Reflexões em tempos de pandemia, necropolítica e genocídios

Pesquisadores podem ir além da epidemia para entender a morte sistemática de populações vulneráveis em meio a decisões do estado.

Gislene Aparecida dos Santos – Foto: Acervo pessoal

Algumas reflexões parecem inadequadas em tempos de pandemia, com tantas pessoas sofrendo pela perda de empregos, pela morte de entes queridos, quando não por terem, elas mesmas, contraído a doença. Mas, como pesquisadores e pesquisadoras, temos a obrigação de refletir sobre tudo isso considerando um cenário que vá além da superfície.

Têm sido frequentes os debates virtuais, em diferentes partes do mundo, sobre o tema, chamando a atenção para os efeitos da covid-19 sobre as populações mais vulneráveis (mulheres, mães solo, afrodescendentes, indígenas, moradores das periferias e favelas, pessoas com deficiência e pessoas em situação de rua). É bem possível (embora ainda não tenham surgido muitos dados referentes, especificamente, ao impacto do novo coronavírus no agravamento das desigualdades sociais) que sejam esses os grupos mais afetados pelos efeitos colaterais da pandemia, como a impossibilidade de sustento ou pela falta de assistência de um Estado que nunca se preparou para atender essa população e, agora, tem agravado a sua ineficácia.

Sem dados precisos, eu não teria condições de afirmar, com a certeza que a ciência exige, fazendo o cruzamento de diferentes indicadores, quem seriam as pessoas mais afetadas pela covid-19. Em plena pandemia, não se pode fechar qualquer estatística global sobre o assunto. Contudo, os dados levantados até o momento indicam, por exemplo, que em Nova York os negros podem estar entre os que mais morrem vítimas da covid-19. E, também, em outros Estados dos EUA, se as informações divulgadas até o momento puderem ser comprovadas[1].

Negros e o novo coronavírus

No texto “We need class, race, and gender sensitive policies to fight the Covid-19 crisis”[2], os autores apresentam avaliações iniciais sobre a covid-19 em Nova York e Nova Jersey, com base em dados do New York City Department of Health and Mental Hygiene que foram divulgados pela mídia[3]. Para eles, o novo coronavírus estaria atingindo, com mais força, os bairros onde residem pessoas de baixa renda. E, ainda, seria provável que, nessas localidades, também haja maior número de mortos. O artigo também faz referência ao cruzamento de dados sobre a incidência de doenças crônicas, respiratórias e comorbidades que agravam o quadro da covid-19 com o Código de Endereçamento Postal (CEP) das localidades onde residem famílias negras.

No Brasil, também começam a surgir informações que apontam para o mesmo sentido. Segundo dados do Ministério da Saúde, há indicativos de que a covid-19 tem sido mais letal entre os negros[4]. Sabemos que ainda há muito a investigar sobre o tema já que a cobertura populacional da aplicação de testes para diagnosticar a doença ainda é muito baixa no País.

Contudo, não seria surpresa se chegássemos à constatação de que, pelos mesmos fatores descritos acima, os negros e os pobres brasileiros estarão entre os mais afetados pela doença e pela morte decorrente dela. Se assim for, esses serão indicativos muito precisos da sobreposição e intersecção de diferentes marcadores sociais da diferença revelando que os grupos socialmente vulneráveis aos demais efeitos das desigualdades sociais também seriam os mais afetados pela pandemia da covid-19. Ainda estamos no plano das especulações. Mas há fatores que fogem do campo do “achismo”.

Como pesquisadores e pesquisadoras, talvez estejamos nos deixando levar pelo medo aterrorizante da pandemia de covid-19 e sua letalidade sem atentar para o fato de que há algo mais associado a ela para o qual é preciso buscar a cura. Nós ainda não resolvemos nossas demandas do passado. E é esse passado que corre atrás de nós, de tempos em tempos, gritando em nossos ouvidos e nos cobrando pelas nossas dívidas como erínias e fúrias.

Sim, estamos em tempos de pandemia e há que se cuidar para evitar mortes, a fome e o enlouquecimento provocado pelo isolamento social de quem pode se isolar. Mas também é fundamental não desprezar outras questões graves.

Não sabemos ao certo quantas pessoas morrem, por dia, vítimas da covid-19 no Brasil. Entretanto, indago: se fôssemos comparar os dados que ora temos acerca dos mortos que contraíram o novo coronavírus com o número de mortes de jovens negros vítimas de violência, a quais conclusões chegaríamos?

Violência e genocídio

Em 2019, foram divulgados dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Atlas da Violência, e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que mostram que, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios, no País, eram negras (pretas e pardas), chegando à taxa de 43,1 por 100 mil habitantes. “Apenas em 2017, 35.783 jovens de 15 a 29 anos foram mortos, uma taxa de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens, recorde nos últimos 10 anos”[5].

Chama a atenção o fato de a morte dessas pessoas pretas, pardas e das favelas nunca ter sido enxergada como parte de um flagelo social ou de uma hecatombe. Seriam pessoas consideradas sem utilidade, como frisou, tempos atrás, Viviane Forrester em seu livro O horror econômico? Pessoas que precisariam existir para serem descartadas já que não há lugar para elas no mundo do lucro cada vez mais obtido sem a constância da presença humana. Pessoas desnecessárias em um projeto civilizatório marcado pela exigência do trabalho como forma de alcançar a dignidade, mas no qual não existe mais emprego para todos? Qual seria o espaço dessas pessoas? São alvo das contradições imanentes de um modelo econômico predatório que as torna supérfluas, dispensáveis?

Sim, é possível que se diga que esse tipo de comparação não é aceitável em termos mais precisos. Não se pode comparar o número de mortos em uma pandemia com o número de mortos por homicídios. São fenômenos diferentes, com características totalmente diversas. Todavia, o que quero ressaltar é exatamente isso. São eventos diversos que têm em comum o público que afetam e os resultados que produzem: as pessoas negras que morrem. Podemos ter aqui evidências de um genocídio, algo já mencionado, décadas atrás, por Abdias do Nascimento, no livro O genocídio do negro brasileiro, que se tornou um clássico?

Costumo dizer que genocídio é palavra forte e que assusta. Mas como tratar esses números sem fazer menção a esse termo? Se não genocídio, efeitos da necropolítica, como quer Achille Mbembe e Dennis de Oliveira[6]?

Escolhendo quem vive e quem morre

Necropolítica é o modo como o Estado, por meio de suas políticas, decide, a cada minuto, quem vive e quem morre. Penso que, agora, isso possa estar ocorrendo em hospitais de todo o mundo. Não faltam dados para indicar que o tratamento das pessoas pobres e pretas, nos serviços de saúde, também é desigual[7]. Se tiver que escolher, quem “o médico” escolherá para a UTI e para o uso do respirador, para o hospital com equipamentos de ponta e para o hospital de campanha[8]? Podemos nos esquecer dos algoritmos que dão preferência a brancos, em detrimento do atendimento dos negros, como revela pesquisa de Ziad Obermeyer e outros?[9]. Quem são as pessoas que apresentam, em maior medida, as comorbidades que as fragilizam para a covid-19? E por que apresentam tais doenças crônicas?

Cada vez fico mais convencida de que o olhar interdisciplinar para a determinação social da saúde e da doença é fundamental para entender a necropolítica evidente ao avaliar o cenário aqui apresentado.

Devemos considerar o modo como o binômio saúde-doença se faz presente na estrutura social e econômica. Avaliar que classe, gênero, identidade sexual, cor, raça, etnia produzidas e interpretadas pela rede de significados que cada sociedade e cada cultura constrói são fundamentais na definição dos corpos que serão úteis, inúteis, acolhidos, repelidos, tratados, maltratados, abandonados ou protegidos, curados ou que perecerão. Nosso modelo de Estado e nosso estilo de vida estão assentados sobre a produção da morte de pessoas pretas, pobres, faveladas. Aqui estou refletindo sobre políticas de extermínio que não deixam de existir. E são várias formas de matar. Matar o corpo e matar a alma.

Penso que estejamos em meio à falácia de uma solidariedade que, talvez, termine ao final da pandemia. Espero que não termine. Há sempre pessoas legitimamente solidárias. Mas não creio que será algo duradouro. Pode ser cruel o que vou dizer, mas penso que essa solidariedade seja um modo da classe média e alta lavar a alma por não participar, de modo mais constante, da transformação radical que é preciso fazer para que o mundo seja diferente. É como se essa classe média e alta dissesse: “Eu posso contribuir agora para, depois, voltar aos privilégios dos quais eu não quero abrir mão”. Eliminar privilégios é algo essencial para corrigir ou erradicar as desigualdades gritantes que temos no mundo. E eu acredito mais na solidariedade dos mais pobres em relação a eles mesmos.

Pesquisadores devem ver além

Por isso, temos que olhar além da covid-19. Obviamente, temos que contribuir com nossos conhecimentos para oferecer soluções e enxergar o problema. Não estou dizendo (e jamais diria) que não devemos propor projetos para lidar com o novo coronavírus. Muito pelo contrário, temos que realizar pesquisas porque nosso olhar faz a diferença. E já temos excelentes projetos de pesquisa realizadas pela Universidade de São Paulo como também ações de extensão universitária que se voltam para as comunidades do entorno da USP e de outras comunidades de São Paulo, somando esforços com organizações da sociedade civil que salvam vidas. Ações que merecem nosso apoio e respeito.

Contudo, como pesquisadores, é preciso nos perguntar: “Como podemos somar?”. Penso que podemos contribuir produzindo conhecimento que considere as várias facetas de um processo de produção de desigualdades que resulta na morte e no extermínio de pessoas dos mesmos grupos sociais em diferentes partes do mundo, em diferentes tempos, desde muito tempo.

Isso é triste, doloroso e é preciso que tratemos com a profundidade e o rigor que o fenômeno merece. É urgente que busquemos, por meio de pesquisas sérias, compreender e produzir conhecimento para transformar esse cenário de iniquidade mesmo que não estejamos aqui para presenciar a emergência de um novo modelo sócio-econômico-cultural no qual esse flagelo seja inadmissível.

Somos pessoas sensíveis às desigualdades sociais e podemos, com vagar e seriedade, construir o conhecimento que pode fazer a diferença a partir do olhar de quem pertence aos grupos socialmente vulneráveis (como os pesquisadores e pesquisadoras que se organizam no recente nPeriferias, Grupo de Pesquisa das Periferias do Instituto de Estudos Avançados da USP) e, também, daqueles e daquelas que escolheram ser nossos parceiros e parceiras dedicando-se a pensar conosco, construindo suas carreiras por meio de pesquisas que contribuem para entender essas questões.

Essa, penso, é uma relevante contribuição que a Universidade de São Paulo pode oferecer na compreensão dos fenômenos que envolvem diferentes formas de matar e morrer, sejam elas decorrentes de uma pandemia, do genocídio ou expressões da face da necropolítica.

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora associada da EACH/USP e coordenadora do grupo de estudos nPeriferias do IEA/USP

[1] Ver: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52267566.

[2] Ver: https://urpe.org/2020/04/03/the-need-for-class-race-and-gender-sensitive-policies-to-fight-the-Covid-19-crisis/.

[3] Ver: https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/01/nyregion/nyc-coronavirus-cases-map.html?referringSource=articleShare

[4] Ver: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/04/13/interna-brasil,844115/coronavirus-e-mais-letal-para-pacientes-pretos-e-pardos.shtml; e https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil-apontam-dados-da-saude.shtml.

[5] Ver: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34786.

[6] Ver: doi org/10.11606/extraprensa2018.145010.

[7] Ver: doi 10.1136/postgradmedj-2019-137295; e 10.1056/NEJMp1916269.

[8] Ver: doi 10.1136/jme.21.6.356 .

[9] Ver: doi 10.1126/science.aax2342.

Publicado no jornal da USP

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