China debaterá primeiro Código Civil desde a Revolução de 1949
A nova lei chinesa, inédita, primeira compilação de normas desse porte implementada após a Revolução de 1949, deve consolidar-se como mais um marco histórico importante
Publicado 22/05/2020 13:59 | Editado 22/05/2020 14:17
Nos próximos dias, serão abertas as sessões do Congresso Nacional do Povo, máximo órgão legislativo da China. As medidas de contenção à pandemia do coronavírus e as políticas públicas para enfrentar a crise econômica decorrente estarão na pauta dos legisladores, certamente. Mas um dos principais tópicos da agenda será a discussão em torno do projeto de Código Civil do país. Trata-se um marco legislativo de importância histórica. Não fosse a agenda urgente da pandemia, estaria pautado como assunto principal.
O Direito tradicional da China tem duas fontes: o confucionismo e o legalismo. Ambas tem sua origem há mais de dois milênios, datando da época em que o território chinês era dividido por vários estados em guerra pela supremacia, o chamado “Período dos Estados Combatentes”. Em resumo, enquanto o confucionismo pregava a educação moral, no âmbito privado, para a formação de bons cidadãos, o legalismo insistia na necessidade de leis que punissem os desvios. Foi esse segundo o pensamento que guiou um daqueles estados, Qin, no enfrentamento com os demais, a partir de profundas reformas administrativas conduzidas pelo pensador Shang Yang (morto em 338 a.C). O cerne do legalismo estava na ideia de que as pessoas não atuariam, voluntariamente, de modo moral e correto (como esperavam os confucionistas, por meio da educação). Apenas um sistema de prêmios e punições seria eficaz: por isso, para eles importava mais o direito e as técnicas de administração do que a busca confucionista da benevolência.
O resultado histórico é conhecido: Qin tornou-se um Estado centralizado, organizado e governado por uma burocracia selecionada com base no mérito e não na hereditariedade. Com essa base, ele derrotou os oponentes. Seu rei, Qin shi Huangdi será o unificador e imperador da China. Embora o Legalismo tenha sido banido após sua morte, deixou seu legado convivendo ao lado da tradição confucionista. Assim, o Direito na China tornou-se algo associado à esfera estatal, pública e coletiva, enquanto o âmbito privado era organizado pela centralidade do pensamento tradicional, confucionista, e não pela lei. O equilíbrio entre essas duas fontes é delicado na China de hoje e está expresso no conjunto do Código Civil, uma norma legal que adentra a vida privada.
Mesmo que essa breve digressão não bastasse para evidenciar a magnitude histórica dessa construção jurídica nova da China, ela ficaria demonstrada pela indicação de que este será o primeiro Código desde a Revolução de 1949, produto de décadas de debate interno.
Antes mesmo da Revolução, a China havia passado por tentativas de construção de um sistema jurídico que regulasse o âmbito civil pela lei, afastando-se da tradição. A primeira delas veio no final do século XIX, sob a pressão das Guerras do Ópio e das agressões de outras potências. Ainda sob a Dinastia Qinq, o governo chinês procurou conceber o primeiro Código Civil do país, projeto que a conjuntura política e o esfacelamento do poder imperial não permitiram que prosperasse. Com o advento da república, em 1912, as discussões foram retomadas até que, no fim dos anos 20, o governo chinês, então sob predomínio do partido nacionalista Kuomintag, promulgou um Código que, com a Revolução em 1949 e a fundação da República Popular, seria revogado (como toda a legislação anterior).
A China sob governo do Partido Comunista debate há décadas a edição da legislação civil. Houve projetos para um Código em 1954, 1962 e 1979. Na década de 1980, prevaleceu a avaliação de Deng Xiaoping, que orientou o debate jurídico até o atual projeto: antes de possuir um Código, a China editaria leis específicas para cada âmbito, passo a passo. Marco desse período foi a Lei de Princípios Gerais de Direito Civil, de 1986, cujas normas foram substituídas só em 2017, com a aprovação de outra congênere e mais moderna. O atual projeto, que será apresentado ao Congresso, reúne essa norma principiológica a outras leis esparsas e especiais, integrando-as com mais sistematicidade e preenchendo lacunas. Terá seis partes, além da geral: propriedade, contratos, direitos da personalidade, família, sucessões (heranças, etc.) e responsabilidade civil.
Pode-se dizer que, com o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, os esforços do país em construir uma legislação que reforçasse seu Estado de Direito foram retomados e o projeto atual é consequência desse esforço.
Sem aprofundar as análises jurídicas que só serão possíveis após a publicação do projeto, sabe-se que ele traz avanços. O primeiro deles fica evidente em seu processo de elaboração. Os relatórios das Deliberações mostram que tratou-se de um processo longo, de ampla discussão. Desde comitês locais, de cidades, chegando a grandes juristas do país, todos foram consultados e enviaram suas sugestões. O Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo recebeu, por canais especialmente abertos na internet, centenas de milhares de sugestões. Todo esse processo indica que o projeto apresentado é uma construção coletiva e pontuada pela intensa reflexão.
Outra vantagem está na regulação sistematizada das normas sobre contratos e do direito de propriedade, sua extensão e seus limites, dando segurança jurídica para o desenvolvimento econômico e mostrando ao mundo o quanto a China cumpre os compromissos assumidos internacionalmente. Mais outra, muito importante, está na centralidade que o projeto dá aos direitos da personalidade. Há ampla proteção a esses direitos que se referem à vida, à preservação do nome e da imagem, à saúde, à reputação e à privacidade. Especialmente, o Código garante proteção às informações produzidas sobre cada um, inclusive as existentes na web, apresentando direitos a recursos processuais mais poderosos que os atuais. Também pode-se mencionar a importância dada à questão ambiental e ao conceito de uma sociedade que se desenvolve de forma ecologicamente equilibrada, estabelecendo obrigações para as empresas e negócios em geral nesse sentido.
Código Civil, no mandarim transliterado, é Mín Fǎ Diǎn. Fǎ é “lei”, Diǎn é “conjunto” e Mín, tanto pode ser traduzido tanto como “civil”, aproximando a expressão do nome da nossa legislação, como pode ser “população”, “povo”. Assim, o código é, para os chineses, o “Conjunto das Leis do Povo”, voltado à regulação da vida cotidiana.
Construções jurídicas desse porte são comuns em momentos históricos importantes, como o que levou ao Código Napoleônico, de 1804. A nova lei chinesa, inédita, primeira compilação de normas desse porte implementada após a Revolução de 1949, deve consolidar-se como mais um marco histórico importante. Ao estabelecer normas modernas para os direitos de personalidade, da família, dentre outros, e a dotar de sistematicidade as leis, hoje editadas em forma separada, ele trará mais segurança jurídica. Esses dois elementos, sistematicidade do Direito e segurança jurídica, farão com que a sociedade chinesa continue sua trajetória ousada de desenvolvimento.