Na ausência do Estado, periferias se organizam para enfrentar pandemia
A disseminação do coronavírus no Distrito Federal começou nas regiões de maior poder aquisitivo, mas hoje cresce acelerada nas regiões periféricas. A rede Ruas tem levado doações e informação onde o governo não chega.
Publicado 26/05/2020 19:33 | Editado 26/05/2020 23:18
Abandonadas pelo Estado, a quem caberia garantir cidadania e dignidade, as periferias têm se organizado em todo o Brasil de maneira autônoma para enfrentar a pandemia do novo coronavírus e suas consequências. Uma das iniciativas está no Distrito Federal, onde a Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) lançou o projeto Covid-19 nas Periferias, para arrecadar doações de dinheiro, alimento e itens de primeira necessidade e levar informação à população.
A disseminação do coronavírus no DF começou nas regiões de maior poder aquisitivo: Lago Sul, Plano Piloto, Águas Claras. Nas últimas semanas, no entanto, os casos têm crescido de forma acelerada nas periferias. Para Max Maciel, coordenador da Ruas e liderança popular de Ceilândia, a cidade mais populosa e mais nordestina do DF, os motivos são claros.
“Apesar de, no começo, o DF ter 60% de isolamento, a gente teve um governo que incentivou quem estava com fome a voltar para a rua. A periferia não se isolou da forma que deveria se isolar por ter uma fragilidade socioeconômica. Se a gente não tem um governo que incentiva, que dá as condições para ficar em casa, fazer isolamento passa a ser um privilégio. Além disso, a gente sabe como é a situação na periferia, casas amontoadas, dificuldade de se isolar na própria casa. Para completar, a gente está na lista de serviços essenciais. É a periferia que está dirigindo ônibus, está na padaria, no supermercado”, afirma.
Segundo os dados mais recentes da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, até segunda-feira (25), o Plano Piloto era o local com maior número de casos confirmados: 691. Era seguido de perto por Ceilândia, que tem 617 casos. No entanto, Ceilândia tem quatro vezes mais óbitos que o Plano Piloto: 24 contra seis mortes pelo vírus.
Estudos preliminares apontam que a Covid-19 mata mais nas periferias, seja porque os moradores têm mais comorbidades, pois há carências que impedem um estilo de vida saudável, seja devido às dificuldades para acessar serviços de saúde. O terceiro e o quarto lugar em casos no DF também pertencem a cidades que têm focos com população mais vulnerável: Samambaia, com 433 casos e 14 mortes, e Taguatinga, com 419 casos e três mortes.
Ajuda para todos
Segundo Max Maciel, a Ruas tem buscado parcerias com entidades – como as fundações Banco do Brasil e Tide Setúbal – e doações da sociedade civil para atender a todos que precisam de auxílio nesse momento. A ação começou por trabalhadores e trabalhadoras da cultura, ligados a projetos da entidade, mas se estendeu à população em geral.
“Eu já tinha uma lista de atendidos do nosso programa, o Jovens de Expressão. Então, a gente tinha um cadastro de trabalhadores e trabalhadoras da cultura, que hoje são 200. Muitos jovens do programa não precisaram [de cesta básica] A partir desse momento, a gente começou a sondar entidades parceiras no Sol Nascente, no Pôr do Sol, em Planaltina”, enumera.
Além das cestas – são mais de 1,1 mil entregues, até o momento – há doações de kits básicos de higiene, pares de havaianas, auxílio para comprar gás de cozinha e legumes e hortaliças da agricultura familiar. Segundo Max, a doação de material é válida, mas a contribuição financeira é importantíssima por ajudar as equipes a negociar preços melhores – como no caso dos orgânicos adquiridos de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) – e organizarem a logística da entrega, colocando gasolina nos veículos, por exemplo.
No site da Ruas, é possível ter mais informações sobre o programa e efetuar sua doação. Também há links para doação nos perfis @ruas.oficial e @maxmacieldf no Instagram.
Informar para não piorar
Na avaliação de Max Maciel, o desmonte de políticas sociais no Brasil em anos recentes piorou os efeitos da Covid-19 nas periferias. “Tivemos o congelamento com o teto de gastos e por causa disso deixamos de ter R$ 19 bilhões na saúde hoje. Você teve os terceirizados, a reforma trabalhista e a reforma da Previdência, que trouxe outras fragilidades para quem teve o BPC [Benefício de Prestação Continuada] e outros benefícios reduzidos”, comenta.
Max teme um agravamento da situação caso o isolamento social não suba e os casos continuem crescendo. “O nosso sonho é que tudo isso passe o quanto antes. Mas nós sabemos que complica, pois, quem doou, não vai ter mais recurso para doar. Quem tinha uma pequena reserva e não entrou na vulnerabilidade, vai entrar se a pandemia se esticar. E, para não se esticar, a gente tem que fazer o isolamento”, ressalta.
Com essa consciência, a Ruas busca combater as fake news disseminadas por negacionistas da gravidade do vírus. Além de levar informação a quem recebe as doações, a rede criou o podcast Papo de Quebrada, que já está na quarta edição. Os dois próximos programas tratarão de notícias falsas e violência contra a mulher. É possível ouvir o podcast em plataformas como Spotify, Deezer e Google Play Música.
Na quinta-feira (28), Max Maciel participa de uma live com o Vermelho para dar mais detalhes sobre a situação das regiões administrativas do DF durante a pandemia e comentar as vulnerabilidades das periferias em geral em meio à crise.