Orlando Silva: À deriva em mar revolto

Devemos estar preparados para os riscos de um presidente cada vez mais isolado, violento e refém de teorias da conspiração

Estamos diante de uma tormenta sem precedentes neste período recente. Os sinais de que o Brasil seguia caminhos tortuosos estavam ali para quem quisesse ver: o crescimento anêmico, a bem dizer estagnação, com o pibinho de 1,1% em 2019; a retração das exportações na ordem de 2,5% no mesmo ano, resultado de irresponsabilidade na política ambiental e também dos muitos contenciosos do atual governo com parceiros comerciais; a contínua escalada do dólar, que já vinha forçando o BC a torrar nossas reservas em moeda americana.

O cenário descrito acima já existia antes da crise do novo coronavírus e da disputa entre Rússia e Arábia Saudita acerca do preço do petróleo. Mas o governo fazia ouvidos moucos às vozes contrárias e projetava um crescimento irreal da economia para 2020, tanto que as estimativas já haviam sido revisadas para baixo – como vimos no ano passado, que projetava crescimento de 2,5% e terminou com o resultado pífio já relatado.

Com os efeitos da pandemia, o chão faltou aos pés do Brasil, vez que o governo nem remotamente se preparou para um solavanco dessa magnitude. A situação é dramática: a Bolsa, que chegou a sonhar com os 120 mil pontos, gira agora na casa de 66 mil, com perdas multibilionárias; o dólar superou com folga os R$ 5, algo que Paulo Guedes disse que só aconteceria se fizesse muita besteira. A quarentena impõe enormes perdas econômicas, o que já faz com que se projete uma retração de 1% no PIB do País.

E o governo? O governo Bolsonaro assistia atônito, paralisado, inerte, enquanto o clima de pânico e caos que se instalava no país. Diante de uma crise real – e não fantasiada pelos lunáticos da banda olavista –, mostrou-se incapaz de liderar iniciativas e passar segurança à população e aos agentes econômicos. Ao contrário, o próprio presidente da República minimizou por diversas vezes o gravíssimo problema de saúde pública e contrariou medidas expressamente defendidas pelas autoridades técnicas ao confraternizar com manifestantes fascistas na porta do Palácio do Planalto.

A maior parte do esforço de enfrentamento à disseminação do coronavírus tem ficado a cargo de governos estaduais e municipais que, diante dos fatos incontornáveis, têm tomado as medidas possíveis de restrição de serviços e circulação de pessoas. Em São Paulo, até shoppings e comércios foram fechados; no Rio de Janeiro houve mesmo restrição na circulação de transporte público, para ficar em dois exemplos.

No tocante ao governo federal, mesmo reconhecendo a sanidade mental – no meio em que está, ser normal já é qualidade – e o esforço do ministro Mandetta, é inexplicável, por exemplo, que ainda não haja mobilização das autoridades sanitárias para monitorar os passageiros que chegam em aeroportos.

O Congresso Nacional iniciou a aprovação do Decreto Legislativo que reconhece a situação de estado de calamidade pública. Esse status, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, dá ao governo o espaço orçamentário e financeiro para fazer os investimentos necessários, notadamente no SUS, para o enfrentamento da crise. Permite também financiar outras iniciativas que garantam uma renda mínima aos que precisam, de maneira que a população brasileira possa atravessar esse momento tão difícil.

Sua rápida aprovação, sob minha relatoria na Câmara, demonstra que o parlamento é um pilar fundamental da democracia e não se furtará a cumprir seu papel na superação da pandemia que aflige o país. Mas também não dará um cheque em branco ao governo, que estará obrigado a prestar contas dos gastos e partilhar as informações com o Legislativo.

Fraco e incapaz, Bolsonaro ficou pequeno diante da crise. Aliás, como bem o classificou o Estadão em editorial, o presidente virou um “estorvo”. Tanto é que depois da casa arrombada, resolveu trocar a fechadura da porta: convocou uma quase circense coletiva de imprensa, com toda a equipe ministerial, pretendendo mostrar que o leme do navio segue em suas mãos. A iniciativa virou constrangimento público, com o presidente emparedado por repórteres cobrando autocrítica sobre sua postura inconsequente de afirmar que havia uma “histeria” sobre a doença.

Preocupado em falar com sua base de apoio, Bolsonaro aproveitou o palco montado para convocar um ridículo “panelaço a favor”, em contraponto às diversas manifestações que ganharam o país nos últimos dias. A emenda saiu pior que o soneto: a empáfia presidencial só amplificou o som das panelas de milhões de brasileiros enojados com seu governo mistificador e disseminador de ódio. Diante da erosão de sua autoridade, devemos estar preparados para os riscos de um presidente cada vez mais isolado, violento e refém de teorias da conspiração.

O que se comenta em Brasília é que Bolsonaro acusou o golpe e vem perdendo apoio rapidamente, mesmo entre seus apoiadores de primeira hora. É como se as palavras corajosas do haitiano que contrapôs o presidente na saída do Palácio tivessem despertado grandes parcelas da população de um estado letárgico. Subitamente, muitos acordaram para a realidade apavorante: com Bolsonaro, o Brasil está à deriva em mar revolto.

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