Verdade ou consequência?

Da mesma forma que alguém pode pensar que a morte de Bolsonaro é justificável em função de suas consequências positivas, o próprio Bolsonaro, dentro do mesmo paradigma consequencialista, teria o direito de desejar (e, pior, o poder de agir para) a morte de todos os “comunistas” (seja lá o que esse termo signifique).

Ilustração: Aroeira

Em artigo veiculado na Folha na quarta-feira (8), intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”, o colunista Hélio Schwartsman tenta mostrar, com base no paradigma chamado consequencialismo, por que não necessariamente devemos tomar como antiética a atitude de desejar a morte de outrem.

Essa abordagem vincula-se mais estreitamente à tradição empirista-utilitarista anglo-saxã. Em linhas gerais, busca a justificação moral das ações em seus resultados, que devem ser os melhores possíveis. Nessa perspectiva, uma ação é eticamente justificável se permite uma avaliação objetiva de suas finalidades, por meio do exame das consequências que dela resultam e do número de pessoas que são beneficiadas ou prejudicadas.

O consequencialismo é um ponto de vista razoável. Possui, contudo, um calcanhar de aquiles que é o mesmo de todo o empirismo: considerar que “fatos” ou “resultados” podem ter seus significados ou valores aquilatados em si mesmos, independentemente dos pressupostos de quem julga. Assim, se as atitudes devem ser avaliadas em função de seus resultados, fica a pergunta: quem julga se as consequências são boas ou más? Da mesma forma que os fatos não “são” em si mesmos, independentemente do sujeito que os observa e interpreta, também não há consequências boas ou ruins em si mesmas. Elas dependem do arcabouço axiológico de quem julga.

O que o consequencialismo tenta é restringir o debate ético a uma espécie de “cálculo” de resultados para a tomada de decisões. Porém, na esfera moral nunca haverá uma contabilidade precisa a partir da qual podemos prever que um ato trará consequências majoritariamente benéficas. De fato, há um antigo desejo de conceber as questões morais sob a ótica de uma racionalidade matemática. Esse objetivo move, inclusive, alguns experimentos em Inteligência Artificial.

É o caso do dilema do bonde. Esse experimento ético, idealizado pela filósofa Philippa Foot como crítica do utilitarismo, vem sendo usado, em direção oposta, para aprimorar o sistema de veículos que se autodirigem, em especial após o primeiro acidente fatal nos EUA. Se considerarmos que o julgamento ético pode ser conduzido por avaliações utilitaristas, então podemos justificar as decisões e escolhas adotadas por uma máquina. Porém, em nossa compreensão, a ética jamais se deixa reduzir a relações de causa e efeito expressas por meio de parâmetros lógico-matemáticos irrecusáveis.

Por outro lado, embora esse procedimento pareça conferir aparência de “objetividade” ao julgamento de condutas, ele corre o risco de, na prática, abrir uma avenida para o relativismo, podendo mesmo resultar, paradoxalmente, no mais completo oportunismo ético. Afinal, da mesma forma que alguém pode pensar que a morte de Bolsonaro é justificável em função de suas consequências positivas, o próprio Bolsonaro, dentro do mesmo paradigma consequencialista, teria o direito de desejar (e, pior, o poder de agir para) a morte de todos os “comunistas” (seja lá o que esse termo signifique), pois isso poderia ser por ele considerado ótimo para, digamos, a manutenção das sagradas tradições, da livre iniciativa e do progresso da nação.

Vemos, assim, que uma ética pautada na verificação de resultados, se deixa o campo aberto para quem deseja avaliar os benefícios da eventual morte de Bolsonaro, o deixa também para que o próprio Bolsonaro faça a mesma “avaliação”, segundo seus próprios pressupostos. Este é um risco que não se corre com éticas deontológicas como a de Kant, as quais postulam princípios universais de conduta.

O sistema de Kant chama-se “transcendental” porque não se ocupa de objetos da experiência, mas dos conceitos apriorísticos anteriores à própria experiência e que a condicionam. Essa filosofia não baseia os julgamentos morais nas consequências das ações. O pensador alemão tem como ponto de partida a ideia de dever, imposto por leis morais racionais existentes per si. Kant deduz seus conceitos de forma pura, extraindo princípios de princípios, em busca do ideal supremo da moralidade, que ele encontra no imperativo categórico ou lei moral universal.

O imperativo categórico se impõe como necessário por ser um fim em si mesmo. Exprime-se por meio de princípios apodíticos, a saber, evidentes e autodemonstráveis. Kant sempre concebe a avaliação de máximas de conduta à luz da fórmula universal colocada pela lei moral, a saber, “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.

Essa lei moral é portadora de uma necessidade racional absoluta e incondicionada. Qualquer regra de conduta que se queira válida precisa espelhar-se na lei moral universal. Se um preceito não pode ser tomado como regra universal, então a conduta que ele enseja conduz a paradoxos insolúveis. Kant cita entre seus exemplos o do homem que, para conseguir um empréstimo, promete pagá-lo, embora saiba que isso não ocorrerá. Se essa conduta fosse tomada como regra universal, isso levaria ao paroxismo, resultando na inviabilidade do sistema de crédito e, mais, de todo e qualquer compromisso.

Quando nos fala das consequências deletérias da mentira, em meio a outros exemplos de atitudes moralmente rebaixadas, Kant nos adverte para o fato de que, embora possamos erigir tais ações em princípios de nossa conduta pessoal, jamais poderíamos pretender que se tornassem normas de ação universal. Se o tipo de conduta que resulta no falseamento ou na distorção pudesse ser tomado como lei universal da racionalidade, isso nos conduziria a paradoxos insolúveis: a informação se converteria no seu oposto, acarretando a implosão do próprio intercâmbio de ideias, incluindo o de ideias falsas. Em outras palavras, a própria circulação de mentiras e falsificações só é possível porque a falsidade não pode ser postulada como regra universal.

Ora, o mesmo podemos dizer de regras de conduta pautadas no cômputo de resultados circunstanciais, avaliados a partir de interesses particulares. Tome-se, por exemplo, uma máxima como: Desejareis publicamente a morte de quem, com base em uma tua avaliação de resultados, fará bem em desaparecer do mundo. Se pensar dessa maneira fosse a regra geral, instalar-se-ia entre as pessoas um tal clima de desconfiança e mal-estar que a vida se tornaria insuportável.

Vê-se como o bem moral, na perspectiva kantiana, fundamenta-se em uma lei racional absoluta, sem quaisquer condicionamentos externos oferecidos pelas circunstâncias e inclinações particulares oriundas da experiência sensível. Trata-se de uma ética de grande potencial humanista, pautada por valores universalizantes. É possível que o paradigma kantiano — ainda mais em tempos de neofascismo e ameaças totalitárias — se apresente mais prenhe de potencial civilizatório.

No entanto, independentemente de embasarmos nossos julgamentos morais em alguma “verdade transcendental” ou nas consequências de nossas ações, o fato é que o debate aqui colocado não pode ser simplesmente bloqueado – ainda mais com base em interpretações enviesadas da lei. Embora possamos discordar dos pressupostos morais adotados por Schwartsman, essa discordância deve dar margem a um debate racional. Este parte do reconhecimento de que o jornalista tem o direito de defender a morte de quem quer que seja, desde que estribado em arcabouço teórico-filosófico sustentável. Garantir a possibilidade de sustentação racional dos argumentos é a porta de entrada da civilização. Tudo o mais é a barbárie da força bruta, das fake news e do anti-humanismo.

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