Financiamento monetário é arma em “guerra” contra Covid-19
Recusar-se a ousar implica empobrecer (e até matar) desnecessariamente brasileiros.
Publicado 13/04/2020 15:48
Em um momento de crise profunda como o mundo inteiro enfrenta hoje, a coordenação pública se revela o principal mecanismo de garantia da ordem social e econômica. Tal coordenação não é necessária apenas para superar a crise da saúde pública, mas também para conter e reverter seus efeitos diretos e indiretos sobre a economia.
O efeito direto da paralisação de atividades econômicas para limitar a difusão da Covid-19 é imediato. Seus efeitos indiretos se prolongam por mais tempo. A tarefa do poder público não é só limitar o impacto imediato, e sim planejar para que o choque não se estenda a ponto de inviabilizar a recuperação em seguida.
O choque negativo sobre a renda privada, em escala global, não tem precedentes na história do capitalismo. Seu caráter abrupto é reforçado pela incerteza radical a respeito do futuro. Os movimentos de preços deixam de indicar opções seguras de investimento e consumo para empresas e famílias, e a retração das decisões de gasto privado pode levar a um círculo vicioso que tende a um nível sem precedentes de falências, desemprego e deterioração fiscal.
Em qualquer situação de crise, é inevitável que o choque sobre o balanço patrimonial de empresas e famílias provoque déficit público. Se o poder público reagir à queda de arrecadação tributária cortando seu gasto, a “economia burra” reforça a espiral descendente, multiplica as falências e a queda da arrecadação, trazendo a ampliação do déficit e da dívida pública que se queria evitar, a um custo ainda maior para a sociedade.
Se a relação dívida pública/PIB cresce de toda forma, o ideal é que sua ampliação venha através do gasto público com efeito multiplicador sobre a renda privada pelo tempo necessário para sua recuperação. Isto não apenas contribui para evitar o caos econômico e social, como limita a própria deterioração fiscal a médio prazo.
Melhor ainda se o estado de calamidade pública não resulte em elevação da dívida pública a um ponto que venha a prejudicar a própria recuperação futura. Tal prejuízo pode ocorrer seja por causa da pressão política dos detentores de títulos públicos para que o governo corte gastos para mitigar seu próprio medo de calote, seja por conta do impacto da elevação da taxa de juros dos títulos públicos de longo prazo, desde que o Tesouro cometa a barbeiragem de vender novos títulos no meio da crise.
No imediato pós guerra, Keynes se opôs às tentativas do Banco da Inglaterra e do Tesouro de alongar a dívida pública. Como o horizonte do mercado encurta, é preciso operar com títulos muito próximos do dinheiro, quase moedas para as operações de open market, e reduzir radicalmente os juros.
Quando o circuito monetário é reconstituído e, mesmo em um ambiente de incerteza, os mercados recuperam a confiança na possibilidade de precificação do risco, o alongamento da curva de juros e sua inclinação atestam o “retorno à normalidade”. Assim, quando o gasto fiscal estimular os animal spirits, a curva de juros volta a se alongar e assumir um perfil compatível com a maturidade dos títulos.
Há quase uma unanimidade global no campo dos economistas – exceto no Brasil – de que a pressão por cortes precoces e exagerados do gasto público, oriunda de credores da dívida pública e de economistas preocupados com suposta aceleração inflacionária, prejudicou significativamente a recuperação das economias depois da crise de 2008-9. Está se formando um consenso, hoje, de que tal erro não pode ser repetido.
No Brasil, isto significa que o governo deve evitar a insolvência privada sem aumentar a percepção de risco de insolvência pública, ainda que este risco seja imaginário dado o poder soberano de emissão monetária.
A solução conservadora é anunciar desde logo cortes em programas sociais e/ou venda de empresas estatais para depois da crise, como sempre privatizando os lucros e socializando os prejuízos. Tamanha volta ao “normal” da austeridade, em dobro, não é apenas injusta como também produzirá mais instabilidade econômica e política, prolongando a estagnação e até mesmo a depressão.
Melhor ainda é não restringir o poder de emissão monetária conferido ao Banco Central à compra de ativos financeiros detidos por agentes privados. Isso é importante para achatar a curva de juros de títulos públicos de longo prazo transacionados nos mercados secundários, como é praxe de gestão monetária em vários países desde a Grande Recessão.
Contudo, é preciso ir além e autorizar o Banco Central a financiar diretamente o gasto público através da compra de emissões primárias de títulos públicos, suspendendo o Artigo 164 § 1º da Constituição Federal.
Em condições normais, o argumento contrário ao financiamento monetário do gasto público é o risco inflacionário. No Brasil, as vozes de sempre vão se levantar para dizer que teremos hiperinflação em breve. Se for possível convencê-las, respondemos que uma depressão econômica duradoura traz riscos ainda maiores para a estabilidade política, econômica e financeira do país.
E o aumento da dívida pública em poder do público eleva o custo da intermediação remunerada das instituições financeiras, o risco imaginário de insolvência pública e a pressão política contra o gasto público.
O problema é que não estamos em condições normais. O risco hoje é de desinflação e, no mundo, até mesmo de deflação. A capacidade ociosa das empresas brasileiras – já alta antes da crise – pode elevar-se em 10 pontos percentuais em prazo curto.
O desemprego tanto quanto, o que vai reforçar por muito tempo a tendência de contenção ou redução do salário real verificada desde 2015. O preço do petróleo e das commodities permanecerão deprimidos a médio prazo. Temos reservas cambiais suficientes e conhecimento técnico para executar políticas que contenham a depreciação cambial, cujo efeito sobre os preços, de todo modo, vem se mostrando muito limitado, e certamente incapaz de compensar as forças desinflacionárias.
Economistas como Lorde Adair Turner, Ben Bernanke, Jordi Galí e, até mesmo, Henrique Meirelles e a equipe editorial do Financial Times reconhecem a necessidade de financiamento monetário do gasto público, já decidida pelo Banco da Inglaterra.
Nossa proposta é limitar o financiamento monetário ao período de calamidade pública e ao montante necessário para financiar, no que for necessário, sem restrições financeiras, o Orçamento de Guerra, somado ao aumento do déficit público trazido pela queda profunda da arrecadação tributária. O Congresso Nacional e o TCU devem fiscalizar a execução.
Não é possível definir valores previamente, porque não se pode estimar o tempo e o montante de recursos públicos necessários para evitar uma crise financeira e substituir as fontes de renda dos trabalhadores e consumidores brasileiros, nem para compensar o mergulho da arrecadação tributária.
Se o financiamento monetário já estivesse autorizado, seria possível assegurar uma taxa de reposição muito maior da renda dos trabalhadores formais e elevar as transferências para os informais, reduzindo custos e sustentando vendas das empresas.
Também seria possível ampliar os repasses federais às unidades da federação e estender a desoneração de tributos, injetando recursos na veia de empresas ameaçadas de falência. E, principalmente, ampliar os gastos em saúde pública. Caso nos recusemos a ousar, a fuga do isolamento social para sobreviver, e o aumento da inadimplência de famílias e empresas vai atrasar em muito a convalescência da sociedade e da economia brasileira.
O que acontece com as finanças públicas em época de pandemia deve ficar nela. O combate à pandemia não deve deixar uma conta salgada demais, nem retardar a recuperação da economia até que famílias e empresas paguem suas dívidas. Por isso é essencial que o orçamento de guerra seja coberto por financiamento monetário. Guerra é guerra.
Fonte: Carta Capital