Lacunas e inconsistência marcam dados de leitos de UTI para covid-19
Disparidade entre informações do governo federal e dos Estados prejudica a população e a avaliação das medidas de combate à pandemia. Falta de transparência sobre leitos de UTI impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da oportunidade de medidas de flexibilização
Publicado 16/06/2020 21:51 | Editado 16/06/2020 23:21
A Rede de Pesquisa Solidária da USP realizou minucioso levantamento dos dados de UTI registrados nas plataformas públicas do Ministério da Saúde (MS) e de 26 secretarias estaduais de saúde, além do Distrito Federal. As informações colhidas sobre o número de leitos de UTI para covid-19 disponíveis e ocupados apresentam lacunas e disparidades enormes, cuja falta de transparência impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da oportunidade de medidas de flexibilização que estão atualmente em curso.
De acordo com o levantamento da rede, leitos de UTI são essenciais para salvar vidas durante a pandemia. O conhecimento preciso de seu número e de ocupação real é fundamental para a definição de políticas públicas de combate ao coronavírus, a exemplo da ampliação de unidades hospitalares, das medidas de distanciamento social e de sua eventual flexibilização. As taxas de ocupação de leitos de UTI para covid-19 representam o elo final da possibilidade de colapso do sistema de saúde no atendimento aos pacientes em quadro clínico severo, o que significa, em última instância, a identificação da capacidade da rede de atendimento preservar vidas que atingiram estado crítico de saúde.
Desencontro de dados
Não há informação clara sobre o número de leitos de UTI Covid-19 disponíveis no território nacional. As diferenças entre os dados apresentados nas plataformas oficiais são enormes e chegam, por exemplo, a 200%, quando se compara os registros da Plataforma Covid-19 e os do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, referentes a maio de 2020.
Dois estados brasileiros, Rio de Janeiro e Tocantins, não apresentaram nenhuma informação sobre o número de leitos de UTI Covid-19 em suas plataformas, sendo que o Rio de Janeiro está entre os cinco estados brasileiros que exibem a maior taxa de mortes causadas pelo novo coronavírus até o momento. Somente cinco estados apresentam o número de leitos de UTI para covid-19 do SUS e também do sistema privado: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo e Sergipe. Apenas sete Estados apresentam a taxa de ocupação em tempo real dos leitos de UTI Covid-19 do Sistema Único de Saúde em todas as unidades gerenciadas pelas Secretarias Estaduais: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina e Sergipe.
A ausência de informações sobre leitos de UTI para covid-19 se verifica em Estados considerados epicentros da pandemia no Brasil, como Amazonas e São Paulo. A plataforma do Amazonas apresenta somente o número de leitos ocupados, o que não permite estimar a taxa de ocupação. São Paulo apresenta somente a taxa de ocupação sem distinção entre os leitos de UTI para covid-19 do SUS e os leitos da rede privada.
Diversos arranjos têm sido adotados por gestores públicos para o aumento do número de leitos de UTI durante a pandemia, como o aumento no número de leitos contratados de hospitais e redes privadas e a criação de hospitais de campanha, com aquisição de novos equipamentos e materiais. Considerando os poucos dados disponíveis atualmente nas plataformas de acesso público, não é possível identificar quais ações foram tomadas pelos Estados e tampouco o custo e a efetividade das aquisições realizadas.
A inconsistência generalizada dos dados de UTI sugere que as sinergias entre o sistema público e o privado não estão sendo plenamente exploradas. E levantam também dúvidas relevantes quanto à eficiência das políticas em execução.
Se os governos têm nas informações divulgadas ao público uma referência séria, é preciso observar o enorme descompasso entre esses dados, as estimativas de capacidade de atendimento aos doentes em estado agudo e os planos de flexibilização em curso atualmente. Quando os dados apresentados não têm o rigor necessário para fundamentar as políticas de contenção da crise, a população está sendo orientada para respeitar decisões que se baseiam em fontes desconhecidas de informação ou conhecidas apenas pelos governos.
Nas duas alternativas, a compreensão, o julgamento e a adesão da população estão prejudicados. O prejuízo da falta de informação para o público é grande, com implicações para o atendimento tanto dos contaminados pela covid-19 quanto para a continuidade do tratamento contínuo das demais doenças.
O caso de São Paulo
Os dados de São Paulo referentes aos leitos de UTI para covid-19 são consolidados pela Fundação Seade, que atualiza diariamente a taxa de ocupação desses leitos para todas as 18 regiões de saúde do Estado. Embora seja positivo apresentar a taxa de ocupação de leitos de UTI para todas as regiões, além da taxa geral de ocupação do Estado, as informações não estão desagregadas de acordo com o sistema de saúde gestor, ou seja, não é informado se esses leitos são do SUS ou de redes e hospitais privados. Isso significa que não é possível afirmar se a população de São Paulo não usuária da rede privada de saúde possui acesso garantido aos leitos da rede pública, ou se esses hospitais já se encontram saturados.
As informações sobre a origem e a gestão de leitos de UTI para covid-19 são especialmente importantes. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do MS, o Estado de São Paulo possuía em abril de 2020, 3.382 leitos de UTI para covid-19, sendo que apenas 32% são gerenciados pelo SUS. Na cidade há uma maior proporção de leitos de UTI para covid-19 do SUS do que o encontrado no Estado (41%). Assim, é possível verificar que há uma parcela maior da população do Estado de São Paulo dependente do serviço público de saúde, em comparação com a cidade de São Paulo. Porém, a população do estado, proporcionalmente, possui menor disponibilidade de leitos SUS de UTI (CNES, 2020).
A comparação entre os leitos de UTI para covid-19 no Estado de São Paulo e na cidade de São Paulo expõe a diferença de informações apresentadas pelas secretarias de saúde do Estado e do município. Ao contrário do Estado, a Secretaria de Saúde do município de São Paulo apresenta as informações referentes ao número de leitos de UTI ocupados e vagos, além da taxa de ocupação. Enquanto o Estado disponibiliza somente a taxa de ocupação de leitos de UTI, sem diferenciar os leitos sob gestão do governo do Estado e o número de leitos existentes e ocupados.
A falta de informação rigorosa sobre as taxas de ocupação dos leitos de UTI de covid-19 pode também ser encontrada nas elevadas taxas de morte por covid-19 no Estado e no município de São Paulo no mês de maio. A taxa aumentou significativamente durante o mês de maio, embora este crescimento tenha apresentado menor intensidade do que o registrado na cidade de São Paulo, que apresentou uma taxa de crescimento médio diário de 0,7, enquanto que no Estado foi de 0,4 no mesmo período (maio de 2020).
Embora a taxa de mortes na cidade de São Paulo tenha sido superior no mês de maio, em comparação com o Estado, o mesmo não ocorreu com a taxa de ocupação de leitos de UTI Covid-19 e para a taxa de pacientes com a doença internados em UTI, uma vez que as maiores taxas de ocupação e internação foram encontradas no Estado, como ilustrado na Figura 4.
Confiança e transparência
De acordo com a Nota Técnica, o desencontro e a inconsistência de dados dificultam a elaboração, a execução e a avaliação das políticas públicas pela sociedade. Essa situação é ainda mais grave quando o mundo e o Brasil enfrentam um dos vírus mais letais dos últimos 100 anos, um vírus que desafia os imensos avanços que a ciência e a tecnologia viabilizaram em favor da saúde humana. Pelas plataformas oficiais, a sociedade brasileira não tem condições de compreender plenamente as medidas que as autoridades e gestores públicos tomam e que respondem por profundos impactos na vida da população, a começar pelo distanciamento social e as distintas fases de sua flexibilização.
Mais ainda, o desacerto e a presença de dados discrepantes impedem que a população compreenda a importância e o benefício das políticas públicas. Somados à falta de coordenação entre o governo federal, estados e municípios, é possível identificar algumas das razões que explicam a lentidão e a oscilação dos processos decisórios, assim como a baixa adesão da população a muitas das determinações oficiais. Sem dados confiáveis e sistemas transparentes dificilmente haverá políticas públicas de qualidade, concluem os autores da nota.
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas.
As outras notas da Rede estão disponíveis neste link.
Publicado no Jornal da USP