Paulo Kliass: A crise global, um convite à dissidência

Queda no preço do petróleo e coronavírus revelam agonia dos mercados, desconectados com a economia real. No Brasil, mito de “austeridade” já desmorona e nova oportunidade abre-se: revogar a EC 95, que congelou gastos sociais por 20 anos

Existe uma longa e antiga polêmica entre os estudiosos de linguística a respeito das origens do ideograma utilizado em chinês mandarim para algo próximo ao conceito ocidental corrente de “crise”. Para alguns, ele seria uma síntese do ideograma usado para “perigo” ou “risco” com outro relativo ao termo “oportunidade”. Enfim, apesar da relevância desse debate, no caso prefiro ficar com a expressão popular do italiano “se non è vero, è ben trovato”. Pode até não ser verdade, mas funciona muito bem para ilustrar o nosso caso tratado aqui hoje com vocês.

A semana começou com essa segunda-feira de um caos impressionante, uma crise profunda nos mercados financeiros pelo mundo afora. As perdas instantâneas dos valores patrimoniais poderiam ser medidas, de acordo com a vontade do freguês, em unidades como milhões, bilhões ou mesmo trilhões de dólares. É bem verdade que esse tipo de oscilação nos mercados de papéis é bastante conhecida. Podem variar a magnitude, a profundidade e a duração. Mas o crescimento do volume de títulos sem qualquer lastro na dinâmica da economia real tem transformado, a cada novo período, os movimentos no espaço do financismo em pura especulação, autêntica jogatina em todo o seu esplendor.

Enquanto as coisas andam mais ou menos como previsto pelos grandes jogadores (o interessante é que, em inglês, o termo usado é mesmo “player”), o “game” segue em frente, com algumas perdas e muitos ganhos. Mas como se trata de uma falsa pirâmide da alegria, ao menor sobressalto inesperado, o sistema todo é colocado em xeque. Existem muitos economistas pelo mundo afora que estão, há muito tempo, alertando para os riscos de se dar continuidade a essa dinâmica de um mercado sem lastros na economia produtiva real, um verdadeiro gigante com pés de barro. Nouriel Roubini e Stephen Mihm, por exemplo, escreveram um livro (A economia das crises) logo após a debacle de 2008/9 – e pelo jeito os operadores do sistema preferiram não dar muita atenção ao assunto.

12 anos de espera

Aquele episódio crítico teve início no mercado financeiro dos Estados Unidos, mas rapidamente se espalhou pelos demais continentes. Apesar de tudo ter começado com o descompasso no interior do sistema de hipotecas imobiliárias, havia uma articulação profunda entre elas e as demais instituições bancárias e financeiras. O resultado foi a quebradeira generalizada que se viu na sequência. No fundo, havia ocorrido uma pulverização descontrolada de novos instrumentos financeiros sem regulação alguma por parte das autoridades públicas responsáveis pela saúde do sistema. Essa onda de liberalização geral no financismo ultrapassou as fronteiras norte-americanas e ganhou uma perigosa dimensão global.

A crise atual pode até não permanecer por tanto tempo e nem mesmo apresentar as consequências tão duras como a anterior. Mas é inegável que as bases de uma economia que se valoriza a cada dia em cima apenas da movimentação de papéis sem lastro algum só fez aumentar ao longo da última década. Ainda que contraditoriamente, o aprofundamento da conexão internacional torna o sistema também mais frágil. Bastou um movimento mais sensível de disputa entre Rússia e Arábia Saudita em torno do petróleo, tendo como pano de fundo os efeitos desconhecidos do coronavírus sobre a atividade econômica mundial. E pronto – os senhores do dinheiro e do patrimônio globais impuseram a segunda temporada da devastação.

No caso brasileiro, essa experiência igualmente trágica seria uma excelente oportunidade para que pudéssemos passar a limpo essa longa e desastrada temporada da austeridade irresponsável. É bem possível que o pânico que tomou conta de boa parte dos detentores de patrimônio em nossas terras talvez tenha vindo acompanhado de algum grau da reflexão necessária a respeito da fragilidade desse modelo. Muitos defensores das principais medidas implementadas desde o início do austericídio em 2015 agora percebem que foi tudo tiro no pé.

É o momento da mudança

E agora começam a sugerir algum tipo de mudança de rota. O nó górdio de tudo isso se refere à recuperação do protagonismo do Estado na retomada do crescimento. A cada novo cataclismo se fortalece a ideia de que não basta mais esperar a fadinha das expectativas de quem quer que seja o ocupante do comando da economia de plantão: Joaquim Levy, Henrique Meirelles ou Paulo Guedes. Isso significa que o momento é de retirar as amarras que foram colocadas na possibilidade de elevar o investimento público em áreas estratégicas (como infraestrutura) e de preservar as despesas correntes em setores como saúde, educação, previdência social, gastos com pessoal, saneamento, assistência social, etc.

O momento é de promover a revogação da EC 95, que estabeleceu o trágico congelamento das despesas não financeiras por duas longas décadas. Um crime contra a maioria da nossa população. O momento é de se criar um programa amplo de investimentos públicos, que sinalize para o fortalecimento de setores considerados estratégicos para o futuro de nossa sociedade. O momento é de aprovar um programa voltado para a recuperação do emprego e da renda, com apoio de políticas públicas estimuladoras desse objetivo fundamental para a saída da crise. O momento é de se votar uma reforma tributária progressiva e solidária, para que os setores que nunca deram sua mínima contribuição passem a fazê-lo por meio de impostos mais jutos sobre patrimônio, lucros, dividendos e rendas elevadas.

Mesmo no interior dos intelectuais orgânicos conservadores – que sempre apoiaram as medidas de viés ortodoxo e monetarista –, parece que alguma luz inspiradora começa a fazer efeito. Economistas como André Lara Rezende e Monica de Bolle, por exemplo, começam a se manifestar publicamente contra os equívocos desse tipo de opção, sempre tão aplaudida pelo financismo. Ele iniciou sua revisão das políticas do “mainstream” há um certo tempo e converteu-se em defensor ardoroso das “heresias” sugeridas pela corrente da Teoria Monetária Moderna. Já ela passou a defender mudanças apenas nos momentos que se seguirem ao desastre de dessa semana. Monica propõe a eliminação do teto de gastos e até fala em uma política de recuperação de investimentos públicos. Mas é importante sublinhar que ambos são sempre muito bem-vindos com suas observações.

Pela revogação da EC 95: fim do teto de gastos

A crise abre a oportunidade para a mudança. Cabe às forças democráticas e progressistas aproveitar o momento para reforçar a agenda antiausteridade. Está mais do que evidente que qualquer projeto de crescimento e desenvolvimento social e econômico passa necessariamente pela solução desse momento mais agudo da crise. Mas isso implica a retomada da iniciativa do Estado como agente indutor do processo de recuperação da atividade econômica. Para isso se transformar em realidade, é urgente mudar também os “modelitos” na cabeça dos economistas de planilha e daqueles que os seguem sem questionar os fundamentos do austericídio.

Não é possível admitir vacilação nesse momento. O campo progressista não pode permitir que partam de seu interior os alertas dos eternos aspirantes a bombeiro, sempre tão bem dispostos a apagar os fogos da resistência democrática e popular. Sempre aquelas figurinhas conhecidas por se apresentarem nessas horas como os guardiões implacáveis do bom mocismo, na vã ilusão de se credenciarem junto ao “establishment”.

Não! Não seremos nós a oferecer qualquer tipo de contribuição para a manutenção do “status quo”. Esse é o momento de propor a mudança efetiva. Vamos começar a nossa lição de casa exigindo a revogação da EC 95 e a implementação de um programa de investimentos públicos robustos.

Publicado originalmente no site Outras Palavras

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