colocar para vocês. Não entrou em campo a atenção básica de saúde. Você perguntou se o SUS daria conta de sustentar uma política de vigilância, um plano de ação com base na vigilância epidemiológica. Eu afirmo de forma categórica que sim. O SUS daria conta de trabalhar um plano com base na vigilância epidemiológica e em inteligência epidemiológica e também com base na inteligência geográfica. Porque eu estou falando isso. A vigilância epidemiológica trabalha com três passos. Primeiro, identifica os casos, nós precisamos identificar os casos. Tem 40 mil casos novos por dia no Brasil. Isso se distribui nos estados de uma forma desigual, mas, está em todo o Brasil. Os municípios sabem os novos casos que existem. Os casos são identificados através dos sintomas ou através do teste do swab, que é o único teste razoável de se fazer neste momento, que vai dizer se a pessoa está ou não doente.
“O SUS daria conta de trabalhar um plano com base na vigilância epidemiológica”
O segundo passo é rastrear os contatos. Cada caso novo gera um contato familiar, um contato profissional que precisa ser rastreado e precisa ser identificado para que se proponha dar o terceiro passo. Qual é o terceiro passo? É fazer a quarentena seletiva, a quarentena individual ou o isolamento social seletivo. A pessoa que está infectada deve ser isolada.
Esses três passos, identificar os casos, rastrear os contatos e isolar os infectados pode ser feito pela atenção básica. A atenção básica pode proporcionar isso. Ela pode proporcionar o acompanhamento dos casos. Nós estamos falando de 42,4 mil unidades básicas de saúde. Praticamente todos os municípios do Brasil têm atenção básica. São 35 mil equipes de saúde da família com uma cobertura de 70% da população brasileira. O SUS tem uma equipe de 300 mil agentes comunitários. Essa força que é a força principal do SUS não entrou em campo ainda. Não entrou com o apoio e o planejamento necessários porque tem muita gente brigando como verdadeiros heróis na atenção básica, lutando contra a pandemia. Esta ação não está sendo o principal elemento para impedir que a pandemia se desenvolva.
“Tem uma equipe de 300 mil agentes comunitários. Essa força que é a força principal do SUS não entrou em campo ainda”
Tem que ponderar que o terceiro passo é um passo difícil. Fazer isolamento social hoje, mesmo que seja o isolamento social das pessoas que estão positivas, dos casos confirmados, uma quarentena bem definida, é muito difícil, pelo quadro da tragédia social que o Brasil vive. Nós somos um dos países mais desiguais do mundo. Então, não é uma solução fácil.
Luiz Humberto Carrijo: Dr. Edilson, o geoprocessamento parece que tem um papel fundamental para que o método seja bem sucedido. Como é que a geografia pode atuar positivamente nessa estratégia, identificando uma pessoa infectada no meio de uma multidão, numa comunidade como no Rio de Janeiro. Nós temos tecnologia para isso?
Edilson de Sousa Bias: O artigo de Eduardo de Resende Francisco, da FGV, trata um tema interessante. Vou citar uma linha do artigo que fala do profissional do presente e do futuro. Ele diz, “o profissional do presente e do futuro não pode prescindir de uma consciência analítica que compreenda as dimensões estatísticas e geográficas”. O profissional vai ter que entender esses conceitos. Se nós analisarmos esse momento, e o professor Roberto fez esse enfoque, o território é a plataforma onde nós estamos verificando as dinâmicas de disseminação da Covid-19 no Brasil e em todo o mundo. Precisamos entender esses processos. Nós precisamos conhecer e entender como isso pode ser feito utilizando mecanismos que nos levem a compreender o processo da dinâmica espacial, porque tudo isso ocorre aonde? Isso ocorre sobre o território. A questão da inteligência aplicada à saúde não é uma coisa nova.
Muita gente pensa que isso apareceu agora, que isso é uma invenção que os geógrafos, que os cartógrafos, que os agrimensores, que as pessoas que estão ligadas mais à aplicação geográfica trazem nesse momento para mostrar a importância do seu trabalho. Mas, a coisa não é assim.
Se nós recordarmos o ano de 1854, em Londres, o médico inglês John Snow, ele conseguiu mostrar que um organismo vivo poderia ser a fonte de disseminação de doenças em um ambiente urbano. Vivia-se naquele momento um grande processo de um cólera, que envolvia vários bairros em Londres. E ele então, utilizando de análises geográficas, evidentemente sem trabalhar com todo o conceito tecnológico que nós temos hoje, mas, utilizando a inteligência geográfica, ele conseguiu demonstrar a correspondência entre as mortes e os graus de poluição que existiam em diversos bairros de Londres.
Esse trabalho do John Snow ficou conhecido nas áreas de estudo de epidemiologia e também nas áreas de análises geográficas como uma das grandes e das primeiras aplicações dentro dessa área. Então vejam, se em 1854 Jonh Snow conseguiu desenvolver tudo isso, identificar e estabelecer uma condição para um melhor controle sanitário da cidade de Londres e também para a manutenção da vida de centenas de milhares de pessoas, o que é que nós não poderíamos fazer hoje, com todo o desenvolvimento tecnológico que já possuímos?
A utilização da inteligência geográfica nos permite trabalhar com metodologias, e essas metodologias associadas às tecnologias que hoje nós dispomos, permitem estruturação de modelos e esses modelos, utilizando dados que podem ser espacializados, eles favorecerão uma análise e o conhecimento de agrupamento dos fenômenos. Tanto o professor Eduardo quanto o professor Roberto fizeram duas considerações que eu achei extremamente pertinente nesse momento. O isolamento às cegas. E isolamento com as diferenças socioeconômicas e até mesmo diferenças de formas de aglomeração de população em função do conteúdo que as cidades permitem com que eles ali passem a conviver.
Para entender e para agir é necessário conhecer primeiro, como a população se aglomera, como ela está situada dentro de uma área urbana, dentro de uma determinada localidade. Como podemos fazer isso? Tudo que existe na natureza terrestre é possível se fazer a localização dela. Essa localização é feita por meio de uma coordenada geográfica. Uma coordenada que pode ser tanto utilizada num plano sexagesimal, trabalhando graus minutos e segundos, que é o que nós conhecemos como coordenadas geográficas, ou então trabalhando num plano cartesiano, trabalhando com coordenadas x e y. Mas, seja em um ou seja em outro, nós temos a definição da posição de um determinado elemento, seja ele o que for, uma pessoa, uma residência, um hospital, uma escola, tudo aquilo sobre a superfície terrestre. Se eu posso localizar isso, eu posso sobrepor, por exemplo, com a parte de exames que podem ser feitos, testes que podem ser feitos. Eu posso fazer a localização de onde os testes me mostram o posicionamento de pessoas que estão apresentando ou que já apresentaram esse problema.
“Eu posso fazer a localização de onde os testes me mostram o posicionamento de pessoas que estão apresentando ou que já apresentaram esse problema”
Com base nisso, eu começo a fazer agrupamentos e através desses agrupamentos, eu posso estabelecer medidas, planos de ação, protocolos para a ação. Então eu deixo de agir, como o Roberto diz, eu deixo de agir num isolamento às cegas para agir num isolamento com consciência de onde o elemento está acontecendo. Isso é sumamente importante neste momento. Utilizar a inteligência para auxiliar a tomada de decisão. É conhecer onde se deve atuar, para não se agir às cegas E, com todo o conjunto de dados que nós temos, e podemos obter isso, e com o ferramental tecnológico de hoje, esse tipo de análise é extremamente possível de se realizar.
Agora, é evidente que é necessário que os dados eles cheguem para que as ações possam então ser estabelecidas, porque sem o dado, é impossível se fazer uma análise dessa natureza. Mas, o conceito de inteligência geográfica neste momento ele é a coisa mais importante para que a ação, que a inteligência epidemiológica possa agir dentro de um contexto de controle. Sem isso nós vamos ficar dando tiros às cegas sem conseguir atingir ninguém porque nós não sabemos efetivamente onde nós temos e devemos agir.
Luiz Humberto Carrijo: Já falamos de inteligência geográfica, de inteligência epidemiológica. E a inteligência matemática? Ela pode ser usada para o combate ao coronavírus? É possível, pelos modelos matemáticos, prever quando essa curva de mortalidade, de mais de mil pessoas por dia no Brasil, vai cair ou vai se estabilizar?
Paulo Ângelo: Os modelos matemáticos eles pressupõem algumas coisas como hipótese. Então, por exemplo, o modelo clássico que a gente utiliza, ele pressupõe um homogeneidade dos contatos entre as pessoas, e isso não ocorre na vida. Na geografia também não é uniforme. E também como as pessoas vivem. Têm crianças por exemplo que têm alto nível de contatos e crianças que já vivem praticamente em isolamento. Quando tem uma população relativamente pequena de uma cidade, como Brasília por exemplo, você faz uma aproximação disso com o modelo homogêneo, com contatos homogêneos, isso dá um certo delay, mas a gente consegue ter uma aproximação melhor.
Quando você pega isso para uma população de um país como o Brasil, onde nós temos áreas extremamente urbanizadas e você tem o interior, áreas rurais, que já têm naturalmente um índice de contato bem menor, então, os modelos que têm sido divulgados desde o início da pandemia, como todo mundo querendo saber quando isso acaba quando será o pico. Isso geralmente vai sendo empurrado para frente. O pessoal dizia o pico vai ser em abril, depois maio e assim vai.
O Brasil está com um platô difícil de ceder. Isso já era esperado. Eu já tinha essa expectativa desde o início. No Brasil você teve um crescimento da epidemia no centros urbanos, o pessoal que chegou de fora. Teve a interferência dos governos, alterando as regras, fechando comércio, fechando escolas e isso mudou os parâmetros de entradas no modelo, mas, mesmo assim você teve depois um processo de interiorização.
Então, nós temos hoje locais que já estão praticamente no pico ou já estão descendo, regredindo, e você tem locais no interior que estão começando agora ou talvez nem começaram ainda. Esse retardo dá essa tendência de ter um platô que vai caindo gradualmente e isso demora muito tempo para acabar. Esse fato nós vimos lá atrás quando nós publicamos a nota técnica 01 do Observatório, e já citamos esses pontos especificamente. Veio junto com a questão da vigilância epidemiológica e geográfica que citaram antes de mim. Lá atrás nós vimos que essa epidemia ia demorar muito, até a vacina, provavelmente. Não aconteceu como os gestores pensavam, que depois dos controles, ela começaria a cair, como aconteceu na China que teve um controle mais rigoroso e, depois de dois três meses, acaba e aí você pode retirar os controles.
Citamos lá atrás que esse tipo de estratégia não vai funcionar. Isso nós falamos há alguns meses atrás. Porque você não vai conseguir resistir, não vai conseguir ceder a epidemia em dois ou três meses e você não consegue manter essas medidas, essas que eles tomaram, por um longo período. Nós estávamos defendendo medidas sustentáveis. Você precisava de medidas que você conseguisse sustentar por um ano e meio se for necessário.
Já de encontro ao que o pessoal vem falando, mesmo com todas as medidas tomadas pelo governo do DF a taxa de reprodução ficou acima de 1, mostrando a ineficiência dessas medidas. Ou seja, a epidemia continuava avançando mesmo com as medidas tomadas e que não são sustentáveis. São medidas caras. E em algum momento, o governo vai ter que liberar as medidas e aí a gente vai perder todo o custo, todo o investimento com essas medidas, porque você vai voltar para a curva inicial. Só foi útil para você melhorar a infraestrutura hospitalar. Mas você não foi efetivo do ponto de vista epidemiológico.
“Tem saída. É a saída lá do John Snow”
Tem saída. É a saída lá do John Snow, bem citada aqui pelo professor Edilson, falado também pelo professor Eduardo e Roberto. A solução é aquela. Nós temos o caminho correto que é fazer vigilância epidemiológica. É ir em cima de onde estão os casos e tratando eles e isolando eles. Essa é a forma mais eficiente do ponto de vista matemático, é a forma mais eficiente do ponto de vista financeiro, de qualquer lado que você esteja trabalhando, tanto do ponto de vista do controle de óbitos quanto do financeiro e social. Sai mais barato contratar pessoal de vigilância epidemiológica do que pessoal de UTI. Quando chega na UTI a taxa de mortalidade é de 50%.
“A saída é vigilância epidemiológica usando inteligência”
A saída é vigilância epidemiológica usando inteligência. Vou dar um exemplo. Brasília é altamente urbana. Mas temos regiões que são rurais. Brazlândia por exemplo. Produz mais de 60% do morango nacional. Produz mais de 90% do ovo consumido no DF. Então, é uma região agrícola. Quando veio o primeiro decreto de fechamento de escolas, fechamento de comércio, Brazlândia não tinha nenhum caso e ficou vários meses sem nenhum caso e no entanto aquela população toda estava parada. Isso ilustra bem o que se entende por inteligência epidemiológica. Localizar os focos reais e ir fazer contenção ali.
Uma coisa que por muito tempo eu fiquei me perguntando, por que nós estamos passando por isso, por esse dilema, sendo que a epidemiologia é um negócio muito antigo. John Snow naquela época não tinha nem caneta esferográfica, fez todo esse trabalho provavelmente usando pena, e já tinha um mapa ali na sua mão e já conseguia fazer uma inteligência epidemiológica. E hoje nós temos celular, cada um carrega um computador no bolso, nós temos tecnologia que leva o homem na lua, temos informação fácil hoje e no entanto a gente não consegue fazer o básico de vigilância epidemiológica.
Os governos vêm fazendo os testes e não perguntam onde ele pegou essa doença. Eu gosto desse pergunta porque muitos vão saber dizer. Eu acho que foi na casa da minha tia porque ela testou positivo e eu fui atá lá. Eu acho que foi no serviço porque tem um colega que estava com Covid. Você tem um custo alto para fazer um teste e a parte mais barata que é perguntar para a pessoa, você não faz. Você faz um cruzamento desses dados você vai achar os focos.
“Os governos vêm fazendo os testes e não perguntam onde ele pegou essa doença”
Vimos também que todas as regiões que tinham mais de 90 casos eram servidas pelo Metrô. Vimos também que 6 a 8% dos óbitos eram de profissionais do transporte público. Aí eu pergunto, quantos são passageiros? Você vê como a inteligência poderia estar sendo aplicada de forma eficiente nesse processo todo. Pelos nossos cálculos Brasília está passando pelo pico agora. No Brasil, por conta da interiorização, o platô vai baixar lentamente.
Luiz Humberto Carrijo: Uma pergunta para todos. Se caso vocês fizessem parte de ma força tarefa e esse plano de ação estivesse sobre suas mesas, como, dentro da especialidade de cada um de vocês, como seria aplicado esse plano de ação de combate à pandemia?
Eduardo Costa: É muito bom falarem com um epidemiologista e falar em John Snow. Quando eu estava estudando na Inglaterra uma das coisas que eu quis fazer foi ir lá no John Snow Pub, assinei o livro, etc. O John Snow era um médico anestesista. Ele era o anestesista da Rainha da Inglaterra, da Rainha Vitória, mas ele tinha aquele espírito de curiosidade e tal. Estudou o modo de transmissão do cólera e se transforma o fundador da epidemiologia.
Vou falar da gripe espanhola. Ela foi estudada por um grupo que publicou, em 2007 ou 2008, e tem uma pessoa do grupo que assinou também o estudo do Imperial College sobre o novo coronavírus. Eles estudaram o que aconteceu nas cidades americanas durante e gripe espanhola. Eles só tinham um método que era exatamente o isolamento, parar as atividades. Na época não estava elaborado na saúde pública a investigação epidemiológica, ou de serviços. Então, a única avaliação que existe do que foi feito para tentar controlar a epidemia de gripe espanhola nos EUA foi uma avaliação de ações de isolamento, mas mesmo assim não era discriminado no país inteiro, era em cidades só. Quando acontecia lá, as cidades fechavam e tal. Em geral ninguém aguentou chegar a dois meses de fechamento. Aí começavam a ter problemas de arrombamentos.
A supressão não foi feita por este tipo de isolamento. Em nenhum lugar onde houve isolamento sozinho teve supressão da transmissão. Houve o esgotamento de susceptíveis. A gripe espanhola tinha uma taxa de transmissão de 1 para 21, ou seja, seis vezes maior do que o do coronavírus. O negócio pegava numa onda que não se segurava. Você tinha uma situação de esgotarem os susceptíveis e depois teve uma segunda onda e, na verdade, depois desapareceu.
A gente não sabe porque desapareceu, mas, certamente, pelo esgotamento porque ela tinha uma alta letalidade também, o vírus jogava contra ele. Ia faltar gente para eles infectarem. É possível também que possa ter havido uma mudança estrutural no vírus, que tenha dado uma mudança e desaparece aquelas cepas mais violentas e ficam outras mais amenizadas. São transformações biológicas que vão ocorrendo.
Nos países asiáticos eles fizeram um controle e o isolamento das pessoas era mais forte. Na Coreia do Sul o fechamento era maior de fronteira para não entrar. Aquela parte comercial, não se sabia se transmitia através de objetos, se era importante. Aí tinha que parar o comércio, a China não queria ser responsável pelo desastre no mundo, então fecha, segura tudo, não exporta.
Mas a ação estava focada nos lugares, especialmente em Wuhan, onde foi o foco. Nos outros foi fácil pegar os casos e conter. Ali dentro foi o palco, foi naquele território, como diria o Edilson, que as coisas se decidiram. Ali foi decidido o destino da pandemia na China, mesmo não sabendo nada sobre o vírus, não se sabia o que ia acontecer. Eles dizem lá, nós usamos a epidemiologia clássica.
“Nos países asiáticos eles fizeram um controle junto e o isolamento das pessoas era mais forte”
A epidemiologia clássica tem outros ensinamentos que não tinha no início do século passado. Ela tem um ensinamento fundamental da única vez que o homem decidiu acabar com um vírus, suprimir da face da terra, que foi a campanha da erradicação da varíola. A erradicação da varíola, uma doença milenar, não se sabe há quantas centenas de anos que ela estava por aí. Sempre havia uma imunidade já. A taxa de transmissão não dava mais do que um para cinco. E era estável. Tinha facilidade de diagnóstico. A perseguição de caso era mais fácil, olhou para a pessoa infectada já se sabia o diagnóstico. Por isso que o que você falou Paulo é muito importante.
Nós queríamos fazer o rastreamento. Era uma novidade. A vigilância epidemiológica como disciplina data da campanha da erradicação da varíola. Em alguns países deu para fazer, mas chegou na Índia, onde tinham 600 milhões de habitantes, fazer campanha de vacinação não resolvia, é como isolamento indiscriminado, sempre tem gente que não vai. Sempre tem gente que você não encontra e quando passava três quatro anos, já tinham nascido mais 5 milhões de indianozinhos novos. Você não conseguia nunca erradicar.
Aí um grupo desenvolveu, com a liderança de um grande epidemiologista americano, que é o Willian Foege, desenvolveu um método que é esse que a gente chama de vigilância, que é simplesmente rastrear os casos de varíola no meio daquilo lá. Onde tem um caso, tem alguém que passou para ele. A pergunta de como é que eu vou descobrir é essa aí que você Paulo, falou. Se você perguntar de quem você pegou, ele responde. Você está absolutamente certo. É facílimo fazer rastreamento. Não tem nenhum mistério. Tem uma sofisticação aqui e ali, mas a coisa básica é essa. É uma pessoa desarmada com uma foto de uma criança doente por exemplo, no caso da varíola, perguntando, você já viu isso? Você conhece algum caso? isso se consolidou como um instrumento capaz de erradicar. A vacinação apenas não é capaz de erradicar.
Para mim surpreendeu muito a pouca ênfase dada pela OMS a esses aspectos, embora ela já conhecesse, mas seguiu muito essa linha europeia, que ficou muito no isolamento rápido, de qualquer modo. E os países que estão vencendo, estão vencendo é por causa da combinação dos dois. No primeiro momento, não tinha o que fazer, tinha que fazer isso, tinha que organizar os leitos, tinha que organizar equipes de vigilância. Agora, você vê, como disse o Roberto, 300 mil agentes de saúde no Brasil para 40 mil casos por dia. Com este número, você suprime isso com maior facilidade.
Não estou preocupado com as tendências matemáticas. Só sei o seguinte, nós temos uma obrigação ética, assim como o médico e outros profissionais do front, quando o paciente está mal, você sabe que uma proporção grande deles vai morrer e você não consegue fazer nada apesar de aplicar tudo o que você sabe e você faz.
Por outro lado tem um monte de gente que pode fazer muita coisa, mas acham que é muito difícil. Nós estamos nos imobilizando por nós mesmos. E com esses instrumentos que o Edilson falou, você identifica as pessoas pelo CPF. Você tem um programinha que diz qual é a concentração de casos nos últimos 20 dias, quantos casos ocorreram, e cada CPF do Brasil. Eu tenho que complicar para as pessoas pensarem que é alguma coisa importante.
“Nós estamos nos imobilizando por nós mesmos. E com esses instrumentos que o Edilson falou, você identifica as pessoas pelo CPF”
Se eu tiver controle de 50% dos casos, se eu for rápido, realmente partir com a investigação eu consigo chegar no foco. O caso foi diagnosticado, você partir imediatamente no mesmo dia ou em até um dia, se você for atrás dos contatos, você suprime a transmissão sem isolamento geral.
Por que que uns modelos são olhados e outros não? Foi um veio que entrou, de uma pessoa com prestígio lá na Europa e a gente absorve essas coisas sem parar direito para ver. Eu quero saber agora o que vai acontecer com o sistema epidemiológico brasileiro. Vamos ver se conseguimos fazer essa máquina funcionar quando precisar. Se nós seremos capazes de nos organizar para não cair na mesmo ladainha. Mergulhar nas suas próprias coisas, como o Edilson falou, dentro do seu próprio país ou sempre tem que estar copiando e atrasado.
Edilson de Sousa Bias: É fundamental se ter o registro de todos os fatos, de todos os testes para que se possa a partir do registro, a parte da análise. A outra coisa é que esses dados têm que estar disponíveis de uma forma que eles possam ser analisados adequadamente. Muitas vezes isso não é garantido. A qualidade do dado também não é garantida, prejudicando a análise do fenômeno. Com dados adequados pode-se entender como está andando o processo.
Paulo Ângelo: Num certo período eu pensei que não tínhamos epidemiologistas no Brasil, mas hoje aqui eu percebo que nós temos excelentes epidemiologistas no Brasil. E, por que que nós chegamos nessa situação. Eu imagino que há algo diferente nessa epidemia em relação às anteriores. É a informação. Todo mundo está acompanhando essa epidemia. Isso não ocorria antes. A população vivia a sua vida e o governo tomava as decisões. Minha impressão é que a maioria dos governos no geral adotaram a imunização de grupo. Isso é uma gripe, deixa entrar, vai morrer quem tiver que morrer e nós vamos ter uma imunização. Atinge o pico, alguns morrem, depois cai e fica por isso mesmo e a vida segue. Essa estratégia é que está errada. A população decidiu que não queria fazer parte do rebanho. A população começou a cobrar e começou essa crise. Temos que mudar a estratégia.
Roberto Bitencourt: O único paralelo com o Brasil hoje é os EUA. A estratégia de imunização de rebanho é uma tragédia humanitária. Por outro lado a oposição a isso foi para o outro extremo. Qual foi o outro extremo? Isolamento geral e irrestrito. Todo mundo tem que ficar em casa. As duas posições estão erradas. A imunidade de rebanho é inaceitável do ponto de vista de qualquer ângulo que se queira trabalhar. Inclusive no ângulo econômico, porque isso arrasa a economia de um país e, por outro lado, ficar em casa o tempo todo durante 100 dias também é uma estratégia que a população negou. Então estamos numa espécie de imunidade de rebanho a conta gotas e o platô é expressão matemática disso.
Fonte: Hora do Povo
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