Covid-19 e o racismo ambiental disfarçado de consciência ecológica
Estou vendo várias pessoas compartilhando notícias sobre a “recuperação ambiental do planeta” com essa pandemia de coronavírus e alguns comentários chamaram a minha atenção e me preocuparam enquanto biólogo e progressista. Então, escrevi esse texto baseado nas minhas leituras e espero ajudar na construção de uma reflexão mais adequada dentro do cenário político-econômico-ambiental em meio de uma pandemia. Para isso, trarei à luz alguns conceitos complexos, mas importantes nesse contexto: racismo ambiental e capitaloceno.
Publicado 25/03/2020 12:29
Recentemente, notícias sobre como o planeta tem se “recuperado” após a quarentena do coronavírus tomaram conta das redes sociais, e essas notícias quase sempre, vieram acompanhadas de comentários como: “nós somos o vírus do planeta”, “o planeta precisa descansar dos humanos”, “o mal do mundo é o ser humano”, etc. Essas reações de culpabilidade da humanidade sobre a destruição do planeta Terra me fizeram lembrar do conceito de Antropoceno (1), formulado pelo biólogo Eugene F. Stoermer e conceituado pelo químico e vencedor do Prêmio Nobel, Paul Crutzen. Na ideia do Antropoceno, as atividades humanas sobre a biosfera, desde a Revolução Industrial no final do século XVIII até a atualidade, têm impactado de forma negativa o clima, a saúde e o funcionamento dos ecossistema. Portanto, a humanidade como um todo seria a grande causadora de drásticas alterações no planeta.
No primeiro momento, os comentários no Facebook, o conceito de Crutzen e os efeitos preliminares da quarentena do coronavírus em alguns países parecem convergir em um ponto: as populações humanas causam danos significativos ao ambiente. Mas quando colocamos em perspectiva que a sugestão dada nas redes sociais é a redução da população para combater a degradação do planeta, temos que pensar sobre quem são de fato os grandes poluidores ou destruidores dos ecossistemas. Nesse contexto, o conceito de Capitaloceno me parece mais assertivo e é um contraponto ao Antropoceno. Segundo Jason Moore, na verdade nós estamos vivendo na Era do Capital, onde grandes capitalistas com suas corporações são os maiores responsáveis pelas alterações no clima, nos ecossistemas e nos ciclos biogeoquímicos do planeta (2). De fato, se analisarmos o relatório publicado pela Oxfam na 21ª Conferência das Partes (COP21) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) veremos que o conjunto de 10% das pessoas mais ricas do mundo é responsável por quase 50% da produção dos gases poluentes lançados na atmosfera do planeta. Por outro lado, a metade mais pobre da população mundial é responsável apenas por 10% da emissão dos mesmos gases (3). O mesmo relatório aponta que o 1% mais rico da população gera 175 vezes mais carbono do que os 10% mais pobres. Portanto, é necessário pontuar que o “vírus do planeta” ou que “o mal do mundo” não é a humanidade como um todo. Na realidade, os grandes problemas climáticos e ambientais são causados pela acumulação infinita de capital protagonizada por um pequeno grupo de bilionários.
Nessa lógica, num cenário de pandemia de uma doença com razoável letalidade, temos que tomar cuidado quando colocamos em discussão que “o planeta precisa descansar dos humanos” porque aí caímos no racismo ambiental. Esse termo foi cunhado por Benjamin Franklin na década de 1980 para descrever a injustiça ambiental sofrida por pessoas racializadas e pertencentes a minorias étnicas expostas mais acentuadamente a poluentes ou impactos ambientais de forma desproporcional ao restante da população (4). Atualmente o termo adquiriu um contexto internacional incluindo também as relações ecológicas desbalanceadas entre países do Norte Global industrializado e o Sul Global, e está associado ao colonialismo e ao neoliberalismo (5). Mas por que estou falando de racismo ambiental numa crise de coronavírus? Primeiro porque podemos considerar esse vírus como uma variável ambiental que está causando um desequilíbrio nas populações humanas. Segundo porque as pessoas mais vulneráveis à pandemia são moradores de rua, residentes das periferias e a população carcerária, todos esses grupos compostos majoritariamente de pessoas racializadas e minorias étnicas. Vale lembrar que no Brasil tivemos o caso chocante da doméstica que morreu pela Covid-19-coronavírus após ser infectada pela patroa que voltou contaminada após uma viagem pela Itália. Portanto, quando sugerimos, mesmo que de forma suave, que “o planeta precisa descansar” precisamos refletir sobre: Descansar de quem? Quem são as pessoas com maiores chances de mortalidade num país e num mundo marcado pela desigualdade social?
Precisamos ter em mente que os desastres ambientais atingem prioritariamente as populações mais pobres e que em um mundo governado pelo capital, tempos de crise sempre serão seguidos da corrida pela retomada do lucro, com mais exploração, mais morte e mais desigualdade para as classes pobres e consequentemente mais impactos ambientais para o planeta.
Referências:
1. Crutzen, P. J., and E. F. Stoermer (2000). The Anthropocene. Global Change Newsletter, 41: 17–18.
2. Jason, W. Moore (2017): The Capitalocene, Part I: on the nature and origins of our ecological crisis, The Journal of Peasant Studies
3. Oxfam (2015). Extreme carbon inequality. Why the Paris climate deal must put the poorest, lowest emitting and most vulnerable people first. United Nations Climate Change Conference, COP 21, Paris.
4. Cutter, S. L. (1995). Race, class and environmental justice. Progress in Human Geography, 19: 111 – 122.
5. Bullard, Robert D. (2001). “Environmental Justice in the 21st Century: Race Still Matters”. Phylon. 49: 151–171.
MAIS INFORMAÇÕES:
Capitaloceno: https://pt.unesco.org/courier/2018-2/perspectiva-da-dominica-antropoceno-ou-capitaloceno
Relatório da OXFAM: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-12/10-dos-habitantes-mais-ricos-do-planeta-geram-mais-de-50-das-emissoes