Cacá Diegues: Governo Bolsonaro é mais horrível que a ditadura militar
Para o diretor, “o cinema também nunca mais será o mesmo” no pós-pandemia
Publicado 15/05/2020 14:58 | Editado 15/05/2020 16:45
Um mundo mais leve, menos sufocante e apressado, em que a natureza é vista como parceira da vida no planeta – e não como uma inimiga que devemos conquistar. A redescoberta mundial da solidão e da solidariedade durante a quarentena é o que leva Cacá Diegues a vislumbrar novos tempos pós-pandemia.
“Passada a crise letal da Covid-19, não seremos mais os mesmos. Teremos de reaprender a conviver e ajudar a construir a nova civilização que virá depois da peste”, diz o cineasta, em entrevista ao jornal Valor Econômico. “O cinema também nunca mais será o mesmo – e tenho de agir para que siga uma direção mais justa, mais bela, humana e fraternal.”
Em isolamento social em sua casa, no Rio, Cacá completa 80 anos na terça-feira (dia 19), ao lado da mulher, Renata. Uma mostra de filmes, no Canal Brasil, celebra a data exibindo, às terças, títulos como Orfeu (1999), Deus É Brasileiro (2003), Chuvas de Verão (1978) e O Grande Circo Místico (2018), seu trabalho mais recente.
Nascido em Maceió, Cacá Diegues foi para o Rio aos 6 anos, quando o pai, o antropólogo Manuel Diegues Júnior (1912- 1991), assumiu a chefia de Difusão Cultural da Secretaria Geral do IBGE. Voraz consumidor de livros, filmes, jornais e da vasta produção artística contemporânea, ele evita a nostalgia e as perguntas sobre suas principais realizações – um dos criadores do Cinema Novo, principal movimento cinematográfico brasileiro, diretor de 18 longas e eleito imortal da Academia Brasileira de Letras.
Focalizando o presente, o cineasta projeta que “dias melhores virão”, reafirmando o título de seu célebre filme de 1989, estrelado por Marília Pêra (1943-2015) e Paulo José. Mas também revela um desconsolo sem precedentes: “Nunca vivi um período político no Brasil tão insuportável. Nem mesmo durante a ditadura militar, que durou 21 anos, foi tão terrível”.
Cacá considera “um erro grave” que a ciência e a cultura tenham sido feitas de inimigas pelo governo Jair Bolsonaro. Enquanto os cientistas apontam quem somos e o que existe à nossa volta, os artistas revelam “quem gostaríamos de ser”, diz ele. “Nada aconteceu de bom neste governo em relação à cultura. Não só não houve interesse em colaborar com o setor como também está sendo destruído o que havia. Um desastre.”
Ao mesmo tempo, o cineasta afirma que “o mais triste é que, paradoxalmente, o cinema brasileiro passa por uma fase brilhante de inteligência e criatividade, a mais rica, artística e comercialmente falando, da história do nosso cinema moderno”. Cita filmes como Bacurau, A Vida Invisível, Miragem, De Pernas pro Ar e Minha Mãe É uma Peça, além da diversidade de cinematografias das novas gerações que surgem em diferentes estados.
Há cerca de um ano, o presidente Jair Bolsonaro teceu críticas diretas à atuação da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e chegou a afirmar que buscaria a sua extinção, sob a seguinte justificativa: “Não tem nada a ver que o poder público tenha que se meter em fazer filme”, declarou. Até 2018, a atividade florescia graças a investimentos do Fundo Setorial do Audiovisual, que aportou R$ 870 milhões só naquele ano.
Atualmente, existe mais de R$ 1 bilhão em recursos represados do fundo, que é alimentado por imposto recolhido do próprio setor. “Como a Ancine tem acesso a muitos recursos e nada acontece, às vezes imagino que tudo isso é um satânico projeto do governo para acabar com o cinema brasileiro por inércia”, diz Cacá Diegues.
A seu ver, “o mais grave não é o que ele diz que pensa. O mais grave é que Bolsonaro é um farsante, incompetente, despreparado, desequilibrado, incapaz e, sobretudo, um homem mau. O Brasil está sendo governado por uma negativa do que deveria ser o ser humano.”
Ainda durante o período eleitoral, foram veiculadas campanhas nas redes criticando a classe artística e a Lei Rouanet, que aporta cerca de R$ 1 bilhão por ano no setor. Assim, foi reativada a antiga ideia de que o segmento cultural sobrevive de favores do Estado, incapaz de alcançar a autossustentabilidade.
Alguns estudos apontam, porém, que o setor representa expressivos 2,6% do PIB do País. “Tem sempre alguém dizendo que ‘mamamos nas tetas do Estado’”, afirma o cineasta. “É triste e injusto, mas já estou de saco cheio de há mais de 50 anos refutar a mesma coisa, e a imagem do cinema continua a mesma.”
Decepcionado, ele prefere concentrar esforços em seu primeiro filme desde a morte da filha Flora, vítima de câncer, em 2019, ano em que não teve forças para retornar ao set. Em Deus Ainda É Brasileiro, Antônio Fagundes volta a viver o papel-título, desta vez para questionar: “Vinte anos atrás vocês estavam alegres e pentacampeões mundiais, e agora está todo mundo triste, desempregado, sem dinheiro e ainda perderam de 7 a 1 da Alemanha?”.
Em seu mundo ideal, “as pessoas riem muito, sem parar”, conta. O que talvez explique não apenas o desejo de rodar uma comédia num momento tão delicado, mas também em retomar ideais e utopias lá do começo da trajetória, nos anos 1960. “O Cinema Novo pensou em mudar o cinema, o Brasil e o mundo. Os filmes do Glauber [Rocha, 1939-1981] foram feitos para mudar o mundo e conseguiram. O que não podemos ter é a pretensão de que o mundo irá sempre para onde a arte quiser”, diz.
Cacá conclui: “É isso que a arte pode fazer: modificar o modo como vemos o ser humano e o mundo. Quer papel mais generoso do que esse? Eu, particularmente, vivo até hoje desses sonhos”.
Com informações do Valor Econômico