O desafio da retomada econômica brasileira pós-pandemia

O choque determinado pela epidemia levará a uma contração do PIB, estimada entre 5% e 8%, e a uma ampliação das várias formas de subutilização da força de trabalho para um patamar entre 28 milhões e 33 milhões de pessoas. Diante desse quadro dantesco, o que fazer?

Efeitos da pandemia do coronavirus na economia serão dramáticos

O choque determinado pela epidemia levará a uma contração do PIB, estimada entre 5% e 8%, e a uma ampliação das várias formas de subutilização da força de trabalho para um patamar entre 28 milhões e 33 milhões de pessoas. Diante desse quadro dantesco, o que fazer? Confira no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea

As implicações e consequências econômicas e sociais da pandemia têm se mostrado tão devastadoras quanto a sua dimensão sanitária. Com uma diferença essencial: enquanto os efeitos desta última por mais penosos que sejam têm prazo de validade, os das primeiras podem se projetar por um largo período, dependendo das ações que sejam postas em prática no presente. Assim, nunca é demais lembrar que o início da epidemia nos encontrou com uma economia estagnada, flutuando em torno de uma variação anual do PIB de 1% nos últimos três anos, após uma recessão histórica em 2015 e 2016. Por essa razão, as taxas combinadas de desemprego, subemprego e desalento alcançavam cerca de um quarto da força de trabalho, ou 25 milhões de pessoas. O choque determinado pela epidemia levará a uma contração do PIB, estimada entre 5% e 8%, e a uma ampliação das várias formas de subutilização da força de trabalho para um patamar entre 28 milhões e 33 milhões de pessoas. Diante desse quadro dantesco, o que fazer?

Nunca é demais lembrar que a mitigação do cenário apontado acima requer sobretudo a ação estatal. Não é possível imaginar que, num momento de tamanha contração da produção, da renda e do emprego e de ruptura de vários mercados, a reação advenha do setor privado, de respostas a sinais débeis e voláteis. Minimizar os efeitos da pandemia e preparar a retomada é, portanto, uma tarefa essencialmente pública, ancorada em decisões políticas. Ela supõe o abandono, ao menos temporário, de princípios que regem a ação do Estado em tempos de normalidade, em particular aqueles que orientam as regras e metas fiscais e sua política de gastos. E aqui cabe enfatizar: não só metas, mas também formas de financiamento devem ser relaxadas, com o intuito de permitir não só a sustentação da economia num patamar de menor recessão possível, mas também de volta mais rápida ao crescimento.

A despeito de várias ações terem sido anunciadas pelo governo – boa parte delas modificadas e fortalecidas pelo Congresso –, a sua marca é, indiscutivelmente, a insuficiência, tanto na sua extensão quanto intensidade, reflexo do viés fiscalista que caracteriza sua postura. Assim foi no auxílio aos trabalhadores informais, no arremedo de política de sustentação do emprego formal, nas ameaças de veto às propostas mais robustas de ajuda aos entes subnacionais, no socorro financeiro às empresas e agora, ao que tudo indica, também na formulação de um plano para a retomada do crescimento, o denominado Plano Pró-Brasil, cujo objetivo é deslanchar, aliás meritoriamente, um programa de investimento em infraestrutura, para assegurar o crescimento pós-pandemia.

A construção civil desempenhará, junto com as políticas sociais, um papel essencial no relançamento da economia. No que tange às primeiras, dado o arcabouço já existente, trata-se de ampliar o benefício aos trabalhadores informais e formais e, estender o prazo de sua duração. No caso da construção, para além do efeito genérico da sustentação da demanda, o segmento de infraestrutura além de ampliar a produtividade da economia, será crucial na indução do gasto e investimento privados. Os dados apresentados nas figuras a seguir ilustram numericamente a afirmação anterior. A construção civil, nos seus vários segmentos, considerada como uma atividade de investimento, pois gera estruturas e instalações duradouras, tem sido responsável por metade da formação de capital do país. O principal segmento da construção é a infraestrutura, com cerca de 29% do total, seguida pela construção residencial, com 23%. Nesta última, metade da atividade se origina de autoconstrução e pequenas obras, tocadas pelos seus proprietários.

Fonte: IBGE/Contas Nacionais Anuais

Algumas características são decisivas para eleger a construção civil como setor prioritário da retomada: o caráter predominantemente non-tradeable da atividade com baixíssimo coeficiente importado, ou seja dependência quase nula das cadeias globais de produção; o elevado efeito de encadeamento, ou multiplicador, com vários setores de mercado interno, a começar pela massa de salário e por fim e de grande relevância, um coeficiente de emprego dos mais altos da economia. Veja-se por exemplo, o chamado efeito multiplicador, mostrado no quadro abaixo. O dado mostra quanto resulta de um gasto público inicial de R$ 1 em diferentes segmentos e em fases distintas do ciclo. A conclusão é indisputável: os efeitos multiplicadores são máximos nos ativos fixos (construção) e no pagamento de benefícios sociais, quando a economia está em recessão. Os dados de impactos sobre o emprego também são elucidativos: para cada R$ 40.000 investidos gera-se um emprego adicional. Em termos de PIB, cada 0,5 p.p de esforço adicional gerará um milhão de empregos.

Embora seja de fato a alternativa menos custosa e mais eficiente para auxiliar a retomada na saída da pandemia, o gasto em construção civil enfrenta vários percalços, a maior parte oriunda da postura fiscalista do atual governo. Vejamos como isto se traduz nos vários segmentos. Na construção civil residencial deve-se constatar que metade da atividade é feita em bases não empresariais, ou seja, depende da renda das famílias e de suas obras de construção e reformas realizadas diretamente ou por pequenas empreiteiras. No atual quadro de queda da renda dificilmente haverá dinamismo relevante no setor.

O segmento que se organiza em bases empresariais tem dois subsetores distintos: o de Médio e Alto Padrão (MAP) que funciona com regras de mercado, mas depende em parte de financiamento com funding parafiscal (FGTS) e crédito direcionado (caderneta de poupança) e o segmento Minha Casa, Minha Vida das faixas 2 e 3, que envolve níveis de subsídios elevados, advindos do FGTS. O segmento 1 do MCMV, pelo valor das construções e subsídio direto do Tesouro, converte-se em um investimento público – as empresas são contratadas apenas para realizar as obras. Ele vem sendo desacelerado desde o segundo governo Dilma, mas esta trajetória acentuou-se no governo Temer e, sobretudo, no de Bolsonaro. Nos dez primeiros anos do programa, contratava-se, em média, anualmente, cerca de 550 mil habitações, com dotações orçamentárias anuais de aproximadamente R$ 10 bilhões, tendo sido criados, em média, 250 mil empregos por ano. O pico do programa ocorreu em 2013, com quase 1 milhão de unidades. Esse número caiu progressivamente; em 2019 o volume estimado foi de 250 mil habitações, com dotação de R$ 4,1 bilhões. Para 2020, o Programa dispõe de R$ 2,8 bilhões na Lei Orçamentária, equivalente, em termos nominais, a 17% do valor empenhado em 2014.

No segmento empresarial, a construção civil apresentou, no último ano, resultados dúbios, com recuperação de alguns indicadores, manutenção e piora de outros. Assim, o segmento de médio e alto padrão, estimulado pela queda das taxas de juros e realocação de portfólio das famílias de alta renda, apresenta recuperação das vendas, desde 2018. Mas, ao que tudo indica, pela queda dos novos lançamentos, esse segmento não deverá sustentar o dinamismo do setor. Estreiteza relativa do mercado, concentração em grandes cidades do Sudeste e, sobretudo, após a pandemia, a desvalorização da riqueza financeira pela queda dos valores dos títulos indicam uma provável perda de dinamismo. O segmento de unidades MCMV, apresentou em 2019 desempenho dúbio, mantendo o número de lançamentos, mas com uma fraca trajetória das vendas, certamente associada ao pequeno aumento da renda das famílias. Ademais esse setor é dependente fortemente dos subsídios originários do FGTS e as recorrentes distribuições ad hoc dos recursos desse fundo parafiscal sugerem baixa capacidade de preservação dos subsídios e do financiamento de novos empreendimentos.

O setor de infraestrutura é o maior segmento da construção civil e representa quase 30% da taxa de investimento. O seu desempenho no pós crise foi apenas sofrível. Os investimentos se reduziram em um quarto enquanto proporção do PIB – de 2,4% para 1,8% do PIB – num contexto de economia estagnada, vale dizer o seu crescimento girou em torno de 1% ao ano. O investimento público teve desempenho ainda pior reduzindo sua participação para menos de um terço do total. Após quedas sucessivas desde 2013 seu valor estabilizou-se em torno de 0,6% do PIB, um mínimo histórico desde os anos 1990. As perspectivas de dinamização desses investimentos enfrentam obstáculos de diversas naturezas, especialmente a fiscal, mas não somente.

Fonte: ABDIB e SIOP

O crescimento do investimento privado por meio de concessões atingiu o seu máximo no segundo governo Dilma. No período que equivaleria ao seu segundo mandato, 2015/2018, o pipeline gerado ao longo dos anos foi leiloado e concedido à iniciativa privada. A crise, com a significativa queda da demanda, e a Lava Jato ampliaram sobremaneira o número de projetos com dificuldades legais ou em desequilíbrio financeiro. O fato é que a aceleração da taxa de investimento para esses segmentos depende, a médio prazo, isto é, em dois anos, da consolidação de uma nova carteira de projetos. As dificuldades de colocá-los em prática dependerão também do interesse do setor privado nessas concessões, numa economia em baixo crescimento. A curto prazo só é viável ampliar a taxa de investimento do setor por meio da renegociação dos termos das concessões originais e indução à venda dos projetos em desequilíbrio financeiro ou com concessionária limitada legal ou financeiramente.

O investimento público tem sido recorrentemente o alvo principal da contenção do gasto público e dos contingenciamentos. Desde o início da desaceleração em 2013, ele reduziu-se pela metade, caindo de 1,2% para 0,6% do PIB. Há atualmente uma infinidade de obras paradas e outras tantas possíveis de serem deslanchadas, espalhadas pelo território nacional. A única limitação para que isto ocorra é a restrição fiscal. Não para o ano de 2020, por conta da decretação do estado de calamidade e da consequente suspensão da meta de resultado primário, mas para 2021 e os anos subsequentes. O assim chamado “Orçamento de Guerra”, previsto na PEC 10/2020, suspende dispositivos de controle fiscal apenas enquanto durar o estado de calamidade. É uma espécie de orçamento paralelo para que, logo após a crise, as regras fiscais – resultado primário, teto de gasto e regra de ouro – voltem a restringir o orçamento público.

Para 2021, o governo anunciou que a meta de resultado primário será dada pela diferença entre a receita, com alto grau de imprevisibilidade, e a despesa, limitada pelo teto de gasto. Embora se trate de uma flexibilização da meta de resultado primário, já que não haverá piso para ela, a despesa primária seguirá restrita ao limite da EC 95/2016, sem nenhuma diferenciação entre despesas correntes e investimentos. Nesse sentido, é impossível acomodar o aumento de investimentos públicos no orçamento, diante da retomada das regras fiscais em 2021.

A ajuda crucial da construção civil e da infraestrutura na retomada da economia é um desafio que se coloca em vários planos. Primeiro, no âmbito fiscal. Retomar o MCMV na faixa 1 para o patamar de 500 mil habitações por ano exigiria recursos da ordem de R$ 10 bilhões, ou 0,14% do PIB, cerca de R$ 7 bilhões, ou 0,10% do PIB, a mais do que o proposto no orçamento. Retornar o investimento público para o patamar de 1% do PIB ou R$ 72 bilhões envolveria recursos adicionais de 0,4% do PIB ou R$ 29 bilhões. O esforço adicional mínimo de investimento nos dois programas seria de R$ 36 bilhões ou 0,5% do PIB. De acordo com os parâmetros apresentados acima isto implicaria a criação de 1 milhão de empregos e acréscimo de 0,755 ponto percentual na taxa de crescimento. A esse programa público se pode agregar mais 0,5% de acréscimo de investimentos nas concessões paradas, por vários motivos. O valor, portanto, dobraria, para inversões da ordem de 1% do PIB, impacto de 1,5% na taxa de crescimento e 2 milhões de empregos.

As evidências apresentadas acima mereceram por áreas do Governo a promessa de um plano para sistematizar essas intenções de investimento: o Pró-Brasil. Entretanto, a área econômica tem respondido com o negaceio de sempre, fundado no fiscalismo. Na verdade, essa ultra ortodoxia fiscal, além de reafirmar regras que engessarão a capacidade de retomada da economia no pós-pandemia, é incapaz de examinar formas alternativas e baratas de financiamento do déficit, tais como o financiamento monetário do Tesouro pelo Bacen ou o uso dos recursos da conta de equalização cambial. Todavia, para além da relevância social indiscutível do programa, que exige o relaxamento das regras de gasto aplicáveis a investimentos públicos e a adoção de formas não convencionais de financiamento fiscal num período de tamanha gravidade, o ministro é incapaz de explicar as consequências da não adoção de um plano com esse perfil. Ou seja, na sua ausência, qual será o tamanho da recessão e o consequente impacto sobre o emprego e a renda? Por quantos anos perdurará? E afinal, qual será a consequência disso tudo sobre as contas fiscais diante dos impactos negativos sobre a arrecadação?

*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp; e Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em Economia pela UFRJ e doutor em Sociologia pela UnB.

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil

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