Estudo sobre cloroquina é interrompido após morte de pacientes
Os pesquisadores descobriram que uma dose alta do medicamento pode levar a quadros severos de arritmia ou batimentos cardíacos irregulares.
Publicado 13/04/2020 23:07
Um estudo preliminar realizado no Brasil sobre o uso de cloroquina para tratar pacientes com sintomas do novo coronavírus foi interrompido depois que 11 pessoas morreram. Até a primeira semana de abril, os envolvidos no estudo ainda defendiam a emergência de divulgação do estudo e a ampliação do número de pessoas tratadas com a substância, embora ainda não tivesse dado resultados relevantes.
A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) comentou em redes sociais a interrupção da pesquisa. Ela mencionou o motivo dos quadros severos de arritmia ou batimentos irregulares do coração após dosagens altas do medicamento que levaram à morte de 11 pacientes. “Ignorem Bolsonaro e deixem os cientistas estudarem as melhores opções!”, enfatizou ela, mencionando o fato do presidente da República insistir em divulgar este único remédio como a cura da Covid-19.
A pesquisa — que não foi revisada por membros da academia científica ou publicada em revistas do setor, mas divulgada em um servidor virtual de informações da área da saúde chamado medRxiv, no sábado — cita 81 pacientes que foram hospitalizados com sintomas de COVID-19 em Manaus. Os pacientes foram incluídos no estudo antes de receberem uma confirmação do laboratório de que estavam com a doença.
A pesquisa é financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, e também pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). Para fomentar testes no Brasil, o programa de combate às epidemias da Capes decidiu conceder 2 mil 600 bolsas de estudo. Cerca de 60 cientistas e técnicos estão envolvidos em pesquisas sobre o coronavírus.
Para os testes, eles receberam uma dose alta de cloroquina (600mg duas vezes ao dia por 10 dias, uma dose total de 12g) ou uma dose baixa de 450mg por cinco dias (duas vezes somente no primeiro dia, uma dose total de 2,7g).
Todos os pacientes também receberam ceftriaxona e azitromicina como parte do tratamento. Uma limitação da pesquisa é que nenhum dos envolvidos recebeu placebo (substância inerte).
No sexto dia de testes, os pesquisadores interromperam o estudo antes do previsto depois que alguns pacientes do grupo que recebeu uma dose alta do medicamento morreram. Os que sobreviveram passaram a receber uma dose baixa.
Os pesquisadores determinaram que, apesar de a cloroquina ser usada há mais de 70 anos de forma segura contra a malária, usá-la em altas dosagens para tratar COVID-19 “pode ser tóxico”. Eles solicitaram mais estudos sobre o medicamento.
“Para concluir, o esquema de dose alta de cloroquina (12g) por dez dias não foi suficientemente seguro para garantir a continuidade dessa parte do estudo”, escreveram os pesquisadores. Eles recomendam fortemente que essa dosagem não seja usada para o tratamento de casos graves da doença.
Por que não?
Com o aumento da busca da cloroquina como alternativa de tratamento contra a COVID-19, é preciso saber por que o medicamento não deve ser usado por pessoas com suspeita ou diagnóstico confirmado da doença que marca a pandemia.
Infectologistas defendem que não há comprovação da eficácia do uso da cloroquina em pessoas. A cloroquina foi usada na China para tratar casos graves e esses relatos foram publicados, mas essas evidência não são suficientes para fazer essa recomendação porque foram grupos muito restritos. Eles acreditam que pode ocorrer dos pesquisadores descobrirem, no futuro, que a cloroquina mais atrapalha que ajuda.
De acordo com especialistas, o ideal, neste momento, é que sejam feitos mais testes laboratoriais e ensaios clínicos para obter uma resposta incontroversa. Existe uma plausibilidade biológica, ou seja, é possível que funcione. Os resultados animam os pesquisadores a fazer os testes, mas hoje a recomendação é que seja usado no contexto de pesquisa clínica, para que se verifique a segurança e eficácia.
A ressalva que, eventualmente, se faz para o caso que pode ter a administração do medicamento. O uso compassionado, quando existe uma situação crítica de um paciente na UTI, sem possibilidades outras de tratamento, e a cloroquina é usada como último recurso.
Outro medicamento que tem sido buscado como alternativa é o lopinavir/ritonavir, que também não deve ser usado. Ele foi utilizado por muito tempo como parte do tratamento contra o HIV, mas está praticamente desaparecido das opções terapêuticas e foi resgatado nessa epidemia como uma possível alternativa, porque trabalhos anteriores mostravam que ele tem atividade contra o coronavírus em laboratório, o que não significa que ele vai funcionar em pessoas.
Receita de político
A cloroquina é semelhante à hidroxicloroquina, mas a segunda tem sido vista como “uma derivação menos tóxica” da primeira. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, elogiou o medicamento, indicando que ele pode ser um fator importante no tratamento do novo coronavírus.
O jornal New York Times revelou recentemente que a posição do presidente do EUA pode ser motivada por interesses pessoais: ele é acionista da Sanofi, a indústria farmacêutica que detém a patente da droga.
Ainda segundo a reportagem do jornal, um dos principais acionistas da empresa farmacêutica Sanofi é Ken Fisher, que está entre os maiores doares de campanha para o Partido Republicano de Donald Trump.
Atualmente, não existe um tratamento para a doença aprovado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA, em inglês), mas a agência emitiu uma autorização para uso emergencial de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar pacientes hospitalizados com COVID-19.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) ouviu, por três horas, a doutora Nise Yamaguchi, apelidada de “médica do fascista” por corroborar oficialmente a defesa do presidente Bolsonaro de que a cloroquina é a cura da Covid-19. Mas ela “não convenceu” os conselheiros e não apresentou base científica. “A tendência, portanto, é de não recomendar o uso indiscriminado do remédio, apesar dos apelos de Bolsonaro”, diz o Conselho.
O site Metrópoles relata que a hidroxicloroquina é produzido por uma empresa farmacêutica, Apsen, que tem como dono um grande entusiasta do bolsonarismo. Ainda segundo o site, “a Apsen, que registrou lucro de R$ 696 milhões em 2018, produz o Reuquinol, que Bolsonaro mostrou até para líderes do G-20. Presidente da empresa, Renato Spallicci faz apaixonada defesa de Jair Bolsonaro e críticas ao PT em suas redes sociais.
Imprensa médica
Duas das publicações de pesquisa em medicina mais importantes do mundo fizeram alertas contra o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O British Medical Journal adverte em editorial que “o uso dessas drogas é prematuro e potencialmente prejudicial”. Já a revista Lancet, uma das mais importantes da medicina mundial, destaca que a Organização Mundial da Saúde reafirmou que “não há informação suficiente para mostrar a eficácia dessas drogas no tratamento de paciente com Covid-19, ou em prevenir que alguém contraia coronavírus”. Outras instituições de saúde do mundo inteiro têm feito o mesmo alerta.
“O que eu sei como cardiologista é que esses medicamentos têm efeitos colaterais importantes, incluindo a rara morte súbita”, disse à revista Lancet, Michael Ackerman, diretor da Clínica Windland Smith Rice, uma das divisões da Clínica de Mayo nos EUA.
A revista Lancet ainda ouviu a ganhadora do Prêmio Nobel de Medicina de 2008 e presidenta do comitê de pesquisa da Covid-19 da França, a imunologista Françoise Barré-Sinoussi. Ela afirma que “a cloroquina pode ter efeitos deletérios nos pacientes e aumentar o risco para o coração”.
A Agência Nacional de Vigilância de Medicamentos da França, a ANSM informou que, naquele país, pacientes com coronavírus tratados com hidroxicloroquina apresentaram problemas cardíacos e quatro deles morreram.
O jornal L`Express relata que “a agência francesa informou ter identificado ao menos 43 pacientes com complicações cardíacas após o uso de hidroxicloroquina no tratamento… Sete pacientes sofreram paradas cardíacas e, entre esses, quatro morreram”.
Hospitais de ponta da Suécia também interromperam o uso do medicamento cloroquina em pacientes infectados com coronavírus em consequência de relatos de graves efeitos colaterais – como arritmias cardíacas e perda de visão periférica.
Com informações da CNN Brasil e agências