Regras excludentes deixarão 30 milhões de trabalhadores sem auxílio emergencial

Pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária apontam regras excludentes, centralização e estratégia digital como principais problemas de implementação.

Jair Bolsonaro reduziu auxílio de R$ 600 para R$ 300 - Foto: Roberto Parizotti/FotosPública

As cenas de aglomerações e longas filas registradas nas portas das agências da Caixa Econômica Federal nas últimas semanas foram um dos efeitos das decisões do governo Bolsonaro na implementação do auxílio emergencial para trabalhadores afetados financeiramente pela pandemia de covid-19. O governo optou por um modelo centralizado e totalmente digitalizado que gerou gargalos na implementação. Também estabeleceu regras que deixam mais de 30 milhões de trabalhadores elegíveis fora do programa Renda Básica Emergencial.

A avaliação é dos pesquisadores que assinam a Nota Técnica 5 da Rede de Pesquisa Solidária, divulgada na sexta-feira passada (8). Eles calculam que as principais limitações de cobertura do programa deixarão 6,1 milhões de pessoas sem receber o benefício devido a uma regra que limita o recebimento a apenas dois beneficiários por domicílio. Além delas, outros 26 milhões de trabalhadores de renda média que não têm acesso ao seguro-desemprego não serão cobertos pelo programa se perderem seus empregos.

Os cientistas sociais utilizaram microdados da PNAD Contínua Anual de 2019, do IBGE, para calcular o perfil dos elegíveis ao auxílio emergencial e quantificar quantas pessoas deixarão de receber os R$ 600 mensais devido às características de implementação do programa. Como os dados não capturam os efeitos do novo coronavírus sobre a economia, os números futuros poderão divergir com as estimativas. Isso é verdade principalmente para os elegíveis que moram com outros beneficiários do programa. “É importante registrar que esse número se refere a um cenário anterior à pandemia e deve crescer à medida que a renda comece a ser diretamente afetada, o que aumenta o número de elegíveis por domicílio”, escrevem os pesquisadores.

Quanto às decisões de implementação, a nota técnica explica que o governo tinha duas possibilidades de desenho da política pública. Uma envolvia a implementação quase inteiramente centralizada; a outra dependeria de maior articulação federativa para aproveitar a estrutura da rede de proteção social que foi construída no País ao longo das últimas décadas. Segundo os pesquisadores, ao optar pela primeira possibilidade, de maior centralização, o governo Bolsonaro sinalizou que gostaria de garantir seu controle sobre o processo de concessão dos benefícios, minimizar eventuais problemas de coordenação com estados e municípios e evitar repartir com adversários políticos os créditos eleitorais obtidos a partir do programa.

Porém, ao evitar uma maior articulação com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e apostar em uma opção de implementação totalmente digital, via Caixa Econômica Federal, o governo acabou criando dificuldades para parte importante do público-alvo, que não conta com acesso à internet em casa ou tem pouca familiaridade com smartphones e computadores. “Essa é a realidade mais frequente entre os menos escolarizados e mais pobres, exatamente aqueles que constituem a parte fundamental do público-alvo do programa”, diz a nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária.

Um total de 7,4 milhões de pessoas elegíveis ao auxílio emergencial que precisam ou precisaram acessar o aplicativo da Caixa para requisitar o auxílio vivem em domicílios que não têm acesso à internet.

Perfil dos elegíveis

Segundos os pesquisadores, 29,1% da população brasileira é elegível ao benefício emergencial. Em números absolutos, são 60 milhões de indivíduos. Destes, 29,7% já eram beneficiários do Bolsa Família quando se iniciou a implementação da Renda Básica Emergencial, em 7 de abril. São eles os únicos que puderam contar com a inscrição automática para receber o auxílio.

Outros 52,4% dos elegíveis ao auxílio emergencial se enquadram no perfil do Cadastro Único, mesmo quando não são beneficiários de nenhum programa social. Há, ainda, 17,9% das pessoas elegíveis que não se enquadram no perfil do Cadastro Único. A informação sobre inscrição no Cadastro Único não é coletada pela PNAD Contínua e foi ponderada a partir de dados sobre as famílias beneficiárias do Bolsa Família, os indivíduos beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e as famílias com renda mensal per capita de fontes formais com valor menor ou igual a meio salário mínimo.

A grande maioria dos elegíveis à Renda Básica Emergencial se concentra entre as famílias de baixa renda e entre os trabalhadores historicamente mais vulneráveis — os informais. Entre os menos vulneráveis e os “novos vulneráveis” (grupo de trabalhadores formalizados que correm risco de desemprego ou perda de renda em função da pandemia), apenas uma pequena fração é elegível ao auxílio emergencial.

Distribuição dos 26 milhões de trabalhadores descobertos pela RBE e pelo seguro-desemprego, segundo grupos de vulnerabilidade

Entre os 26 milhões de trabalhadores de renda média que ficarão de fora do programa há trabalhadores que pertencem aos três grupos. Eles ficarão totalmente descobertos caso fiquem desempregados. Isso ocorre por dois motivos. Um é uma questão de política pública: o governo fixou o teto de renda anual de R$ 28.500 em 2018 como critério para o programa, o que exclui esses trabalhadores de renda média. Por outro lado, a alta rotatividade nos postos de trabalho pode impedi-los de solicitar o seguro-desemprego por não terem tempo de serviço suficiente no último emprego.

O problema da internet

Embora esta semana tenha começado com filas muito menores nas agências da Caixa, o fato de, um mês após o programa, uma parte dos elegíveis não ter sequer conseguido fazer o cadastro do auxílio emergencial revela gargalos importantes na implementação do programa. Na avaliação dos cientistas da Rede de Pesquisa Solidária, a estratégia federativa poderia ter sido uma melhor opção para que o dinheiro efetivamente chegasse a quem precisa. “Os problemas da implementação poderiam ser minimizados caso houvesse articulação entre o governo federal, governadores e prefeitos, para estabelecer uma estratégia de mobilização da estrutura, serviços e mão-de-obra especializada dos CRAS”, concluem eles na Nota Técnica.

O Brasil tem 8.357 Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) localizados estrategicamente em áreas de maior vulnerabilidade social, em todas as regiões do País. Esses centros têm o potencial de atender quase 29 milhões de domicílios e possuem três frentes de atuação específica de grande relevância durante a pandemia de covid-19: inscrição e atualização do Cadastro Único, regularização de CPF e deslocamento de funcionários para atender cidadãos que vivem em áreas isoladas.

Gráfico aponta a taxa de pobreza versus a quantidade de inscritos no CadÚnico ao longo dos anos – Imagem: PNADs SAGI/MDS

Os pesquisadores consideram que os CRAS seriam uma ferramenta melhor do que o aplicativo da Caixa para o cadastro dos pleiteantes ao auxílio porque pelo menos 20% dos domicílios não têm acesso à internet, situação que é mais crítica em Estados do Norte e do Nordeste. Para fins de comparação, enquanto no Pará 34,5% das casas estão desconectadas da internet, no Rio Grande do Sul apenas 4,2% estão nesta situação. No Estado de São Paulo, o índice é de 8,4%. Além disso, entre os menos escolarizados, quase uma a cada quatro pessoas sem ensino médio reside em domicílio sem internet. O ponto positivo é o cadastro automático dos beneficiários do Bolsa Família, já que 30% deles não têm acesso à internet.

Os cientistas sociais alertam, ainda, que teria sido importante considerar as disparidades quanto ao uso de aplicações digitais pelos indivíduos, o que impacta tanto o preenchimento do cadastro da Renda Básica Emergencial quanto a manipulação da conta bancária eletrônica. Dados preliminares da pesquisa TIC Domicílios, realizada entre outubro de 2019 e março de 2020, indicam que cerca de 64 milhões de usuários de internet com renda domiciliar de até três salários mínimos não realizaram consultas, pagamentos ou transações financeiras pela internet nos três meses anteriores à pesquisa. Algo como 66 milhões também não realizaram nenhum serviço público transacional pela internet.

Sobre a Rede

A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas.

O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população.

Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.

A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia (Ciência Política-USP). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (Sociologia-USP e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (Ciência Política-USP), Graziela Castello (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP – INCT-Incor).

O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia.

São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise. “Distanciamento social, mercado de trabalho, rede de proteção social e percepção de comunidades carentes são alguns dos alvos de nossa pesquisa. Somos cientistas políticos, sociólogos, médicos, psicólogos e antropólogos, alunos e professores, inteiramente preocupados com o curso da crise provocada pelo coronavírus no mundo e em nosso país”, define Glauco Arbix.

Publicado em jornal da USP

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