Diva Santana: “A luta por memória, verdade e justiça é do povo”
A ativista em direitos humanos Diva Santana, que dedicou mais da metade dos seus 76 anos de vida à luta, fala sobre o que resta da ditadura militar.
Publicado 12/04/2020 11:58 | Editado 12/04/2020 15:36
Os agentes do estado brasileiro imaginavam há 47 anos que desaparecendo com o corpo de Dinaelza Santana Coqueiro estariam também sepultando a memória e o legado dela. Dina era uma jovem baiana, nascida no município de Vitória da Conquista, que aos 22 anos ousou sonhar às margens do rio Gameleira. Uma mulher que abandonou a Universidade Católica de Salvador, onde cursava o segundo ano de geografia, e as comodidades da vida urbana para morar no campo, junto a pessoas de origem tão simples como a da sua mãe. Militava com o marido Vandick Reidner Coqueiro no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e junto com outros 67 comunistas aderiram à luta armada pelo fim da ditadura. Foi morta em 25 de dezembro de 1973, durante a terceira “campanha de cerco e aniquilamento” do exército brasileiro para derrotar a Guerrilha do Araguaia. O combate envolveu a maior mobilização de tropas brasileiras desde a Segunda Guerra Mundial.
Um assunto que o Brasil tem imensa dificuldade em rediscutir e reorganizar na memória para que possa ter esclarecido e enfrentado os traumas das torturas, assassinatos e desaparecimentos praticados pelo Estado. A confirmação da existência da guerrilha na região por parte do governo só aconteceu muito tempo depois de encerrado o conflito. As famílias nunca encontraram os corpos nem souberam das circunstâncias das mortes.
Mas a coragem e capacidade de sobrevivência na mata de Dina, como era carinhosamente chamada Dinaelza pelos camponeses do Araguaia, encontrou abrigo na luta incessante e incansável de Diva Santana em preservar a memória da irmã.
Presente desde a realização das primeiras caravanas de familiares à região do Araguaia, Diva frustrou a tentativa militar de desaparecimento simbólico dos guerrilheiros e foi monitorada pelo Serviço Nacional de Inteligência do governo, que registrou até mesmo conversas suas em bares de Salvador. Não obstante, foi figura central na construção do Grupo Tortura Nunca Mais, bem como de grande parte das políticas que levaram o Estado brasileiro a reconhecer seu papel nas graves violações aos direitos humanos ocorridas durante o período autoritário.
Conselheira da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Lei 9.140/95 e integrante do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, Diva Santana conversou com a equipe da Agência Saiba Mais sobre a apuração e esclarecimento público das violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período de 1964 a 1985, sobre a luta pela preservação da memória histórica e a construção pública da verdade.
A entrevista aconteceu na semana em que o país relembrou, mais uma vez com tristeza, o golpe de 1964, consumado em 31 de março daquele ano. Hoje, 53 anos depois, o atual governo brasileiro de características autoritárias e fascistas insiste em celebrar torturadores e algozes de brasileiros e brasileiras, como Dinaelza Santana, que deram a vida pela democracia. Por isso, mais do que nunca, é preciso recordar a história da família Santana, atualizando reflexões sobre a conjuntura histórica na qual a disputa pela memória ocupa a centralidade do debate político brasileiro.
Neste bate-papo, ativista em direitos humanos Diva Santana, que dedicou mais da metade dos seus 76 anos de vida à luta, fala sobre o que resta da ditadura:
Saiba Mais: Você luta até hoje para defender a memória da sua irmã, Dinaelza. Conte para quem não conhecem sua história, quem foi Dinaelza e como tem sido esses anos de busca?
Diva Santana: Dinaelza Santana Coqueiro era uma jovem, quando saiu da Bahia ela tinha 21 anos. Portanto, a gente já percebe que foi uma pessoa que teve uma vida muito curta. Entretanto, a juventude daquela época lutava por um Brasil melhor, lutava contra a repressão, lutava contra a falta de liberdade, lutava pela democracia, lutava contra a entrega das riquezas do país ao capital estrangeiro, e todos que faziam, que agiam dessa forma, eram perseguidos barbaramente pela ditadura militar. E Dinaelza era uma dessas jovens que lutou até morrer, lutou por esses ideais dela. Mas era uma menina simples, de origem de uma família simples. Estudiosos (Dinaelza e Vandick), ela fazia faculdade na Escola Católica de Salvador, cursava geografia, e Vandick, economia na Universidade Federal da Bahia.
Então, a minha luta é pela memória de Dinaelza, pela memória de todos que lutaram, resistiram. Muitos foram torturados, outros exilados, perseguidos. A conta é um número enorme, mais de 50 mil pessoas perseguidos pela ditadura. Nessas perseguições, alguns precisaram viver na clandestinidade, outros foram para o exílio, outros foram para luta armada e morreram, e muitos estão desaparecidos ainda. Então a minha luta é pela memória não só de Dina, como nós a chamamos, mas de todos e todas. E isso por que? Porque nós somos cidadãos brasileiros, temos o direito de contar o que aconteceu realmente com essas pessoas que lutaram e desapareceram. A minha luta é pela verdade, pela memória e pela justiça.
Qual a maior dificuldade dos familiares para ter acesso às informações que levem aos corpos e as circunstâncias da morte de seus parentes?
Todos os familiares, toda a sociedade organizada no Brasil, desde a luta pela Anistia que iniciou em 1996/97… em 96 iniciou com o movimento feminino pela Anistia, depois a luta pela Anistia -, que os democratas brasileiros, os familiares, lutam pelo esclarecimento das pessoas. Lá na época da Comissão da Anistia, a gente não sabia nem quem tinha morrido, então como foi crescendo o movimento de pressão daqui no Brasil, e mesmo fora do país, na área Internacional, na Europa e em outros países, essa luta por democracia, pelo fim da ditadura militar, foi crescendo e aos poucos alguns iam saindo das prisões e relatando o que viu, o que sofreu, com quem viveu, quem estava, quem viu morto.
O Araguaia é um caso à parte, onde tivemos o maior contingente de pessoas que foram atingidas pela repressão em um só determinado lugar. Então o Araguaia… a gente soube através de Genoíno quando preso. Porque Genoíno teve a oportunidade de, já no processo da chamada abertura política, alguns jornalistas irem ao presídio e fazer entrevista com ele. Dessa entrevista sai aquela revista Guerrilha do Araguaia e, nessa revista, segundo o relato de Genoíno, a gente chega à conclusão que a minha irmã e o meu cunhado estavam na região, porque ele disse como eles chegaram à região.
Eles (Dinaelza e Vandick) lá na região escreveram uma carta para os pais. Vandick escreveu para o pai dele, Dinaelza escreveu para meus pais. Ela conta – a carta foi no período em que eles chegaram, que não havia guerra – para minha mãe não se preocupar com ela, porque ela estava gordinha – que minha mãe era muito preocupada com ela porque ela era magra, e a filosofia de minha mãe era os filhos com saúde todo mundo gordo, então Dinaelza se alimentava pouco, era magra e ela se preocupava – que ela vive no lugar de gente muito simples, que parece muito com a família da minha mãe, que ela lembra muito da família da minha mãe. Isso porque a família da minha mãe é de origem do campo, então minha mãe que é uma mulher muito inteligente, ela percebeu que Dinaelza estava em algum lugar no campo, não sabíamos aonde e só viemos a saber depois do processo da luta da Anistia.
Os trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos sofreram intervenção de Jair Bolsonaro logo depois de expedida uma nova certidão de óbito para Fernando Santa Cruz, dizendo tratar-se de morte não natural violenta causada pelo estado brasileiro. Bolsonaro trocou quatro dos sete membros da comissão, colocando dois militares e dois políticos do PSL. No meio disso tudo, os trabalhos da comissão estão ameaçados?
Até agosto do ano passado, essa comissão vinha sendo coordenada pela doutora Eugênia Gonzaga, procuradora Federal, que foi nomeada pela presidente Dilma Rousseff, e que vinha desenvolvendo um grande trabalho. Inclusive promoveu um encontro de familiares em dezembro de 2018. Essa comissão estava trabalhando em fazer as retificações dos atestados de óbitos dos desaparecidos. Por que isso? Porque o atestado de óbito da minha irmã e de todos os outros, eu digo minha irmã porque está mais próximo de mim, mas também de todos os outros, diz o seguinte: Dinaelza Santana Coqueiro, filha de Antônio Pereira e Júlia Soares Santana, nasceu em Vitória da Conquista, Bahia, profissão tem pontinhos, residente também pontinhos da máquina. Aí lá no atestado de óbito, já é um papel oficial, diz a causa morte. Então a causa morte é a lei 9140/95, local de sepultamento, a lei 91/45. Então é esse o atestado de óbito que nós temos. Eu ainda tenho, ainda porque eu não consegui receber o da Dianelza. Algumas famílias conseguiram receber certificado diante de decisões judiciais de corrigirem as causas da morte. Muitos morreram na tortura, enquanto a história oficial é que morreu trocando tiro, que morreu de acidente. Então diante de muitas sentenças de vários juízes do Brasil corrigem essa coisa horrorosa, essa mentira, mais essa mentira, dizendo lá no atestado de óbito que as pessoas morreram de causa não natural pela violência do Estado.
Diante dessas sentenças, a doutora Eugênia pediu parecer da Controladoria Geral da União (CGU) sobre a possibilidade da comissão, junto com os cartórios, fazerem essa retificação na certidão de óbitos. E conseguiu umas quatro, outras estavam em andamento. Porque estava se corrigindo essas certidões, que em vez de local de sepultamento lei 9140/95, era morte violenta pelo estado brasileiro. É só isso que consta, nem fala sobre tortura nem nada, só isso. Então isso era uma atividade que a comissão vinha desenvolvendo.
A comissão também vinha desenvolvendo buscas com arqueólogos, com a Márcia Tori, que é uma arqueóloga que tá na Espanha agora fazendo um trabalho de buscas e pesquisas também das pessoas que foram reprimidas, mortas e desaparecidos pelo franquismo. Ela vinha realizando esse trabalho de resgate dessa memória, de trabalho com as ossadas do cemitério de perus. Na época que a Erundina foi prefeita de São Paulo, se conseguiu tirar mais de mil ossadas e, destas, quatro já foram identificadas. Duas bem recente, uma delas do Aluísio Palhano, que consta em todos os pareceres dos ex-presos políticos, inclusive da Inês Etienne, e de outros torturadores que conseguiram falar nas comissões da verdade. O Aluísio Palhano estava na Casa da Morte, em Petrópolis. Todas as 50 pessoas que estiveram neste local estão desaparecidas, com exceção da Inês Etienne. Ela teve lá um meio de conseguir sair. Então a Inês Etienne saindo denunciou as pessoas que ela viu ali na Casa da Morte, todas essas pessoas que passaram por lá são desaparecidas. E, com esse trabalho de pesquisa, de estudo científico, se chegou à conclusão que uma das ossadas do cemitério de perus era de Aluísio Palhano.
Por outro lado, havia também um trabalho de memória, de fortalecer nos Estados, principalmente nos locais onde ocorreram torturas, prisões, de levantar e construir memoriais de resistência do povo brasileiro, onde as histórias de todos estariam sendo contadas. Tem o memorial da Anistia, que foi iniciado pela comissão da Anistia, já se investiu um bom dinheiro e que tá quase pronto, mas hoje abandonado lá em Belo Horizonte, que era uma antiga faculdade que doou à comissão da Anistia, doou à União, o terreno e a casa que tinham para ser construído o memorial, e isso tá tudo interrompido.
Fora outras coisas que a comissão vinha desenvolvendo, realizando atividades e audiências públicas nos Estados, ouvindo as pessoas. Tudo isso foi interrompido com a mudança de Eugênia para quatro pessoas que não tem nenhum histórico de resgate de memória e de verdade, que não tem nenhum respeito por isso. Porque eu represento os familiares, a Vera Paiva representa a sociedade civil e o Ministério da Defesa, que pela lei pode indicar um representante, agora tem dois representantes. Um deles um coronel. Um coronel representando a sociedade civil é a coisa mais esdrúxula do mundo.
Como sociedade civil, familiares podem e devem pressionar para que a comissão continue funcionando? O que tem para ser feito? Como cobrar?
Nós estamos com um presidente desastrado, eu não chamo ele de louco porque eu respeito os loucos. Um cara incompetente, que não tem condições de dirigir um país igual a este. Um país grande, um país com problemas a resolver. Um presidente que defende torturador. Quando do impeachment de Dilma ele defendeu em voz alta, do microfone, um sanguinário, torturador, que é o Brilhante Ustra. Esse mesmo presidente, quando deputado federal, colocou na porta de seu gabinete o retrato de um cachorrinho com a frase embaixo “Quem gosta de osso é cachorro. Guerrilha do Araguaia”
Se outros presidentes dessa nação, como o Fernando Henrique Cardoso, como Luiz Inácio Lula da Silva, como Dilma Rousseff, pouco fizeram pelo tema, desse aí (Jair Bolsonaro) eu não espero nada. Ao contrário, estou muito atenta e ligada para a repressão dele, porque é o que ele sabe fazer.
Bolsonaro se diz defensor da tortura e dos torturadores. Durante a votação de impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro, que era deputado, homenageou Ustra. No processo eleitoral, chamou o torturador de herói. Agora, como presidente, segue chamando Ustra de herói e atacou Felipe Santa Cruz. E vem incentivando comemorações ao golpe de 1964. Esse é um comportamento aceitável para um presidente da República?
A Lei da Anistia de 1979 isenta a punição aos torturadores. Então, por essa lei, até hoje – eu acho que é um dos únicos países onde a repressão foi muito forte onde torturador não foi punido, poucas foram as decisões judiciais que apontam Brilhante Ustra como torturador, ou fala do torturador de Vladimir Herzog -, o torturador em si mesmo não recebeu punição, ao contrário, recebeu foi o título de Palma de Ouro, foi homenageado. Os torturadores aqui no Brasil… eles não foram e não são punidos. Eu quero trazer para a atualidade, porque naquela época da Guerrilha nós não tínhamos uma lei específica da tortura, o que nós tínhamos era um tratado, uma assinatura num Tratado internacional, em Genebra. Um tratado internacional contra a tortura, que qualifica a tortura como crime hediondo e de lesa-humanidade. Depois com a Constituição de 1988, o Brasil passa a ter uma lei que criminaliza tortura, entretanto são poucos os torturadores atuais que cumprem pena por conta dos seus crimes.
Até hoje o Brasil não conseguiu punir torturadores da ditadura, embora haja dezenas de processos apresentados pelo MPF. Qual é a relação disso com a eleição de um presidente que elogia a ditadura e torturadores?
É uma questão de Justiça. O Supremo Tribunal, em que pese nós termos duas sentenças, uma do Brasil, da Primeira Vara Federal, e a outra da Corte Internacional dos Direitos Humanos, que pede punição aos torturadores, nossa Justiça, o Supremo Tribunal Federal, desconhece este clamor popular que é a justiça aos torturadores. Todos até agora que tem se pronunciado, a OAB, que já entrou com recurso para julgamento, a Eugênia Gonzaga que também já entrou, estão nas mãos do ministro Fux, que não responde essas questões, porque é aquela coisa, precisamos entender como são as políticas do nosso país. As políticas dos países sempre ocorrem através de acordos, e a Lei da Anistia eles dizem que foi um acordo. Agora a gente pergunta: acordo como cara-pálida, se nós tínhamos um congresso totalmente monitorado pela ditadura militar? Fez acordo com quem? Não houve acordo, então é essa coisa da questão de Justiça. Essa questão da punição aos torturadores, ao contrário, eles foram homenageados. Eu tenho um livro aqui de torturador que recebeu Palma de Ouro pela repressão que ele cometeu na Guerrilha do Araguaia. Eu vi também depoimento dele em que ele se engrandece e se enaltece. Isso é muito doloroso. Isso é muito doloroso para nós familiares, é doloroso para o Brasil.
Eu acho que as sentenças que têm ocorrido mais recentemente sobre torturadores que mataram o Vladimir Herzog, Drumond e tantos outros, vem fortalecer a luta do povo brasileiro por democracia, por memória, por verdade e por Justiça.
Como vítima da ditadura, o que diria às pessoas num momento em que algumas vozes pedem a volta da ditadura?
Eu diria para continuar nessa luta, para continuar exigindo que o governo brasileiro, que já assumiu as mortes, assuma as circunstâncias das mortes, diga quem foi que matou, como matou e onde está enterrado. Isso não foi dito até hoje. Então é uma luta permanente. Por que uma luta permanente? Aí eu entro plagiando o Érico Veríssimo, uma das crônicas dele, onde diz que o corpo fala. Quando se mata, mata a pessoa, mas não mata as ideias, o corpo reclama.
Precisamos conscientizar que essa luta por memória, por verdade e por Justiça não é uma luta somente dos familiares, é uma luta do povo brasileiro. Nós não podemos nos calar mais. Esse país que tem tantos intelectuais, cientistas famosos e bons, competentes, e nós, brasileiros, diante da nossa nação, não podemos permitir mais que arquivos gerados com dinheiro público sejam queimados. Como foi o caso da escravatura do Brasil, como é o caso da ditadura militar recente, e tantos e tantos outros casos de repressão do estado em que alguns que se acham iluminado se acha no direito de queimar um documento que foi feito com dinheiro público. E essa queima também nunca foi punida. São vários crimes que se cometem e que não há punição no país. Então a gente tem que mobilizar, viver mobilizado sempre.
Eu não deixarei de lutar. Não só pela minha irmã, mas para que todos os cidadãos brasileiros tenham o respeito. Todos têm que ter sua história, a sua memória preservadas. A gente precisa continuar nessa luta. Agora para continuar nessa luta você precisa no mínimo viver no estado democrático. E isso também é uma luta permanente, a gente tem que garantir a democracia para poder continuar lutando pelo que a gente acredita e pelo que a gente gosta, por um Brasil melhor.
Fonte: Agência Saiba Mais