Advogados defendem prisão domiciliar para presos em risco de covid-19
Manter presas pessoas de grupos de risco da covid-19 é ‘impor sentença de morte’. “Nenhum juiz tem esse direito”, adverte advogada de coletivo que pede aplicação da decisão que favoreceu Fabrício Queiroz e sua mulher
Publicado 14/07/2020 18:34
O número de infectados pela covid-19 no sistema prisional brasileiro chegou a 10.484, de acordo com monitoramento semanal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Divulgado no dia 6, o único levantamento em escala nacional aponta crescimento de 110% nos últimos 30 dias. E de 800% entre maio e junho. Uma constante que não para de crescer, inclusive no sistema socioeducativo, no qual os casos confirmados saltaram de 1.469 para 1.815 em uma semana.
Ao menos 126 óbitos em decorrência do coronavírus já foram registrados nos presídios, além de 14 mortes no sistema socioeducativo. Mas, com indícios de subnotificação e baixa testagem, o que os dados oficiais não revelam é que a situação atrás dos muros pode ser ainda mais grave. “Temos uma situação preocupante se alastrando”, alerta a advogada criminalista Isabela Labre, em entrevista à Rádio Brasil Atual.
“É impossível se isolar nos presídios, isso tem que ficar claro. Nós temos uma taxa de superlotação de 166% no Brasil”, acrescenta Isabela. “O próprio STF já reconheceu o ‘estado de coisas inconstitucional’ e que o nosso sistema não garante condições mínimas de existência e saúde. Alguns presídios não têm água para a pessoa se cuidar, fazer higiene. Como que a gente vai impedir o coronavírus nessa situação trágica?”, argumenta.
Isonomia e igualdade
Isabela é também integrante do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu). Na semana passada, o coletivo impetrou habeas corpus coletivo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em benefício de todos os presos preventivos que se encontram também em grupo de risco para o coronavírus. “A gente entende que é quase uma sentença de morte você impor para uma pessoa doente, com doenças graves, ficar nessas condições. Nenhum juiz tem direito a impor pena de morte ou uma pena de comprometimento da saúde a uma pessoa”, afirma.
O pedido liminar leva em conta o precedente aberto pelo caso do ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, acusado de comandar esquema de “rachadinha”, além de ser investigado por associação com milícias. Queiroz estava preso preventivamente, mas teve prisão domiciliar concedida pelo presidente do STJ, João Otávio de Noronha. O benefício foi deferido baseado por questões relativas à saúde e ao pertencimento do amigo dos Bolsonaro ao grupo de risco da covid-19.
Uma “interpretação do ordenamento jurídico e dos códigos e tratados dos direitos humano correta”. Mas que está longe de ser uma realidade também aplicada aos demais custodiados do país, como avalia a advogada criminalista. “O que nós estamos pedindo é que a interpretação da lei que é dada ao Fabrício Queiroz seja também dada aos outros presos do Brasil, que estão exatamente na mesma situação que ele”, ressalta.
“Nós (do Cadhu) levantamos várias decisões do país inteiro, negando a liberdade de pessoas com diabetes, HIV, câncer. E muitas pessoas idosas e que acumulam essas doenças. E ainda assim as liberdades são negadas em decisões totalmente vagas e diferentes da decisão que foi dada ao Queiroz”.
Mortes em presídios
Dois casos recentes chamaram atenção na última semana, quando Lucas Morais da Trindade morreu, no dia 4, vítima do coronavírus, em um presídio no interior de Minas Gerais. Jovem e negro, de 28 anos, Lucas foi preso em 2018 por portar menos de 10 gramas de maconha, mesmo alegando que a substância era para consumo próprio.
Enquadrado como “tráfico” de drogas, o jovem chegou a ser condenado em primeira instância a cinco anos e quatro meses de reclusão. A defesa do mineiro entrou com três recursos no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), mas todos foram negados.
No domingo (12), o ex-deputado Nelson Meurer (PP-PR) também morreu na prisão após ser infectado pela covid-19. Meurer foi o primeiro condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Operação Lava Jato. Baseada na Recomendação 62/2020 do CNJ – que traz orientações a tribunais e magistrados pelo desencarceramento para conter o avanço da pandemia –, a defesa do ex-deputado entrou com o pedido de prisão domiciliar no Supremo.
Seletividade do Judiciário
O benefício, contudo, foi negado, mesmo os advogados de Meurer apresentando sua idade, de 78 anos, e seu histórico de doenças como hipertensão, diabetes e cirurgia de ponte de safena.
Em São Paulo, por exemplo, levantamento da Defensoria Pública mostra que de março a junho apenas 3% dos pedidos de soltura com base na orientação do CNJ foram deferidos. Até maio, o STF concedeu apenas 6%. A tendência também era seguida pelo próprio ministro Noronha, que negou em março um pedido da Defensoria Pública do Ceará para tirar da cadeia presos do grupo de risco. Parâmetro que mudou sobre o caso Queiroz.
“Essa é uma estatística muito preocupante, porque nós já temos um superencarceramento que compromete a saúde das pessoas. Em tempos dessa crise sanitária isso deveria ser uma preocupação urgente dos tribunais. Mas existe essa resistência em soltar, que é escancarada no caso do Queiroz. Essa diferença de tratamento que é dada no Judiciário brasileiro para as pessoas, a depender de sua condição econômica ou de outros fatores”, contesta Isabela.
HC para mulheres cuidadoras
A prisão domiciliar concedida ao amigo dos Bolsonaro também se estende a sua mulher, Márcia de Oliveira Aguiar. O presidente do STJ, Otávio de Noronha, entendeu que pelo quadro de saúde de Queiroz, Márcia seria sua cuidadora e que por isso o benefício também poderia ser concedido a ela.
O Cadhu agora estuda formular um HC coletivo também relativo a condição de pessoas com situação familiar semelhante à esposa de Queiroz. O pedido levará em conta o Marco Legal da Primeira Infância, que garantiu o direito às mulheres gestantes e mães de crianças de até 12 anos o cumprimento da prisão domiciliar.
A lei está instituída desde 2016, mas o dispositivo também é pouco aplicado, principalmente às mulheres pobres e negras. Para Isabela Labre, todas essas violações expõem que o problema mais urgente é de “mudança na cultura do encarceramento” pelo Judiciário do país.
“Já ouvi uma frase de que o encarceramento é o maior crime contra a humanidade ocorrendo hoje no Brasil, que é o sistema penitenciário. As pessoas estão em situação sub-humanas e isso não é de conhecimento geral, não é veiculado pela mídia. Então nós precisamos mudar a ideia da sociedade que o judiciário parece refletir”, defende a integrante do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos.
Publicado por Rede Brasil Atual