A política é jogo jogado, especialmente em tempos de pandemia
A reorganização do país exigirá a constituição de uma ampla frente de reconstrução nacional, e quem não compreender isto perderá o bonde da história.
Publicado 13/04/2020 12:00
Nestes tempos de pandemia e confinamento, diariamente nos deparamos com nova pesquisa de opinião, das quais decorrem as mais variadas análises, inclusive de alguns que já me criticaram em outros momentos pelo uso de dados estatísticos em linhas de argumentação, afirmando serem somente números. Agora, entretanto, de videntes políticos se transformaram em especialistas nesta ciência das probabilidades.
Quando vejo tais análises, vem-me à mente a famosa frase usada pelo escritor americano Mark Twain (desconheço ser ele o autor ou não) “there are three kinds of lies: lies, damned lies, and statistics”. Sim, existem três tipos de mentiras: as pequenas e insignificantes mentiras como aquele gol de canela na pelada, que na mesa do bar é contado como um gol de placa; as grandes e danosas mentiras como a do Bolsonaro, de que a Covid19 é uma gripezinha; e a mentira estatística.
Uma pesquisa de opinião é uma fotografia de um determinado momento e só é possível estabelecermos com razoável segurança uma determinada tendência se fizermos uso de uma série histórica de pesquisas, associando-as a outros métodos de análise. Ao utilizarmos os dados estatísticos de uma determinada pesquisa de forma estanque para interpretar a realidade, como diria Twain, estaríamos construindo uma mentira estatística. Pior ainda quando se utiliza de um dado de determinada pesquisa, que é a fotografia de um fragmento de um determinado momento, como se representasse uma totalidade.
Pesquisas recentes apontam que Bolsonaro tem em torno de 30% de aprovação e que 17% dos entrevistados que declararam ter votado nele em 2018 se arrependeram do voto. Como se, de fato, todos os que votaram nele tivessem admitido isso, considerando 17% pouco, há quem conclua que o Capitão mantém sua força para ir a um segundo turno em 2022 e que suas sandices perante a crise epidêmica praticamente não abalaram a sua popularidade.
Comparado a pesquisas anteriores, constataremos que houve variação em seu resultado, mostrando que, ainda que em percentuais não tão altos, há uma queda de popularidade e de confiança no Presidente. Esta variação pode mostrar uma tendência se considerarmos outros parâmetros de análise.
Embora não se possa ainda projetar com segurança o alcance desta crise epidemiológica, o fato é que, pela rapidez com que se propaga, pela inexistência de métodos de combate, exceto o de redução da velocidade de propagação, ela deverá atingir números assustadores e já fez um estrago global só superado, nestes últimos 120 anos, pelas 1ª e 2ª guerras mundiais e pela gripe espanhola.
No Brasil, somente agora o vírus passa a circular para além das classes altas e médias e, graças às medidas de isolamento e distanciamento social adotadas pelos governadores e prefeitos, a velocidade de propagação ainda está em ritmo suportável pelo sistema de saúde. No entanto, exceto se surgir uma solução milagrosa, é inevitável a aceleração da disseminação e o contágio de amplas massas da população, levando o sistema de saúde ao colapso e à disparada no número de óbitos. É apenas uma questão de dias.
Se, a partir da evolução dos números dos boletins epidemiológicos em todo o mundo temos uma razoável noção do tamanho que a pandemia pode atingir, não temos a menor ideia do estrago econômico que dela decorrerá, em especial em uma economia profundamente dependente como a nossa. Sabemos apenas que a crise não se encerrará com o fim do surto. Pelo contrário, provavelmente a crise econômica que advirá será ainda mais profunda e arrasadora.
Todos os atores e forças políticas dos mais diversos matizes, tendo a leitura deste quadro, procuram se posicionar neste tabuleiro. Mesmo forças de direita que compõem a base de sustentação do governo, incluindo aqui parte significativa do alto comando militar, sabem da incapacidade de Bolsonaro de compreender esta realidade. Mais ainda, têm ciência de sua total incapacidade de estar à frente do enfrentamento da crise epidêmica, que se soma a uma incapacidade ainda maior de conduzir o país na reconstrução pós crise. O que estas forças não sabem ainda é o que fazer com o incapaz. Forçar uma renúncia? Apoiar um impeachment? Colocá-lo na condição de rainha da Inglaterra? Nesta última opção, como mantê-lo calado, visto que só consegue manter sua base de fanáticos mobilizada em condições de conflito?
Se a epidemia e a crise econômica atingirão as bases populares do Capitão – e isto poderá alterar o apoio que hoje detém –, é uma condição futura de curto prazo e logo saberemos. O fato, neste momento, é que se encontra totalmente isolado politicamente. Como na política só vaca não voa, não se pode dizer que não venha a se reposicionar, mas pelo seu histórico e capacidade intelectual, esta é uma possibilidade remota.
Todas as forças e personagens, exceto Bolsonaro e os que só conseguem fazer a leitura do atual momento em função das eleições de 2022, já compreenderam perfeitamente que não só o enfrentamento da crise sanitária, mas principalmente a reconstrução do país – que se não for terra arrasada será uma das maiores tragédias sociais e econômicas de nossa história –, não será tarefa de uma única força ou de um único campo político. A reorganização do país exigirá a constituição de uma ampla frente de reconstrução nacional, e quem não compreender isto perderá o bonde da história.
Mas qual será a característica e a orientação política/ideológica dessa frente? A frente se imporá como uma condição inevitável. Quanto às suas características, composição e orientação é algo imprevisível, pois aqui estamos tratando de forças que jogam o jogo jogado. É mais ou menos como se entrassem em campo para se enfrentar duas grandes equipes, com grandes craques, muito bem treinadas e com estratégias de jogo muito bem definidas e dominadas. O resultado do jogo é imprevisível, mas todos os jogadores sabem que o jogo tem que ser jogado