A luta comum dos entregadores de aplicativos digitais

Além da expropriação de direitos, a ordem neoliberal expropriou os trabalhadores de uma identidade baseada no trabalho e alimentou um discurso individualista e meritocrático na sociedade.

No dia 1° de julho, em diversas cidades do Brasil, os entregadores de aplicativos reivindicaram melhores condições de trabalho, como aumento do valor das tarifas, vale-refeição, seguro acidente, seguro automóvel, fim dos bloqueios por parte dos aplicativos e equipamentos de proteção contra a Covid-19. Embora as demandas dos trabalhadores de aplicativos digitais pareçam específicas do setor, a primeira grande paralisação dos entregadores de aplicativos diz respeito a todos os trabalhadores e trabalhadoras. A precarização do trabalho não é uma característica apenas os trabalhadores de aplicativo e, caso não surja uma consciência ampla de classe, deve ser ampliada nos próximos anos, tendo em vista a intensificação da crise econômica que se alarga, ao menos, a partir da crise de 2008.

Ao longo das últimas décadas, o discurso neoliberal ganhou espaço e adeptos em todo mundo, inclusive nos governos social-democratas, desde 1970. As regulações sociais e as legislações trabalhistas foram vistas como o grande obstáculo do crescimento econômico, o que fez com que um número cada vez maior de trabalhadores fosse expropriado de direitos sociais, culturais e econômicos. Grande parte dos trabalhadores hoje não tem oportunidades adequadas de renda e salário, proteção contra dispensa arbitrária, capacidade e possibilidade de manter e ascender em status e renda, proteção contra acidentes e doenças, oportunidade de adquirir conhecimentos e fazer uso no seu emprego, garantia de renda estável e adequada e garantia de representação.

Além da expropriação de direitos, a ordem neoliberal expropriou os trabalhadores de uma identidade baseada no trabalho e alimentou um discurso individualista e meritocrático na sociedade. O fracasso, o desemprego e a miséria, deixaram de ser percebidos como resultados das contradições inerentes ao sistema econômico capitalista e passaram a ser aceitos como inaptidão individual, moral, incapacidade do trabalhador em se adaptar aos padrões requeridos pelo mercado. As distribuições desiguais de renda e as crises macroeconômicas de cunho global se tornaram problemas secundários para maior parte da população. O discurso político da luta de classes transformou-se em um discurso moral, que naturalizou o sujeito como capital humano.

Ocorre que, diferentes do que os defensores do neoliberalismo pregaram, as últimas décadas não trouxeram melhores condições de vida e emprego. A precarização do trabalho e da vida se tornaram a regra e, não, a exceção. Uma massa cada vez maior de pessoas passou a conviver com múltiplos empregos e micro-contratos de serviços individualizados, sem estabilidade e possibilidades de crescimento. As horas de trabalho aumentaram, assim como a dependência de capacitação constante. A insegurança, o medo e a ansiedade se tornaram os afetos centrais dos trabalhadores.

Como afirma Nancy Fraser, houve um agravamento da opressão no neoliberalismo financeirizado. O capitalismo sempre explorou a mão de obra, por meio do trabalho assalariado, e expropriou os indivíduos das suas propriedades – terra, corpo, animais, ferramentas –, seja pelo aparato militar ou pela dívida. Contudo, nos últimos anos, a expropriação não foi apenas material, mas também institucional e subjetiva. As instituições, os direitos e as formações anteriormente necessárias para empregabilidade se tornaram móveis, líquidas, ao ponto de o trabalhador perder qualquer certeza ou garantia, seja ela institucional, relacional ou informacional. As certezas existenciais e materiais dos trabalhadores se dissolveram no ar. E qualquer perspectiva de ascensão e segurança, se tornou um sonho inalcançável para maior parte da população.

A paralisação do dia 1° de julho é mais do que uma luta por demandas específicas dos trabalhadores de aplicativos digitais. A paralisação traz à tona o que o discurso neoliberal insiste em ocultar: o lugar social do trabalho. Em uma sociedade mergulhada por crises econômicas, incertezas sociais, múltiplos antagonismos e crescentes movimentos autoritários, como no Brasil, resgatar o lugar social do trabalho se torna essencial. E esse retorno só é possível se pensada a partir do resgate, no debate público, das críticas sobre as explorações e expropriações comuns aos diversos indivíduos e grupos, como a crescente desigualdade material que assola o interior de diversos países no mundo e as próprias relações desiguais entre países. A maior parcela da população global é expropriada do acesso a trabalho, renda, educação e saúde, enquanto menos de 1% usufrui dos privilégios da reprodução capitalista. Ao mesmo tempo, atualmente, a desapropriação de direitos e a entrega de companhias nacionais e reservas naturais pode ser identificada como novas formas de colonização e, consequentemente, exploração e expropriação de países e continentes inteiros.

O resgate, por indivíduos e grupos do lugar social do trabalho pode resultar em uma forte coesão contra as explorações e expropriações do capital, a partir de uma política cultural da diferença combinada com uma política social de igualdade. Ambas as pautas se entrelaçam e apoiam uma a outra. No capitalismo, economia política e cultural estão necessariamente interligadas, da mesma maneira que as injustiças de distribuição e reconhecimento. A combinação dessas pautas permite remédios transformativos de toda sociedade e demandas efetivas. Essa combinação pode resultar no definhamento do atomismo neoliberal e, consequentemente, em construções mais democráticas de sociedade, que atendam as demandas do nosso tempo político e econômico. A luta dos trabalhadores de aplicativos é uma luta comum.

Referências:

ALONSO, Luis Enrique. Prácticas económicas y economía de las prácticas. Crítica del postmodernismo liberal. Madrid: Catarata, 2009.

BOLTANSKI, Luc. CHIAPELLO, Ève. El nuevo espíritu del capitalismo. Móstoles, Ediciones Akal, S.A, 2002.

FRASER Nancy. Legitimation crisis? On the political contradictions of financialized capitalism. Critical Historical Studies, 2015.

FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v.14, n.2, p.11-33, julho/dezembro, 2009.

LAZZARATO, Maurizio. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCar, 2011. 

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autentica

Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *