1º de Maio: a luta dos trabalhadores na voz de Chico Buarque
Para homenagear o Dia do Trabalhador – 1º de Maio – ouça Chico Buarque em todas as canções escolhidas, solo ou em parceria
Publicado 01/05/2020 15:58 | Editado 09/03/2022 10:33
Para homenagear o Dia do Trabalhador – 1º de Maio – ouça Chico Buarque em todas as canções escolhidas, solo ou em parceria, com a vontade expressa do autor carioca em ajudar com sua arte a tornar o mundo um lugar bom de se viver para todas as pessoas, sem nenhuma distinção ou preconceito.
Primeiro de Maio
As seis músicas apresentadas mostram a cara do e a alma do Brasil. Encabeça a lista “Primeiro de Maio”, em parceria com Milton Nascimento, lançada em 1976, no disco Geraes, do compositor de Minas Gerais.
Chico e Milton cantam a esperança de os trabalhadores tomarem em suas mãos os meios de produção e mudar o modo de produção. O mundo novo é da classe trabalhadora e por ela será construído.
Primeiro de Maio, de Chico Buarque e Milton Nascimento
Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali
E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si
Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas
Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é o seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
E é bendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu
Hoje eles hão de consagrar
O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão
Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhas do seu ventre
O homem de amanhã
A Voz do Dono e o Dono da Voz
Felizes são os grandes artistas que transformam em arte os seus dissabores. Na canção “A Voz do Dono e o Dono da Voz”, de 1982, Chico Buarque conta o drama de ter mudado de gravadora e descobrir que a sua nova gravadora foi comprada pela anterior.
Mas como em toda grande obra, o autor transforma uma dor sua em denúncia de como funciona o capitalismo, onde o “a voz do dono” tenta a todo custo controlar o “dono da voz”. Como o capital explora o trabalho até às últimas consequências, sem dar valor à vida.
A Voz do Dono e o Dono da Voz (1982), de Chico Buarque
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
Fizeram bodas de acetato – de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz,
A voz resulta um prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes
Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó
Porém, a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar,
Queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz
Foi revelada na assembléia – atéia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel, trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: “Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém”
(O que é bom para o dono é bom para a voz
O que é bom para o dono é bom para vós
O que é bom para o dono é bom para nós)
O Cio da Terra
Lançada também no álbum Geraes, de Milton Nascimento, de 1976, “O Cio da Terra”, de Chico e Milton, se transformou num verdadeiro hino da reforma agrária. Gravada pelos dois num compacto de 1977 com o outro lado do disco contendo a outra obra prima “Primeiro de Maio”.
“Conhecer os desejos da terra” para “fecundar o chão” do futuro e “se fartar de pão” num mundo sem fome e desigualdade.
O Cio da Terra (1976), de Chico Buarque e Milton Nascimento; Milton canta com Pena Branca e Xavantinho
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão
Assentamento
Ao homenagear o grande escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), Chico homenageia também o Movimento dos Sem Terra (MST) e canta a vontade das trabalhadoras e trabalhadores do campo em superar suas mazelas e transformar o país numa grande terra de produção de alimentos saudáveis para alimentar a todas e todos.
“Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra”
Assentamento (1998), de Chico Buarque
Quando eu morrer, que me enterrem na
beira do chapadão
— contente com minha terra
cansado de tanta guerra
crescido de coração
Tôo
(apud Guimarães Rosa)
Zanza daqui
Zanza pra acolá
Fim de feira, periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim
Vamos embora
Ver o capim
Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
A piracema, rios contravim
Binho, Bel, Bia, Quim
Vamos embora
Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora
Construção
Em “Construção”, de 1971, Chico Buarque canta a vida dos trabalhadores urbanos. Aqui todos os versos terminam com proparoxítonas, as palavras mais raras da língua portuguesa, para mostrar a riqueza dos sentimentos, das dores, dos amores e da vida de quem produz a riqueza e vive à deriva, na pobreza.
“Construção” é a vontade de transformar em magia o mundo construído para valorizar o ser humano.
Construção (1971), de Chico Buarque
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
As Caravanas
Em seu álbum mais recente Caravanas, de 2017, a canção que dá nome ao disco “As Caravanas” conta a história do conservadorismo intrínseco da sociedade brasileira, da colônia até hoje, onde a escravidão é o traço marcante e que precisa ser superado para o país andar para a frente sem rancores.
As Caravanas (2017), Chico Buarque
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa a la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há
Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará
Publicado no site da CTB