Mesmo em sigilo, vídeo “devastador” já empurra Bolsonaro ao precipício

Se por escrito os termos e as ameaças de Bolsonaro já parecem o bastante para basear um processo de impeachment do presidente, há quem aposte que a divulgação pública do vídeo teria um efeito mortal sobre o governo

(Foto: Reprodução)

Na manhã de 23 de abril passado, Jair Bolsonaro disse a pelo menos dois auxiliares que estava “muito satisfeito” com a reunião interministerial do dia anterior. Segundo o presidente, apesar do bate-boca entre os ministros da Economia, Paulo Guedes, e o do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, a reunião “sacudiu a equipe”, ajudando a “enquadrar” todo a equipe numa defesa mais firme do governo. Com palavras duras diante dos ministros, incluindo palavrões, Bolsonaro teria dado o recado – e o mais importante: teria sido correspondido.

Tamanha miopia na leitura dos fatos faz lembrar um dos episódios derradeiros do Império brasileiro. Em 9 de novembro de 1889, a apenas seis dias antes da proclamação da República, Dom Pedro II promoveu o animado Baile da Ilha Fiscal. Os quase 2 mil convidados dançavam, bebiam e se confraternizavam, como se estivessem às voltas com um cenário político de estabilidade.

A certa altura da festa, o imperador, do alto de seus 63 anos, tropeçou no tapete e quase foi ao chão. Reza a lenda que, para tranquilizar as pessoas, Dom Pedro teria soltado uma blague: “O monarca tropeçou, mas a monarquia não caiu”. A farra continuou noite adentro, e o imperador foi deposto – assim como a monarquia – menos de uma semana depois. O Baile da Ilha Fiscal entrou para a posteridade como o símbolo de um evento desconectado de seu contexto.

É preciso frisar que, em reuniões “fechadas”, Bolsonaro e cia. já eram conhecidos pela sem-cerimônia – ou, para usar uma palavra mais comum aos cargos, pela falta de decoro. Mas no dia 22 de abril, pelo que se sabe até aqui, a produção de diatribes foi das mais fartas. Os ministros “olavistas” – afinados ao ideário ultradireitista e negacionista de Olavo de Carvalho – não se contiveram: Abraham Weintraub (Educação) disse que os 11 ministros “filhos da puta” do Supremo Tribunal Federal (STF) “tinham que ir para a cadeia”. Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) também falou em prisão – mas para governadores e prefeitos que defendiam a quarentena e o distanciamento social em resposta à pandemia do novo coronavírus.

O próprio Bolsonaro estava em “dia de fúria”, conforme notou um dos presentes à reunião. Em tom ameaçador, diante do vice-presidente, de seus ministros e de mais alguns gestores – afora a tradicional entourage presidencial –, o chefe de Estado declarou: “Não vou esperar foder alguém da minha família. Troco todo mundo da segurança. Troco o chefe, troco o ministro”.

“Constrangedor”

O vídeo da reunião, por ora em segredo de Justiça, foi exibido na manhã desta terça-feira (12) no Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal (PF), em Brasília. Quem teve acesso à gravação – que é parte do inquérito autorizado pelo STF para investigar a interferência ilegal de Bolsonaro na PF – definiu o material, invariavelmente, como “constrangedor” e “devastador”. Não só porque a verborreia presidencial praticamente comprova a denúncia do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) – mas também porque há conteúdo extra para expor a tentação golpista do bolsonarismo, agravar crises entre Poderes e empurrar ainda mais o governo na direção do precipício.

Nos três momentos em que falou durante a reunião, Bolsonaro explicitou que estava trocando o comando da Polícia Federal no Rio para ter acesso privilegiado a investigações que envolviam seus familiares e amigos. Reclamou de “apanhar sozinho”. Afirmou que não divulgaria sua “porcaria do exame” para o coronavírus porque essa informação poderia ser o estopim para um processo de impeachment. Se fosse preciso, recorreria às Forças Armadas “para evitar um golpe”. Citou inimigos políticos com palavras de baixo calão, chamando os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), respectivamente, de “bosta” e “estrume”.

A Polícia Federal entregará uma transcrição integral da reunião ao ministro Celso de Mello, relator do caso no STF, já pressionado a tirar o sigilo tanto da transcrição quanto do vídeo. Se por escrito os termos e as ameaças de Bolsonaro já parecem o bastante para basear um processo de impeachment do presidente, há quem aposte que a divulgação pública do vídeo teria um efeito mortal sobre o governo.

Parlamentares da oposição já apresentaram petição ao Supremo em busca da ampla publicidade da gravação. Celso de Mello deu um prazo de 48 horas para que a AGU (Advocacia-Geral da União), a PGR (Procuradoria-Geral da República) e Sergio Moro se posicionem sobre o sigilo do vídeo. “Defendo, respeitosamente, a divulgação do vídeo, de preferência na íntegra, para que os fatos sejam confirmados”, antecipou-se Moro, na noite desta terça, numa rede social.

Bolsonaro, dado a rompantes e improvisos contra jornalistas, diminuiu os decibéis após as primeiras reportagens sobre o vídeo. Até acusou um “sensacionalismo” no noticiário, mas, como se seguisse orientação jurídica, repetiu uma linha de defesa: a de que em nenhum momento da reunião citou termos como “Polícia Federal, “superintendência”, “superintendente” e “investigação”. O governo já teria em mãos um parecer preliminar para sustentar que o vídeo não traz uma única “evidência irrefutável” de tentativa de interferência na Polícia Federal. A jornalista Bela Megale, do jornal O Globo, diz que Bolsonaro assistiu a cada minuto do vídeo da reunião antes de entrega-lo à PF.

Seja qual for a decisão de Celso de Mello sobre o conteúdo da reunião interministerial – manter ou retirar o sigilo da gravação –, a repercussão do caso em nada favorece ao governo. Nesta quarta-feira (13), a Folha de S.Paulo informa, na coluna de Mônica Bergamo, que os ministros do STF sugerem “cautela” e aguardam a transcrição do vídeo. Do ponto de vista jurídico, quem dá a pista, em artigo opinativo, é o jornalista Igor Gielow: “Salvo algum desvio nos relatos disponíveis, Bolsonaro está enrolado (…). A questão agora é saber se, a partir do vídeo e dos depoimentos do caso, a Procuradoria-Geral da República imputará crime ao presidente”.

No Estadão, o time de colunistas mulheres, em especial, não poupa o presidente. “Na linha do tempo, já é outro dia”, diz, por exemplo, Rosângela Bittar, que aponta no vídeo “as vísceras de um governo em decomposição” e “uma marca definitiva de um time perdido, sem líder ou objetivo, eira ou beira”. Para a jornalista, a “ausência de decência” em Bolsonaro pode afastar um dos últimos setores aliados: os militares. “Morrerão por um governo alvo de investigação, imerso em isolamento político, cultural, social, embalado no discurso do achincalhe?”, questiona Bittar.

Mas é a Globo que promete elevar a carga contra o governo. Se o Jornal Nacional de terça não foi tão demolidor quanto se esperava, o jornal O Globo, em editorial nesta quarta, chama o vídeo de “confissão” e defende o prosseguimento do inquérito. Míriam Leitão, uma das colunistas mais sintonizadas com a família Marinho, diz que a forma “absurda e criminosa” como o presidente age na crise “já é motivo suficiente para o afastamento”. A jornalista palpita: “Bolsonaro gastará os próximos meses se defendendo, na PGR ou no Congresso. Suas únicas saídas são a de Aras preparar uma pizza ou de o centrão evitar seu naufrágio”.

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Um comentario para "Mesmo em sigilo, vídeo “devastador” já empurra Bolsonaro ao precipício"

  1. Galeno Antunes disse:

    Eu gostaria de saber se a retirada de mais de 430 milhões de reais da previdência social para pagar o décimo terceiro do bolsa família não configurou pedalada fiscal? Só isso já seria suficiente para dar entrada na câmara dos deputados de pedido de impeachement?

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