Política de testagem teria reduzido mortes entre mais vulneráveis

Estudo da Universidade Federal de Pelotas estima que 3,8% dos brasileiros já foram infectados; para epidemiologista Pedro Hallal, isso indica que estamos longe de pandemia acabar naturalmente no país. “Esperar imunidade de rebanho ‘é absurdo e antiético”

Pedro Hallal critica imunidade de rebanho e defende testagem da população

Um dos maiores estudos já feitos até agora no país para descobrir o tamanho real da pandemia do novo coronavírus concluiu que 3,8% dos brasileiros já foram infectados. Isso significa que muito mais gente teve covid-19 do que mostram as estatísticas oficiais, que são distorcidas pelo baixo número de testes realizados. Apesar disso, o epidemiologista Pedro Hallal, reitor da UFPel e coordenador da pesquisa critica a proposta de “imunização por rebanho” defendida por Bolsonaro, por considerar este número muito baixo.

Ele também defende que a política de testagem da população teria evitado uma série de dificuldades que estamos enfrentando. A ausência dela, para ele, confirma o fracasso do governo em controlar a pandemia. O raciocínio é polêmico entre epidemiologistas que consideram inviável a aplicação de testes numa proporção muito alta da população. O teste rápido que verifica presença de anticorpos se mostrou muito ineficiente, segundo alguns médicos, e o teste usado para diagnóstico é caro e demorado.

A base do iceberg

Os cientistas do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) fizeram testes para detectar anticorpos contra o coronavírus em 89.397 pessoas de 133 cidades de vários Estados e entrevistas para entender como o vírus afeta diferentes classes sociais e grupos étnicos.

A importância da pesquisa está no fato de as estatísticas oficiais representarem a ponta de um iceberg de uma doença completamente desconhecida da ciência. A pesquisa permite olhar a parte do iceberg que está submersa, dizem os autores, que são a pessoas que não estão buscando o serviço de saúde, mas que também estão sendo infectadas e infectando outras pessoas.

Apesar disso, a pesquisa pode não continuar, pois o governo ignorou os resultados e silenciou após sua apresentação bem sucedida das três fases previstas. “No meio de uma pandemia, o normal seria prosseguir, mas o ministério silenciou sobre o assunto. Provavelmente, não há interesse em manter a pesquisa”, lamentou.

Segundo o reitor, a resposta protocolar do Ministério da Saúde, de que a pesquisa vai continuar, mas talvez sem a UFPel, pode ter viés ideológico, devido a críticas que ele fez às políticas do Ministério da Educação, que bloqueou recursos orçamentários da universidade. “Mas sou um gestor que defende a universidade. Sempre que fui chamado pelo ministério — e, aliás, fui chamado para fazer essa pesquisa pelo governo atual —, me coloquei à disposição”.

Ele defende a isenção e rigor científico do estudo, mostrando que ele tem artigos publicados nas melhores revistas científicas do mundo. “Mas parece que o ministério acha que é melhor seguir com o trabalho com uma universidade com a qual eles têm um vínculo ideológico mais próximo”, sugeriu, defendendo que a pesquisa continue, não importa como. 

As perdas no rebanho

A investigação indica que o Brasil está longe de atingir a chamada imunidade de rebanho. Isso ocorre quando uma parcela grande o suficiente da população foi infectada naturalmente e desenvolveu uma defesa contra o vírus. A doença não consegue se espalhar, porque a maioria das pessoas é imune. Esse patamar é estimado por especialistas em torno de 60% a 70%.

Segundo Hallal daria pra falar em imunidade de rebanho se fosse uma doença que não mate ninguém. A imunidade de rebanho só acontece com uma vacina — que não existe — ou quando muita gente adquire naturalmente anticorpos.

“Se hoje já morreram mais de 76 mil pessoas, seria ético esperar contaminar 60% a 70% da população e deixar morrer quase 1 milhão para então atingir a imunidade de rebanho? É óbvio que não. A ideia de mirar a imunidade de rebanho como uma política de saúde é absurda, mal pensada e antiética”.

Ele ressalta que, se fosse confirmada a nova teoria da imunidade cruzada, seria “espetacular”. Seria mais possível chegar perto da imunidade de rebanho se uma parcela das pessoas tivesse imunidade porque pegou covid-19 e outra parcela teria imunidade porque já teve exposição a outros coronavírus. Essa teoria ganha força por considerar que populações asiáticas, por exemplo, têm apresentado menos contágio e mortes por, supostamente, já terem tido contato com variantes de coronavírus.

Um dos poucos países a buscar a imunidade de rebanho — e a abrir mão de medidas drásticas de isolamento social — foi a Suécia, citada pelo presidente Jair Bolsonaro, em maio, como exemplo a ser seguido. O Reino Unido cogitou seguir essa linha, mas as projeções de que isso levaria a milhares de mortes fizeram o governo recuar. Até agora, em comparação aos vizinhos nórdicos, a Suécia teve até sete vezes mais mortes e o declínio econômico foi equivalente ao de quem fechou comércios e escolas (já que habitantes evitaram circular nas ruas). Mas o número de mortes tem caído no país, o que reacendeu o debate sobre imunidade coletiva.

O estudo da UFPel também indica qual é o tamanho da subnotificação de casos no país: 3,8% da população equivale a 8 milhões de pessoas infectadas até 24 de junho, quando a pesquisa acabou.

De acordo com o Ministério da Saúde, havia 1,19 milhão de casos confirmados na mesma data. Ou seja, o número real de pessoas que contraíram o vírus seria seis vezes maior.

Fracasso evidente

Esse trabalho mostra ainda que foram mais contaminados brasileiros amarelos (2,1%), pretos (2,5%), pardos (3,1%), e indígenas (5,4%) do que brancos (1,1%) e, que quanto mais pobre é uma pessoa, maior é o risco de ela ter covid-19. “Nesta parte da população, as famílias são maiores, e as casas são menores. Então, a aglomeração é maior. E os pobres infelizmente acabam tendo que sair mais para a rua para conseguir dinheiro para se sustentar”.

Para Hallal, isso indica que a política de combate à pandemia “fracassou”. O raciocínio dele se explica pela expectativa que já havia de que o contágio seria pior quando saísse dos grupos socioeconômicos mais altos para os mais baixos. Quando a doença estava restrita entre os mais ricos, o país poderia ter feito uma política mais rigorosa de testagem para evitar a disseminação.

“Os indígenas tem cinco vezes mais risco de se infectar em comparação com os brancos”, observa ele, revelando que nem uma população mais isolada, portanto mais fácil de prevenir, e sabidamente mais vulnerável a epidemias foi protegida. O epidemiologista explica que os indígenas são mais propensos a pegar o vírus porque teriam menos imunidade cruzada. Mas, na prática, ele acredita numa explicação mais simples, que, havendo uma pessoa infectada, há na forma de organização dos grupos indígenas mais contato entre as pessoas.

“Talvez o presidente não tenha noção do impacto que ele tem. A maioria das pessoas votou no Bolsonaro. Quando ele fala que é só uma gripezinha, ele está dizendo para 50 milhões de brasileiros para não dar bola para esse problema”. Essa postura negacionista, na opinião do médico, teve uma influência que se soma à falta de políticas claras de saúde e a um Ministério da Saúde em constante transição de comando. “No momento em que o país mais precisa, não temos um ministro da Saúde”.

Flexibilização desafia o vírus

Outro resultado da pesquisa que confirma uma expectativa é de que a taxa de letalidade do vírus no país seria na realidade bem menor, cerca de 1% em vez dos 3,8% calculados hoje com base na relação entre casos e mortes oficiais.

A prevalência do vírus varia muito entre as cidades do país, segundo a pesquisa: entre 0% e 26,4% (em Sobral, no Ceará). As regiões Norte (8%) e Nordeste (5,1%) tiveram proporcionalmente mais testes positivos do que Sudeste (1,1%), Centro-Oeste (0,9%) e Sul (0,4%).

É nestas últimas duas regiões que o vírus mais avança hoje, quase cinco meses após o primeiro caso confirmado. A proposta de Hallal para mudar isso não é nada popular, como ele reconhece. “É hora de fazer um lockdown rigoroso no Sul e no Centro-Oeste.” Ele discorda que o isolamento social tenha começado cedo naquelas regiões, pois ele considera que muitas vidas foram salvas e foi possível conter um avanço ainda maior do que o que se observa agora.

Apesar da proposta ser impopular no país do abandono da economia, ele observa que a Europa ainda segue tendo casos, porque não há vacina, “mas não teve uma onda nova descontrolada”. “Isso é a prova de que, se a gente consegue baixar a curva, mesmo que a epidemia volte, ela não vai ter a mesma intensidade”, diz ele como argumento para garantir uma quarentena mais rigorosa agora, em estados com descontrole da pandemia.

O cientista analisa que o maior erro do Brasil, como de outros países, foi nunca ter tido uma política de testagem ampla e maciça. “Essa política não é para contar quantos doentes temos, é para isolar os positivos e testar seus contatos”. Mas o Brasil também comete erros inéditos no mundo, na opinião dele. Nenhum outro lugar do mundo reabriu antes da curva estar caindo. “Nenhum outro lugar fez algo tão equivocado. O Brasil parece que está desafiando o vírus, porque a gente reabre as cidades quando estamos no pico ou próximo do pico”.

No entanto, essa prática está ocorrendo porque o Brasil não fez os testes necessários, não apoiou financeiramente indivíduos e empresas para garantir um lockdown rigoroso, não foi rápido no fornecimento de EPIs para a linha de frente do combate à pandemia, nem orientou a população adequadamente. “Se a gente tivesse feito tudo certo, era para estarmos hoje reabrindo uma parte da região Norte, onde já passou o pior, e com planos bem avançados para começar a reabrir no Nordeste e no Sudeste, onde a pandemia está começando a diminuir. E estaríamos elaborando planos para o Sul e o Centro-Oeste, focando na assistência da população. Mas a gente basicamente reabriu todas as regiões ao mesmo tempo”, lamenta.

Alto contágio no Norte

Hallal diz que entre os resultados surpreendentes revelados pela pesquisa está a prevalência tão alta do contágio no Norte, onde a pandemia chegou cedo pela relação entre Zona Franca e China. “Teve lugares em que foi acima de 20%. Nas cidades de Breves, Boa Vista, Sobral… São números muito altos, que a gente não encontrou praticamente em lugar nenhum do mundo”.

Outro resultado que salta aos olhos, segundo ele, é a diferença de seis vezes mais entre a estimativa de casos do estudo e o que aparece na estatística oficial. “A mídia está noticiando que o Brasil chegou a 2 milhões de casos, mas minha leitura é que o Brasil já tem entre 10 milhões e 14 milhões de casos. A gente se preocupa e se assusta com essa diferença gritante”.

Perda de olfato e paladar

Para ele, um dos resultados mais importantes do estudo é que os assintomáticos são muito menos do que se imaginava, ou seja, quem pegou o vírus apresentou sintomas. Ele deu o exemplo da perda de olfato e paladar como um sintoma que a pesquisa mostrou que 60% das pessoas positivas tiveram. “Isso é diferente de tosse, que qualquer pessoa pode ter de vez em quando. A perda de olfato e paladar é um sintoma muito específico”.

Ele acredita que, se o sistema de saúde soubesse antes que tanta gente ia ter isso, seria possível montar um sistema de vigilância por telefone, nas unidades de saúde, com maior divulgação na mídia. Assim, quem sentisse um sintoma tão específico deveria ir imediatamente fazer teste e informar as dez pessoas com quem mais teve contato naquele momento.

Hallal mostra que dizer que a maior parte das pessoas é assintomática se mostrou um erro, pois o percentual de pessoas que não relatou nenhum sintoma foi de só 11%. “O que é verdade é que a maior parte das pessoas têm sintomas leves e não precisam ir para o hospital, mas a maioria das pessoas vai ter algum sintoma”, diz ele, argumentando que uma política de testagem teria mostrado esse resultado.

Edição de entrevista publicada na BBC News Brasil.

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