Covid-19: O problema de chegar a um milhão é o que vem na sequência
O infectologista Marcos Boulos analisa como chegamos ao milhão de doentes, criticando a gestão “lastimável” do governo federal, e saudando o SUS por ter evitado um quadro ainda pior.
Publicado 19/06/2020 23:48 | Editado 20/06/2020 00:14
O Brasil superou nesta sexta-feira (19), a marca oficial de um milhão de pessoas que já se infectaram com o novo coronavírus. Desde 26 de fevereiro, o País já somou 1.038.568 contaminações e 49.090 mortes, conforme o levantamento do consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de Saúde. O levantamento feito pelo Ministério da Saúde também confirma a marca de 1.032.913 de confirmações, com 54.771 novos casos em 24 horas.
O Dr. Marcos Boulos atendeu o portal Vermelho para uma avaliação deste momento simbólico e surpreendeu ao dizer que não estranha o número de doentes, porque todos os agentes de saúde já esperavam esse volume e esperam que continue aumentando. “Chegar a um milhão não é o problema, o problema é a sequência, o que vem por aí”, alerta o infectologista.
“Provavelmente, tenhamos chegado ao pico, mas isso ainda vai dobrar”. Ou seja, ele acredita que vamos repetir a experiência dos EUA na pandemia, com seus atuais 2 milhões de infectados e mais de 100 mil mortos. “Como o Brasil, eles tiveram o problema de falta de liderança única na área de saúde. Todos os países que deram certo, é porque você teve uma política sanitária seguida pelo país todo. Mesmo aqueles que seguiam pro lado errado, voltaram para o caminho certo”, ponderou.
Trabalho federal lastimável
Boulos avaliou que, em termos nacionais, o trabalho brasileiro não foi bem feito no controle da pandemia. “Somos o país, em termos comparativos internacionais, mais prejudicado por essa doença”, disse. Mas ele ressaltou que o Brasil é um país muito diferente dos europeus e do sudeste asiático, que não têm os bolsões de pobreza, com pessoas que não têm nem onde morar. “Isso agrava muito a situação”.
“Mas nós tivemos essa mistura de política com saúde pública e nosso governo federal é uma lástima em termos de controle sanitário. Simplesmente se afastou do problema, inclusive jogando contra, com as pessoas saindo de casa apesar das restrições. Isso dificulta muito qualquer tipo de conjuntura”, acusou.
Boulos revela que havia a intenção de fazer um lockdown rigoroso em São Paulo, prejudicado pelo desencontro federal. “Se tivéssemos feito o lockdown aqui em São Paulo, como desejávamos, já teríamos saído da epidemia. Mas, porque não poderíamos recorrer ao lockdown? Porque precisaríamos do Exército, e dentro dessa conjuntura que estamos passando, o presidente não mandaria o Exército para São Paulo. Isso foi um impeditivo para pensarmos em lockdown. A política interferindo na questão sanitária”, completou.
Ministro não segura a curva
Embora muitos acreditem que a dança das cadeiras entre ministros da Saúde tenha sido determinante, Boulos não concorda. Até o fim de abril, quando Luiz Henrique Mandetta saiu, os números eram de 30 mil infectados. Menos de um mês depois, quando Nelson Teich saiu, já eram 220 mil. Agora, que o Ministério mantem um militar como interino, sem qualquer expressão administrativa, chegamos ao milhão de infectados.
“Naquele momento, o isolamento social era mais restrito do que hoje. Mas não acho que esteja relacionado ao ministro, mesmo com Mandetta conduzindo a questão de forma mais lógica, mais adequada, seguindo parâmetros internacionais”, ponderou. Para ele, os números estão relacionados ao tempo em que ele saiu, com a epidemia em franco crescimento. O infectologista lembrou que o próprio Mandetta falou que íamos alcançar o pico em julho. “Seja o ministro que entrasse, nós estaríamos com o crescimento epidêmico que estamos até agora”, acredita.
Ministro não é para segurar a curva, afirma ele, pois epidemia é assim, independente de quem esteja lá. O problema, na opinião dele, é não ter uma diretriz que seja seguida por todos, não ter os insumos para todos, que normalmente vêm do governo federal. Acima de tudo isso estava o discurso negacionista que o governo federal fez, o que dificultou muito.
“Eu vi muitos seguidores desse governo morrerem, porque seguiram suas orientações e não se protegeram, indo se expor na rua. Se eu fosse da família deles processaria esse presidente por isso”, sugeriu.
O mau exemplo
Ainda dá tempo do Brasil dar uma lição ao mundo de como se comportar numa pandemia, a partir das potencialidades do SUS? Boulos foi enfático ao dizer que não vamos dar lição nenhuma ao mundo. “O mundo já nos considera como chacota, pela postura do presidente da República, que todos os jornais do mundo falam que está nos levando para o buraco”, enfatizou.
Isso passa por cima do Sistema Único de Saúde e suas qualidades e potencialidades, lamenta ele. “A nossa competência de trabalho fica prejudicada pela parte política e pela falta de investimento. Não tivemos a quantidade de testes necessária, na hora certa, para a maior parte da população. O SUS estava preparado para fazer isso”.
Conforme avalia ele, o mundo não vai perceber o trabalho que fomos capazes de fazer para conter um cenário pior. “Quem mora aqui, da imprensa estrangeira, fala, sim, destacava a importância do SUS e o trabalho que tem sido feito. Mas o desencontro político é tão grande que até isso fica prejudicado”, afirma.
Jogando lenha na fogueira do interior
Hoje, praticamente toda a população brasileira está exposta ao vírus. A covid-19 já chegou a 85% dos municípios do País (4.742), que respondem por 98% de toda a população, de acordo com levantamento do projeto de transparência de dados Brasil.io.
Epidemia é isso, resume o médico. “Espalha por via respiratória e as pessoas vão passando uma para outra, sem fronteira entre munícipios. Só não pega quem está isolado num lugar remoto ou quem está confinado”, reafirmou.
A epidemia vem há algumas semanas se interiorizando e já se propaga mais rápido nessas regiões que nas capitais. O interior já registra mais novos casos por dia que as cidades de São Paulo, Recife e Manaus, capitais que explodiram de casos logo no começo da pandemia.
Boulos explicou que, mesmo com a epidemia madura, as cidades do interior estão atrasadas três semanas em relação às capitais, e ainda não chegaram no pico. “No meu entender, a liberação foi muito prematura com a pandemia em franco crescimento. Mesmo com liberação parcial, estimula as pessoas a irem para a rua e incendeia os hospitais”, criticou. “Campinas e Ribeirão Preto estão fechando, outra vez, voltando atrás, porque o bicho está pegando”.
Para ele, que monitorou cuidadosamente os dados para subsidiar decisões do governo do estado de São Paulo, isto era esperado. “Eu até entendo as pessoas desesperadas por estar falindo, passando necessidade econômica, mas no âmbito sanitário, esta reabertura é muito ruim, porque, quanto mais rápido sair da epidemia, mais rápido se recupera a economia”, defende ele.
Para o infectologista, neste meio termo de flexibilizar com epidemia em expansão, não se recupera completamente nem a economia, nem a saúde. “Então, vamos manter esse chove não molha por um tempo a mais, porque quem não pegou a doença, vai ter condições de pegar”, lamentou. Assim, diz ele, vamos ter a doença, mesmo que não de forma epidêmica, até o ano que vem, com as pessoas tendo que se habituar a andar com máscara, entre outros cuidados protetivos individuais. “Agora, estamos no olho do furacão e não tem mais o que fazer”, declarou.
Segunda marola
Boulos não acredita que, sequer, vamos perceber uma segunda onda, como efeito da interiorização da doença, voltando depois para a capital. “A segunda onda ocorre quando se diminui de maneira importante a epidemia. Aqui, não veremos uma segunda onda, porque não vamos conseguir identificar essa variação. Vamos continuar em situação muito difícil e prolongada”, observa.
Devido à dimensão demográfica brasileira, compara ele, a maior parte da população não vai ter se contaminado ainda, diferente do que aconteceu com países europeus. “Óbvio que, com o vírus circulando, sempre vai ter a possibilidade da doença continuar infectando”.
O SUS é o baluarte
Alguns acusam o Brasil de ter recursos que não utilizou para testar suspeitos, rastrear seus contatos e colocá-los em quarentena. Boulos discorda abertamente deste senso comum. Segundo ele, todos os recursos foram aproveitados, mesmo com todos os problemas que o Sistema Único de Saúde sofre.’
“Se não fosse o SUS, estaríamos muito piores”. Mesmo ele estando “depauperado”, “arrebentado”, com sucessivas políticas de desprestígio, cortes de recursos, e agora com congelamento de recursos por vinte anos, acrescenta o médico, mantendo o sistema absolutamente desatualizado, mesmo assim, a situação seria muito pior. “Foi isso que fez com que a atenção básica funcionasse. Veja que não faltou leito nos hospitais de São Paulo, ao contrário da Itália, que tiveram que escolher quem vai morrer quem vai viver, aquele terror. Não chegamos a ter isso”, observou.
Isso, de acordo com ele, porque o SUS tem uma qualificação maior, um preparo mais adequado do pessoal e as pessoas dedicadas a área da saúde. “O SUS foi o nosso baluarte. Espera-se que, agora, como houve um esforço até maior para atualizar o SUS, sabendo o que é o sistema, que ele continue sendo este exemplo para o mundo todo”, aposta.
Sobre as acusações, Boulos conta que foram feitos os rastreamentos das possíveis contaminações pela vigilância epidemiológica. Ele relata que, nos primeiros casos que apareceram, não só foram rastreados os parentes, como nos primeiros voos, todas as cidades por onde passaram foram rastreados e contatados, e ficaram em isolamento.
Quando começa a haver muitos casos, não é mais possível rastrear. “Trata-se tudo como doença e não consegue-se mais rastrear pela progressão geométrica. Torna-se impossível. Nossa vigilância é muito boa, porque ela fez o trabalho muito bem”, elogiou.
“Eu critiquei o fechamento muito cedo das cidades, porque a vigilância sanitária estava dando conta”, admite. Segundo ele, houve um desespero de setores privados, escolas com casos da doença, que começaram a fechar e levaram o poder público a fazer o mesmo. “Mas o fechamento foi prematuro, num momento em que o contágio ainda era passível de controle pela vigilância epidemiológica, e, agora, que está no pico, reabre tudo, confundindo as pessoas.