Desconfiada de governos, favela contrata seu próprio serviço médico

Não se sabe de onde vêm os recursos, mas o Covid-19 será combatido na favela paulistana de Paraisópolis sem esperar ajuda do governo

Favela de 120 mil habitantes convive cercada pelo luxo do Morumbi, bairro nobre de São Paulo (Foto: Reprodução)

Sempre que alguém quiser mostrar um ícone de desigualdade social no mundo, usa-se uma clássica fotografia de Paraisópolis, a favela paulistana próximo ao bairro do Morumbi. A favela se choca com edifícios de alto padrão, com uma piscina em cada andar. A total falta de planejamento e infraestrutura numa comunidade pobre de 120 mil moradores cercada do mais alto luxo capitalista. Por isso, mesmo, esta comunidade chama a atenção na mídia sempre que acontece algo inusitado lá.

Além dos seis casos oficiais confirmados, uma equipe de resposta à epidemia de corona vírus reunida no centro da favela suspeita de outros 60. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, a equipe médica reunida com lideranças comunitárias da favela não tem ligação alguma com o governo. A autoridade máxima da comunidade é o Primeiro Comando da Capital, a maior e mais poderosa facção criminosa do país.

A associação de moradores contratou um serviço médico privado 24 horas por dia, incluindo três ambulâncias, dois médicos e duas enfermeiras, além de socorristas. Como o presidente Jair Bolsonaro chegou a classificar o vírus como “gripezinha” e disse aos brasileiros que voltassem ao trabalho, as lideranças comunitárias locais tentam preparar a população para “o pior”.

Dizem que a equipe médica foi contratada por 30 dias, “em parte”, graças a doações. Alegam que a população local já era desassistida pelo Estado, o que deve piorar com a epidemia. De fato, a aglomeração de pessoas, o saneamento precário, a falta de assistência médica e não respeitar medidas de isolamento tornam as favelas particularmente vulneráveis ao vírus.

Muitos dos moradores de Paraisópolis trabalham no rico bairro vizinho do Morumbi, marco zero do surto no Brasil, por pessoas com condição financeira suficiente para viajar para o exterior. A doença que começou atingindo gente rica, recém retornada de viagens à Itália ou China, deve atingir severamente os mais pobres.

Segundo a reportagem, entre os moradores de Paraisópolis que testaram positivo, dois trabalham no Hospital Albert Einstein, instituição médica privada que diagnosticou o primeiro caso na América Latina. Outro caso é de uma babá. Enquanto aquelas pessoas mais ricas podem fazer quarentena e home office, a maioria pobre se apinha em ônibus e trens para ir trabalhar.

Representantes governamentais ressaltaram a ajuda a bairros pobres como Paraisópolis com refeições subsidiadas e cancelamento dos protestos de dívida por 90 dias, além do atendimento médico público não ser diferente do restante da cidade, como a garantia de entrada de ambulâncias na favela.

A Prefeitura de São Paulo, em comunicado, disse que distribui alimentos e itens essenciais aos moradores de Paraisópolis, além de enviar carros com alto-falantes ressaltando a importância de lavar as mãos e ficar em casa. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) informou que estava distribuindo 2.400 caixas d´água para bairros pobres para ajudar durante a crise de saúde. Moradores de Paraisópolis já receberam mais de 900. No entanto, devido à precariedade habitacional do conjunto urbanístico das favelas, tudo parece muito pouco.

Isolamento em meio à aglomeração

Moradores de Paraisópolis reclamam que a água acaba depois das 20h e o lixo fica acumulado ao longo dos becos estreitos e úmidos que atravessam a comunidade.

Um dos diagnósticos confirmadas pegou o vírus, mesmo usando luvas descartáveis e máscara ao atender clientes numa farmácia. Após o teste positivo, ele se isolou no segundo andar de um imóvel onde fica trancado tossindo sozinho. Este caso de um homem só no imóvel é minoria na favela. Em uma casa apertada uma mulher estava em isolamento, doente, com sintomas de coronavírus. Mas seus três filhos, mãe e irmão não tinham para onde ir, por isso continuavam morando com ela.

Para enfrentar esse desafio, a associação de moradores está tentando usar duas escolas locais –fechadas devido ao coronavírus– para abrigar até 500 casos suspeitos e confirmados, sem sintomas graves. Apesar de todos os preparativos, há preocupação que os moradores não estejam levando a ameaça a sério o suficiente. Ao contrário do restante de São Paulo, onde há um isolamento, em Paraisópolis a maioria dos bares e lojas permanece aberta. As ruas estão movimentadas.

Brasil profundo

Ao contrário de Paraisópolis, que pode contar com “doações” e fica num grande centro urbano, a reportagem da Folha mostra que, no interior do país, a situação é ainda pior.

No povoado Melancia, zona rural de Nova Soure (240 km de Salvador), a praça está vazia, a igrejinha fechada e são raras as pessoas que se arriscam a sair nas ruas. A 16 km da sede, o povoado, que tem cerca de mil habitantes que vivem da agricultura de subsistência e da criação de ovinos, registrou seu primeiro caso do novo coronavírus há dez dias.

A chegada da pandemia às pequenas cidades do interior de estados do Nordeste resultou em um novo desafio para prefeituras que já lidam com falta de renda e um sistema de saúde precário. Só na Bahia, há casos registrados em 15 cidades com menos de 50 mil habitantes. Em geral, são municípios sem respiradores e leitos de UTI e que são ligados aos grandes centros por estradas esburacadas.

Em Nova Soure, a doença chegou com a médica do posto de saúde do povoado de Melancia, que mora em Salvador e atendeu 56 pacientes quando já estava infectada. A prefeitura monitora 75 casos suspeitos e mantém em quarentena outras 423 pessoas que vieram de áreas com registros da doença —incluindo o prefeito, Cássio de Souza Andrade.

Nova Soure tem dez unidades básicas de saúde e um pequeno hospital, mas sem leitos de UTI. Com a pandemia, a prefeitura comprou dois respiradores e começou a implantar salas de estabilização até que apareça leito em cidade maior.

A situação não é diferente em outras cidades do Nordeste que começam a registrar casos do novo coronavírus, inclusive nas cidades de médio porte. Em Paulo Afonso, cidade baiana de 117 mil habitantes que fica na fronteira com Alagoas e Sergipe, não há leitos de UTI. Com a crise, a prefeitura corre para adaptar leitos de UTI com respiradores em uma Unidade de Pronto Atendimento que ainda não havia sido inaugurada. A estrutura mínima pretende atender outras nove cidades vizinhas que dependem da rede de Paulo Afonso.

Na Paraíba, um empresário de 36 anos, dono de uma rede de farmácia, precisou viajar quatro horas numa ambulância entre Patos, cidade com 107 mil habitantes do sertão, e um hospital de referência da Covid-19 em João Pessoa. Após apresentar um quadro de tosse, no dia 25 de março, ele foi inicialmente para uma unidade particular em Patos. Um dia depois, devido à complexidade do caso, precisou ser encaminhado para João Pessoa. Após ter sido entubado, o paciente, com histórico de diabetes, morreu no dia 31 de março.

Foram registrados ainda outros dois casos da doença no sertão paraibano. Um em Sousa, cidade com 60 mil habitantes, distante mais de 430 km de João Pessoa, e outro na vizinha Igaracy, com população de pouco mais de 6.000 pessoas. Os dois pacientes estão em isolamento domiciliar.

Na 6ª região de Saúde da Paraíba, que engloba 24 municípios do sertão, grande parte deles sem a mínima estrutura hospitalar, o hospital regional Janduir Carneiro, em Patos, recebe os doentes da região. Há apenas seis leitos de UTI.

Em Pernambuco, a doença também já chegou ao sertão. Um caso foi registrado em Ipubi, cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, distante 581 km da capital pernambucana. O paciente, com quadro estável, foi encaminhado para a cidade vizinha de Ouricuri, onde só existem leitos de UTI privados. Ele não precisou ser levado ao Recife porque o quadro de saúde é estável e, até o momento, não houve necessidade de cuidados de terapia intensiva.

Especialistas ligados ao governo federal explicam que o sistema não foi dimensionado para uma pandemia, daí a importância de construir hospitais de campanha em áreas estratégicas do interior para agilizar o atendimento aos pacientes e não sobrecarregar as capitais, onde há maior número de infectados. Nesses locais, uma pessoa com febre, dor no corpo, e dificuldade para respirar, ainda ter que percorrer, em alguns casos, 15 horas para chegar a um hospital da capital.

Nesta quarta-feira (2), o governo de Pernambuco anunciou a abertura de dez leitos em Petrolina, no sertão, dedicados à Covid-19. Um hospital de campanha com cem leitos será montado em Serra Talhada, a 430 km do Recife.

Impacto econômico

Além do impacto no sistema de saúde, o isolamento social trouxe um forte impacto para o comércio das pequenas cidades, com o fechamento de lojas e, principalmente, a proibição de feiras livres. O cenário fez com que a economia das cidades se tornasse ainda mais dependente de aposentadorias e programas de transferência de renda.

O possível cancelamento das festas de São João deve completar o baque, já que a festa é a segunda principal data do comércio nas cidades nordestinas. Cidades como Conde (PB), Conceição do Almeida (BA), Petrolina (PE) e Monteiro (PE) já anunciaram o cancelamento da festa.

As prefeituras ainda têm como desafio fazer com que os moradores respeitem a quarentena e fiquem em suas casas. Em Nova Soure, na Bahia, agentes da prefeitura orientavam a formação de filas na entrada dos bancos, lotéricas, açougues e mercadinhos.

Ao contrário das recomendações das autoridades sanitárias, havia um grande número de pessoas, incluindo idosos, nas ruas e praças da cidade. Muitos deles são funcionários ou proprietários dos estabelecimentos comerciais que estavam abertos.

No povoado de Melancia, mesmo com casos registrados, os moradores evitam as ruas, mas têm ido diariamente para suas roças. Também evitam ir à sede do município, onde ficaram estigmatizados por viverem em uma área com casos confirmados da doença. Pessoas de outras cidades também não são bem-vindas em Nova Soure. Como foi o caso das pessoas que recusavam chegar perto d0a reportagem da Folha.

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